Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

30 de agosto de 2014

Bolacha Completa - Elis Ao Vivo (1995)

Em mais uma postagem da série Bolacha Completa, compartilho com os leitores do Massa Crítica MPB o belo texto escrito pelo Alberto Campos, companheiro das navegações noturnas nas digitais redes pesqueiras da boa prosa e da boa música popular. Só posso agradecê-lo por emprestar ao blog essa pérola que fabricou no ventre de sua audição interior. 

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Por Alberto Campos

Deixei a sala da casa na penumbra para melhor ouvir o disco póstumo Elis Ao Vivo (1995)*, um registro do show da cantora de 1977, grávida de 07 meses da Maria Rita. O som é limpo. Acho que a gravação mais bonita da canção Morro Velho está nesse registro. Elis se emociona e transparece tranquilidade, paz de espírito e o canto firme como se estivesse segura do futuro que lhe esperava. Ouço o disco e penso na gravidez como metáfora. A natureza nos fez um corpo masculino sem estrutura física para desenvolver o processo de gestação dos mamíferos. Daí, podemos ter o que vou chamar de gravidez poética. Ideias que guardamos consigo e não compreendemos. Ela vai sendo gestada sensivelmente e à nossa revelia, muitas vezes sendo percebida pelos outros, como algo em desenvolvimento, como algo que por vezes nos deixa melancólicos ou efusivos de modo inconstante. Penso nisso porque o dia de hoje me ofereceu muitas perguntas e poucas respostas. Vi a afetividade agressiva, artística e masculina de um artista de Roraima, que apresentou canções sobre o impulso tribal e indígena que há em todos nós, brasileiros, e tudo na linguagem de bateria+guitarra+percussão. Ouvi conversas sobre gravidez e sobre abortos, a balança que carrega de um lado o peso da vida e do outro o peso da morte. Ouvi conversas sobre maturidade e realização profissional. Dancei um pouco com todas estas ideias, admito. Mas elas permaneceram ainda em órbita. Vi imagens compartilhadas no facebook de lindas mulheres grávidas e suas expectativas radiantes sobre a glória da vida, a continuidade de todos nós. Tudo isso me comoveu. E voltei aos meus pensamentos de homem grávido que estou. Veio então a sensação de vertigem. A mesma sensação de quando temos febre alta na infância. Os olhos fechados e a percepção alterada de que o corpo se expandiu para todo o espaço da sala. A gravidez poética de um homem talvez possa soar confusa para quem racionaliza demais a experiência. Alguns poderão definir como torpor lisérgico com ironia. Podem dizer o que quiser. Mas não é nada disso. Elis Regina continua me conduzindo a universos expandidos de tranquilidade e segurança com sua voz. Já no final do disco, ela canta: "As coisas que eu sei de mim tentam vencer a distância e é como se aguardassem feridas numa ambulância. As pobres coisas que eu sei podem morrer, mas espero como se houvesse um sinal, sem sair do amarelo" (Transversal do Tempo). Ainda em estado de suspensão febril, a voz de Elis parece ser a companhia ideal. Parece haver uma cumplicidade entre a voz da cantora e os ouvidos deste homem grávido de pensamentos. Esse depoimento não pretende de jeito maneira ser alguma bandeira do anima masculino, nada disso. Quem me tem por perto sabe do azul, sabe do jeito de expressão. Não sei se haverá um parto de textos poéticos, rs, mas acho que vale à pena parar um pouco com a pressa dos dias, deitar na penumbra e ouvir esse disco da Elis Regina. Não precisa estar grávido. Mas, se estiver, talvez a gente se entenda. 

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* [Nota do editor] Elis ao vivo (1995) [ouvir completo, aqui] foi editado pela Velas a partir de gravação realizada no dia 25/07/1977, no Palácio de Convenções do Anhembi, SP, durante o programa O Fino da Música, da Rádio Jovem Pan, produzido por Zuza Homem de Mello. 

Faixas

1 Como nossos pais
(Belchior)
2 Travessia
(Milton Nascimento, Fernando Brant)
3 Morro Velho
(Milton Nascimento)
4 Romaria
(Renato Teixeira)
5 A dama do apocalipse
(Crispim, Natan Marques)
6 Colagem
(Cláudio Lucci)
7 Madalena
(Ronaldo Monteiro, Ivan Lins)
8 Qualquer dia
(Vitor Martins, Ivan Lins)
9 Cadeira vazia
(Alcides Gonçalves, Lupicínio Rodrigues)
10 Vida de bailarina
(Américo Seixas, Chocolate)
11 Triste
(Tom Jobim)
12 Dois pra lá, dois pra cá
(Aldir Blanc, João Bosco)
13 Mestre sala dos mares
(Aldir Blanc, João Bosco)
14 Transversal do tempo
(Aldir Blanc, João Bosco)
15 Cartomante
(Vitor Martins, Ivan Lins)