Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

31 de dezembro de 2013

Adeus, ano velho

Sim, mais um ano se acabou. Que venha o próximo. Como historiador não custa lembrar que o calendário é um artifício que reinscreve o tempo vivido sobre o tempo cósmico (LE GOFF, RICOEUR), reconhecendo a premissa de que o próprio tempo é uma categoria social e histórica (ELIAS, KOSELLECK). Assim, de um lado demarco sua arbitrariedade, e de outro reconheço que, em diferentes contextos, por razões distintas, as sociedades se lançaram à hercúlea tarefa (intelectual, cultural) de dividi-lo e mensurá-lo, de modo a impor sobre o tempo alguma ordem, como mostra David Duncan em seu curioso livro Calendário. Celebramos, por isso, a passagem de ano, inclusive com canções apropriadas, como a famosa Fim de ano assinada por David Nasser e Francisco Alves:



Adeus, ano velho!
Feliz ano novo!
Que tudo se realize
No ano que vai nascer!
Muito dinheiro no bolso,
Saúde pra dar e vender!

Para os solteiros, sorte no amor
Nenhuma esperança perdida
Para os casados, nenhuma briga
Paz e sossego na vida
Informações de Samuel Machado Filho via You Tube:
A mais tradicional e lembrada canção de réveillon brasileira. Segundo depoimento do próprio João Dias, é Francisco Alves quem diz no início da gravação "Atenção, tá chegando meia-noite!".Histórico registro Odeon de 5 de outubro de 1951, lançado em dezembro seguinte com o nr. 13199-B, matriz 9149, tendo no lado A a versão "Sinos de Belém (Jingle bells). Esse disco permaneceu em catálogo por mais de 30 anos, tendo saído mais tarde em compacto simples.

24 de dezembro de 2013

Quanto vale o show?

Uma das formas de repercussão cultural que considero particularmente interessante é o comentário. Uma breve notícia, ao ser comentada, dependendo da argúcia ou mesmo da verve de quem a comenta, pode desencadear um imenso debate, que por vezes pode superar a condição de festival de verborragia e realmente acrescentar algo, lançar uma nova luz sobre o que motivou a discussão inicial ou ao menos  representar uma reunião de posições relevantes para que o debate possa seguir e se aprofundar. Hoje em dia isso acontece com frequência via facebook mas às vezes sinto que o encadeamento do processo se perde quando o tempo passa e o ímpeto suscitado pelo comentário arrefece. No caso abaixo achei que valia a pena transformar em postagem, na tentativa de deixar ao menos um registro que fosse além das "linhas do tempo"...

A notícia
A Retratos da Vida descobriu o cachê que Caetano Veloso e Gilberto Gil vão receber para cantarem no réveillon de Salvador. Cada um dos baianos embolsará R$ 600 mil. A festa está sendo organizada pela empresária Flora Gil, cujo sobrenome entrega de quem ela é mulher. A virada do ano na capital da Bahia está sendo financiada com dinheiro público e de empresas privadas.

O comentário da notícia, por Pablo Castro
Caetano e Gil vão receber, cada um, 600 mil reais para cantar no reveillón de Salvador. Estou pra escrever um artigo mais longo sobre esse assunto, mas já cabe aqui apontar em que medida esses dois baluartes do tropicalismo se tornaram uma espécie de coronéis da cultura brasileira. Nada justifica um cachê desse porte, ainda mais para dois milionários.
Ao invés de propor um debate sobre o sucateamento da música brasileira, eles se contentam em engrossar sua fortuna com dinheiro público. Injustificável.

O comentário do debate no facebook, por Luiz H. Garcia
Acho que algumas coisas se perdem e argumentos truncam quando não fica claro onde estão os nós. Primeiro, quando se trata de dinheiro público não se pode raciocinar estritamente dentro de uma lógica de mercado. Cabe exigir sempre transparência e responsabilidade dos administradores, e aí cabe questionar o montante, mas também a própria decisão. Por que o Estado, que nem dá conta de garantir com boa qualidade os serviços essenciais, gasta recursos com festa de reveillon, inaugurações e afins? Mesmo que seja legal, será legítimo? Assim, mesmo com zero desvio, zero superfaturamento, zero favorecimento de x ou y, mesmo assim seria questionável. E outra coisa, prefeitura tem que pensar em política, em equipar a cidade,com esse dinheiro dá pra fazer coisas que atenderiam gerações, anos e anos, ao invés de fazer um espetáculo de uma noite cujos benefícios, por mais que existam, se dissipam rapidamente. Por que as empresas, que se interessam pela publicidade direta ou indireta desses eventos, não pagam a conta toda do bolso delas? Não dizem que a propaganda é a alma do negócio? Então? Os argumentos até aqui nem colocam em questão quem são Gil e Caetano, nem a qualidade ou perenidade da obra deles, sequer da atuação deles como cidadãos. Personalizar e medir afetos e desafetos não funciona, aliás é um verdadeiro traço de cordialidade, no sentido proposto por Sérgio Buarque de Holanda. Entrar nessa de quem merece, quem não merece, não é razoável até porque no final vamos ter que encarar que vivemos numa sociedade totalmente desequilibrada em relação à forma de remunerar o merecimento (há exemplos acima). Isso portanto já é uma premissa. Agora o nó mais apertado, difícil de debater é a questão ética. Sem bom-mocismo, sem cinismo, devemos debater isso sim. Para efeito de raciocínio novamente não interessa quem são Gil e Caetano. Interessa que são cidadãos brasileiros e que vão se apresentar em espaço público. Seria mesmo absurdo demais desejar que dois cidadãos nessas condições propusessem cachês menores, que ainda fossem plenamente satisfatórios para remunerar uma noite de trabalho, por considerar a dimensão pública dessa apresentação?? Queremos um Estado transparente, administradores responsáveis, mas nós não precisamos agir assim?? E mais, ante um comportamento cuja legitimidade é questionável, devemos é nos calar porque no fundo supostamente gostaríamos de estar na mesma posição para ter o mesmo comportamento? E quem age assim não deve nem ao menos receber a crítica? Sem romantismo, repito, mas é possível aperfeiçoar uma democracia esperando que um Estado comprometido com o bem público brota por geração espontânea, que bons governantes descerão de discos voadores? Enfim, um debate mais que urgente e importante, que é bom que seja feito sem pequenez, sem picuinha, sem personalismo.

23 de dezembro de 2013

Memórias cantando: o presente de Paulinho da Viola



No início do mês reparei que um certo disco simplesmente não parava de tocar aqui em casa. Era o Memórias cantando (1976) do Paulinho da Viola, que meu filho (17) e filha (11) ouviam sem parar e logo cantavam junto todas as canções. Como se isso já não fosse o bastante para deixar um pai pra lá de orgulhoso com o bom gosto musical dos rebentos (que, diga-se de passagem, incentivo mas sem qualquer tipo de campanha sistemática pois desejo que descubram a música por seus próprios ouvidos), perguntei à minha filha se queria ganhar um caderno com letras de música, talvez como presente de natal. Pois não é que ela adorou a ideia! Pedi então que ela fizesse a lista das canções que gostaria de ter no tal caderno. Mas ela acabou protelando a tarefa e hoje quando lhe perguntei ainda não havia feito a tal lista. Disse então que ficaria pra depois, o que ela não recebeu nada bem. Com aquela urgência típica da idade foi lá e lavrou, rapidamente, sem vacilo, a listagem, só com canções do disco do Paulinho. Lá fui eu, depois de um dia corrido, bolar o tal presente, que logo percebi que precisaria ser feito em formato digital. Aproveitei então para testar uma ideia antiga, de gerar material em pdf que pudesse compartilhar pelo blog. Enquanto reunia letras e imagens, rapidamente buscadas no site oficial de Paulinho, pensava na fascinante operação cultural que se descortinava à minha frente, quando um disco que fora gravado no ano em que nasci ganhou a preferência de gente que nasceu no mínimo 20 anos depois disso e agora poderia alcançar ainda outros e mais outros ouvidos. Um disco sobre a memória, mas com a imensa capacidade de transcender o tempo em que foi feito e nos tocar no presente [clique aqui para ler os preciosos comentários de Arley Pereira]. E - se a minha memória não me trai - acho que eu comprei em CD esse e mais 2 discos do Paulinho como presentes - muito bem dados - a mim mesmo num certo natal. Mas posso estar enganado e talvez os revolteios do lembrar não passem de uma boa forma de fechar esse texto.

Caderno de letras Paulinho da Viola

P.S. 2015
Como o link do vídeo estava quebrado, decidi inserir um novo. Nesse ano duro, que termina com sabor amargo, me pareceu um bom remédio ouvir essa canção...




Vela no breu
(Paulinho da Viola e Sérgio Natureza)
Disco: Memórias Cantando


Ama e lança chamas
Assovia quando bebe
Canta quando espanta
Mal olhado, azar e febre

Sonha colorido
Adivinha em preto e branco
Anda bem vestido
De cartola e de tamanco

Dorme com cachorro
Com um gato e um cavaquinho
Dizem lá no morro
Que fala com passarinho
Depois de pequenino
Chora rindo
Olha pra nada
Diz que o céu é lindo
Na boca da madrugada

Sabe medicina
Aprendeu com sua avó
Analfabetina
Que domina como só
Plantas e outros ramos
Da flora medicinal
Com 108 anos
Nunca entrou num hospital

Joga capoeira
Nunca brigou com ninguém
Xepa lá na feira
Divide com quem não tem
Faz tudo o que sente
Nada do que tem é seu
Vive do presente
Acende a vela no breu

21 de dezembro de 2013

Grandes encontros - Milton Nascimento e Astor Piazzolla nos 25 mil acessos do Massa Crítica MPB

O blog Massa Crítica MPB acaba de superar a marca de 25 mil acessos. Não é nada no universo dos números astronômicos da Internet, mas como não sou blogueiro profissional nem tenho objetivos comerciais com o blog, creio que é uma marca significativa para um trabalho que basicamente se ocupa de divulgar e promover a reflexão sobre a música popular, em especial a brasileira. Obrigado a todos que tem passado por lá e deixado seus comentários, bem como divulgado as postagens pelos canais mais diversos. Achei que o momento merecia uma postagem especial, que acabou sendo inspirada pela música que postou meu velho amigo Giovano, "Retrato de Milton", de Astor Piazzolla.

 
Em 1973, Piazzolla toca ao vivo na USP. Num belo momento, oferece uma composição sua aos jovens criadores do Brasil, em especial Milton Nascimento, a quem dedicou o tango que segue. Vale lembrar que esses espetáculos realizados nos campus universitários, na década de 1970, no auge do regime autoritário, cumpriam um papel político importante, além de sua grande relevância cultural. Esse espaço, hoje, com raras e honrosas exceções, está tomado por produções por vezes caras, pomposas, que não ensejam qualquer traço de reflexão sobre algo de relevante política ou artisticamente, ou por shows altamente comerciais que ocorrem na universidade por mero detalhe, pois poderiam ser realizados em qualquer lugar. Assim, ao som dessa jóia de Piazzolla, à sombra da lembrança da força da música na resistência a todo arbítrio, faço votos de que tenhamos no futuro novamente o campo aberto dentro e fora das universidades para que vicejem de forma intensa a crítica e a criação, o pensamento e a arte.



Boas festas e ótimo 2014 a todos!

14 de dezembro de 2013

Grandes encontros da música popular - Egberto e Hermeto

Antes que algum desavisado imagine coisas, não se trata da mais nova dupla sertaneja universitária.  São, de fato, o Gismonti e o Pascoal, dos músicos mais inventivos e inclassificáveis que essas terras brasileiras já deram de dar. A série grandes encontros não poderia perder essa oportunidade, mesmo considerando que a música desses dois atravessa várias fronteiras e de forma alguma se limita à classificação de popular, ainda que transite por ela. No reconhecimento disso, lanço mão de expediente que já se tornou habitual, que é pinçar os excelentes comentários do meu parceiro Pablo Castro:

Um dos enigmas da grande música instrumental brasileira sempre foi, para mim, nunca ter ouvido Egberto e Hermeto juntos. Não só porque os considero os dois maiores nomes pós- década de 1960, tanto como compositores quanto como instrumentistas, nem apenas porque os considero duas escolas diferentes, e igualmente majestosas, Egberto mais cerebral, e Hermeto mais dionisíaco, mas pelo fato de que são da mesma geração, filhos da revolução da bossa nova e do ensino de músicas nas escolas durante as décadas de 40 e 50 cuja implantação se deu pelas próprias mãos de Villa-Lobos.
Eis que achei aqui esse raríssimo encontro de gigantes, cujos nomes até rimam, num festival de jazz europeu em 1975.



Com a preciosa contribuição de Maurício Ribeiro, acrescento essa entrevista dada pelo dois, em companhia do também imprescindível Naná Vasconcelos, quando estiveram juntos na Argentina. Rápida e certeira.




Aproveito o clima natalino, tempo propício para anunciar que já acertamos novas bases para esta colaboração, e em breve os leitores do Massa Crítica MPB vão ter gratas surpresas...


7 de dezembro de 2013

Há versões e (a)versões

Um tema que dá muito pano pra manga é o das versões. Há aquelas versões que são basicamente as que são feitas por intérpretes diferentes quando gravam a mesma composição, sem grandes alterações em relação ao andamento, ao estilo de interpretação, ao arranjo, enfim ao padrão geral da gravação. Isso ocorre em geral num curto período de tempo, em que diversos intérpretes gravam uma canção bem sucedida num determinado momento, procurando incorporá-la a seu repertório e esperando sua boa recepção por parte do público. Há aquelas versões que extrapolam essa referência fonográfica e procuram recriar a canção e a gravação que tomam como referência, acrescendo à história da composição novos traços. Muitas vezes são versões que nascem pelo gesto de transportar canções no tempo e/ou no espaço (e nesse caso podem ser, além de versões, traduções), motivado por homenagens, songbooks, participações especiais, pesquisas de repertório, interesses mercadológicos, decisões dos produtores, preferências dos músicos, o que mais for. Há intérpretes que imprimem de forma tão inconteste sua marca que suas versões podem tornar-se mais memoráveis que aquela primeira gravação, e por vezes consagram-se como aquela que servirá de parâmetro pelo qual todas as subsequentes serão medidas. Podemos pensar na versão dos Beatles para Twist and shout, ou em várias das interpretações de Elis Regina para o repertório canônico da MPB. Uma situação ímpar é a dos compositores que se revelam excepcionais "versionistas", capazes de impregnar a canção com sua própria assinatura estilística, de modo muito próximo a uma coautoria. Dentre vários exemplos possíveis, me ocorrem imediatamente Caetano Veloso e George Harrison. Os leitores, se quiserem, podem sugerir outros nomes à lista.    

Enfim, são várias possibilidades de abordagem e material abundante que permitiria mil e um estudos, ensaios, pesquisas. Como o gás em final de semestre é pouco vou contentar-me agora com essa pequena incursão, motivada pela postagem do Francisco de Paula, garimpeiro da hora e membro da página do Blog do Clube da Esquina. Ele postou por lá essa versão do conjunto vocal novaiorquino Manhattan Transfer para Viola violar (Milton Nascimento/Márcio Borges), que eu não conhecia ou ao menos não me recordava de ter ouvido. Gravada no disco Brasil (1987), e com a participação do próprio Bituca, ela aparece transmutada numa ode de teor ecológico bizarramente intitulada The jungle pioneer (O pioneiro da selva). Na música não traz grandes inovações, a não ser pela parte central em que a ponte instrumental recebeu letra e que apresenta uns tamborins na percussão, fincados ali como uma espécie de bandeira do Brasil timbrística. A versão da letra (Brock Walsh), além de não traduzir minimamente o conceito expresso na original, é de lavra ruim mesmo, com pérolas do tipo... [quem quiser ler a letra completa, original aqui versão aqui]

"Here where we stand there used to be a forest     eu estou bem seguro nesta casa
A timber rising endlessly before us                           minha viola é o resto de uma feira
We cleared away that Godforsaken jungle               a minha fome morde o seu retrato
And in return the Indians adore us                             brindando a morte em tom de brincadeira

What was mud now is a highway                               e amanhã mais vinte anos
Reaching wide into a prairie                                      desfilados na avenida
Horses run, cattle are grazing                                    arranha-céu, ave noturna
You would swear, it's Oklahoma (...)                          no circuito dessa ferida (...)

See in the field my little son and daughter                eu estou bem seguro nesta casa
Not long ago that ground was under water"             comendo restos nesta quarta-feira




Claro que há grandes letristas norte-americanos. Acontece que quando se trata de versar grandes pérolas do cancioneiro brasileiro, via de regra as gravadoras de lá incumbem autores medianos que não conseguem traduzir ou muitas vezes nem tentam, fazem outra coisa, limitada e provavelmente mais palatável ao que imaginam ser o provável ouvinte de lá. Obviamente as versões são importantes veículos dos fluxos transculturais e certamente alguns ouvintes poderão, mesmo a partir de trabalhos fracos, desenvolver maior interesse e procurar as gravações dos compositores, tomando contato com outras músicas populares. Porém são também expressão da assimetria com que se movem esses fluxos e mostram bem como as versões podem ser veículo de estereótipos culturais. Como bônus, deixo as versões da mesma canção gravadas por Quarteto em Cy e Alaíde Costa.





6 de dezembro de 2013

Na estante (ou não)

Enquanto principio aqui, ainda que em marcha lenta até que as férias cheguem, a leitura de  Brutalidade jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (Unesp, 2009), escrito por Christopher Dunn, professor da Tulane University, em Nova Orleans, acabei reencontrando na internet esse material em profusão derivado do trabalho de Ana de Oliveira, pesquisadora responsável pelo site Tropicália e pelo livro-objeto Tropicalia ou Panis et Circencis, o qual confesso, não fiz mais que passar os olhos. O site, visualmente exuberante e com textos didáticos, introdutórios, parece cumprir bem a função de apresentar bem o cenário e as principais figuras associadas ao movimento, além de alguns de seus desdobramentos, nesse caso talvez recaindo numa leitura que está por demais canonizada e que exagera a proporção dos efeitos e dos rastros tropicalistas, certamente influenciada pela consagração a posteriori que recebeu, inclusive após o regurgito realizado em terras gringas na esteira da louvação de Byrne a Tom Zé e da babação de Cobain pelos Mutantes. Enfim, como há muito material acredito que se posso inclusive ir bem além das leituras que o site oferece, o que é bem interessante. Já que estou reunindo algum material sobre o tropicalismo por aqui, ocorreu-me acrescentar edições do ótimo programa de tv fechada O som do vinil, comandado por Charles Gavin, sobre os discos Tropicália e Mutantes e seus cometas no país dos Baurets. Desbundem-se.











- See more at: http://tropicalia.com.br/livro/#close

22 de novembro de 2013

Notas sobre a história da fonografia no dia do músico

Acabei de participar, com muita satisfação, da banca da defesa de tese de Marcos Edson Filho, Memórias, discos e outras notas: uma história das práticas musicais na era elétrica (1927-1971). Calhou de ser justamente no dia do músico. Na ilustríssima companhia de Dra. Regina Helena Alves da Silva (orientadora) História - UFMG; Dr. Guilherme Caldeira Loss Vincens - Música - UFSJ; Dra. Glaura Lucas - Música - UFMG; Dr. José Newton Coelho Menezes - História - UFMG, falamos de fonografia, técnica e cultura de gravação, práticas musicais dentro dos estúdios, intérpretes, instrumentistas, arranjadores, técnicos de som, iconografia, história oral, musicologia, etnomusicologia, metodologia, fontes diversas e outras notas. Junto com arguições pertinentes, elogios, puxões de orelha, troca intelectual da melhor qualidade, reinou o bom humor, que foi a tônica (ou seria a dominante?) da defesa que trouxe, nesta quente tarde de sexta, um pouco de alento e porque não dizer, alegria, em meio aos cansativos e acumulados trabalhos de final de semestre.
 

20 de novembro de 2013

Um Brasil bem perto daqui

Parei tudo aqui e estou ouvindo, com grande interesse, o LP Imyra, Tayra, Ipy - Taiguara (1976) de Taiguara, só agora relançado no Brasil em CD [uma boa reportagem sobre o disco, aqui]. O som é exuberante, elaborado, e as letras contundentes, cinematográficas, brilhantes. Um disco denso, desafiador, que burlou a censura mas acabou sendo recolhido poucos dias depois de seu lançamento. Retrato vivo de seu tempo e simultaneamente uma leitura da história do Brasil e do continente americano. Feito no emblemático ano de 1976, que já abordei em outras postagens do blog. Além das 13 faixas compostas por Taiguara, figura uma versão solitária, e mais do que significativa, de Três Pontas (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos). Não é pura coincidência o disco ter sido gravado na EMI-Odeon, casa que abrigou boa parte daquela turma simbolicamente reunida numa certa esquina. O diálogo com o Clube e com as pontes panamericanas propostas por Bituca e cia. é mais do que audível, e reverbera também pela atuação de seus membros ilustres como Wagner Tiso, Toninho Horta, Nivaldo Ornellas e Novelli. Entre outras feras presentes, incluindo Hermeto Pascoal (responsável por alguns dos arranjos), Jacques Morelembaum, Paulo Braga...
Vale conferir ainda o site oficial do CD, bem cuidado e fazendo jus à obra que motivou sua existência. Destaque para as seções "letras" (traz fichas técnicas faixa a faixa), "entrevistas", "depoimentos" e "a censura". Mas todo o sítio vale a visita. E agora vamos ouvir que é o que mais interessa:

P.S.
Um dos melhores atrativos de manter o blog é a possibilidade de ir incorporando novos elementos e aperfeiçoando as postagens. Não é que hoje (28/12/2013) meu parceiro Pablo Castro, habitual colaborador aqui, resolver escrever algumas linhas sobre o disco. Também vale a leitura o certeiro texto do excelente cantautor Makely Ka, aqui.

Por Pablo Castro:
Acabo de escutar a obra-prima de Taiguara , seu disco censurado Imyra, Tayra, Ipy , Taiguara, de 76, ano em que nasci. Na verdade, eu já era familiar com seu disco Piano e Viola, de 72, que constava na coleção de vinis de meu pai. Eu gostava daquele disco, reconhecia o refinamento de suas melodias e seu domínio expressivo do piano, embora considerasse que ele sucumbia a algumas soluções excessivamente sentimentais e torrenciais em alguns momentos. Impressão parecida tive outro dia a escutar um LP anterior, de 69.

Mas Imyra,Tayra, Ipy, Taiguara é arrebatador. Essas torrentes emocionais que sempre acompanharam suas músicas dessa vez são totalmente naturais e a orquestração, simplesmente fantástica, épica e expressiva, está entre as mais inspiradas de toda a produção fonográfica brasileira. As canções são nada menos que estupendas, começando com um refrão que diz : " eles querem lotar o maracanã" , aliando as assertivas pianísticas de Taiguara com um nível de orquestração que beira o sentimento sinfônico. Esse trangredir de fronteiras se vale também de experimentações tecnológica, com o uso despudorado de reverbers, ecos, truques analógicos, e também da retórica intrumental de nomes como Hermeto Pascoal , Toninho Horta , Nivaldo Ornellas, Wagner Tiso , Jacques Morelembaum, Zé Eduardo Nazário, Novelli , Paulo Braga, Lúcia Morelembaum . Esse disco realmente é um Rio Amazonas de expressividade grandiosa , o que também transparece no canto arrojado do cantautor, se valendo de notas longas, falsetes, sempre com melodias rigorosas em suas redondezas. A harmonia transparece um diálogo com Milton Nascimento, para cuja canção Três Pontas ( em parceria com Ronaldo Bastos ) ele apresenta um arranjo espetacular, que chega a superar o original.

As letras falam do auto-exílio ao pé da letra e daquele auto imposto pela censura no Brasil. A sua atualidade é tocante. Que justamente esse disco tenha sido totalmente censurado é mais um testemunho de um crime da ditadura militar contra a cultura brasileira. Que ele e seu autor ainda não tenham sido redescobertos e consagrados pela grandiosidade de sua obra atesta a nossa empobrecida relação com a memória musical de um país que é um país de canções : aquele Brasil idílico de que teimamos não conseguirmos nos desvencilhar.





P.S. 2019
Encontrei esse trecho do programa Metrópolis de 2014, com depoimentos de Wagner Tiso, Jacques Morelembaum e Novelli a respeito do processo de gravação do disco, do trabalho com Taiguara e dos acontecimentos que cercaram aquele período.


17 de novembro de 2013

1a. c/ a 7a. Dona Olímpia

Dona Olímpia, personagem popular de Ouro Preto, inspirou a belíssima canção homônima de Toninho Horta e Ronaldo Bastos. Descobri por andanças digitais esse trecho de um curta sobre ela, cuja trilha é assinada pelo Toninho, que em sua gravação de 1979 inseriu justamente o áudio do documentário no início da faixa.



Ficha Técnica [do site do Arquivo Público Mineiro - completo, aqui]

Grupo Novo de Cinema apresenta; Um filme de Luiz Alberto Sartori Inchausti; Fotografia e câmera: Maurício Andrés, Ricardo Stein; Roteiro: Sartori, Geraldo Linares Filho; Música: Toninho Horta; Som: José Sette de Barros Filho, Ricardo Stein; Montagem: José Tavares Barros, Sartori; Produtor: Alfredo Antônio; Co-produtores: Maurício Andrés, Sartori; Equipe produção: Flávio Ferreira, Antônio Maria de Oliveira, Jair Carvalho Junior; Agradecimentos: Banco Minas Gerais SA, Hotel Restaurante Pilão, Escola Superior de Cinema UCMG, José Aloísio Teixeira de Souza, Intercâmbio Mercantil Ikay LTDA, Taverna do Chafariz, Prefeitura de Ouro Preto, Contur-cia Nacional Turismo.

Palavras-chave

Ouro Preto; praça Tiradentes; dona Olímpia; moradora ouropretense; turistas americanos; centro histórico de Ouro Preto.

Sinopse

Documentário sobre Dona Olímpia Cota, personalidade popular de Ouro Preto. O filme mostra Dona Olímpia contando fatos de sua vida, sua história e sua rotina, intercaladas com imagens da cidade de Ouro Preto e seus habitantes.


12 de novembro de 2013

Atravessando o deserto


Vale conhecer e vale muito apoiar mais um aventureiro que se dispõe a desbravar a mata, enfrentar a tempestade, subir o Everest ou atravessar o deserto em busca de novos caminhos para o destino da canção. 
Falo do Rafael Dutra, que atualmente grava seu CD solo de estréia, Oásis de Vidro. Conheci melhor o trabalho dele através da mostra Cantautores [confira o som aqui], que já se tornou importante evento para a difusão da produção autoral de canções em Belo Horizonte. Aliás, é a cidade que propicia os encontros inesperados e auspiciosos como o que tivemos recentemente saindo de ônibus do campus da UFMG dias atrás. Falamos sobre o projeto do disco e assuntos de momento, mas sobretudo das canções e dos múltiplos caminhos da sua criação. Papo da melhor qualidade, cujo saldo seria difícil expressar aqui de uma forma precisa, até porque certamente o melhor seria revisitar a conversa pela memória de ambos interlocutores. Diria, em suma, que foi uma pródiga troca de impressões e experiências. Mas o que interessa mesmo é deixar aqui o convite para que o leitor acesse a campanha de financiamento via Catarse para finalização do disco, conheça melhor o trabalho do cara e se antecipe para ter em mãos esse primeiro registro fonográfico solo e demais produtos oferecidos. Passe lá e confira!


6 de novembro de 2013

Museu Clube da Esquina e lugares da cidade na Semana do Conhecimento e Cultura da UFMG 2013


Parte das atividades de pesquisa que venho desenvolvendo envolvem a orientação de bolsistas de iniciação científica. É uma satisfação apresentar a seguir uma síntese do trabalho recentemente apresentado pela bolsista Julianne Paranhos (o texto e as fotos são dela):

Durante a Semana do Conhecimento e Cultura da UFMG, que ocorreu entre os dias 21 a 25 deste mês, apresentei (Julianne Paranhos) os primeiros resultados das pesquisas desenvolvidas no Projeto Museu Clube da Esquina: do sonho à cidade, coordenado e orientado pelo Prof. Dr. Luiz Henrique de Assis Garcia. As pesquisas foram realizadas em diálogo entre Museologia, História e Antropologia Urbana, e buscaram perceber os laços simbólicos e de apropriação dos citadinos para com três dos lugares (ARANTES, 1994) demarcados com placas comemorativas pelo Museu Clube da Esquina* – o Edifício Archangelo Maletta, o Edifício Levy e a Esquina no Bairro de Santa Tereza. Muitos dos processos da pesquisa foram expostos aqui na página e aproveito para também compartilhar a conclusão parcial- pois, o projeto ainda está em andamento - apresentada no evento. Os lugares abordados na pesquisa, ao serem demarcados com as placas, transformam-se por meio de uma ação museológica extra-muros (MENESES: 2003). À esquina, locus adotado pelos músicos e letristas para a constituição da identidade da formação cultural em questão, pode ser incluído à ideia de lugar os sentidos atribuídos pelas canções do Clube da Esquina e a placa ali instalada reforça esses sentidos. Já nos Edifícios Levy e Maletta, estas  apresentam aos citadinos seus sentidos de lugar.



As placas celebram situações e ao serem percebidas pelos citadinos, colaboram para trazer à tona memórias de diferentes naturezas marcando no tempo e no espaço os sentidos construídos sobre e no lugar, sentidos estes que se fundem com os novos usos e significados que as pessoas atribuem ao espaço urbano.


“Isso é um memorial, marca um momento, de um tempo onde a galera se encontrava, onde as coisas começaram. É um símbolo, o lugar é um emblema. Santa Tereza é um bairro rico, especifico do pessoal da música e o movimento do Clube da Esquina atrai outros músicos e a música é o que lembra o ambiente, é a música que faz lembrar o fato do passado. As placas guardam a memória de uma coisa que está muito viva.” (Grifo meu) Flávio Emauel. Entrevista concedida à autora no dia 04 de junho, na esquina no Bairro de Santa Tereza.




“Mas você está no lugar errado! O Clube da Esquina é lá em Santa Tereza!” 
“A noite é cara, tem que pagar para entrar nos lugares e os shows na rua acabaram (...). Depois veio a geração do Skank que faz show na praça. Hoje o povo quebra as praças. Hoje o povo não tem cultura e quebra tudo. Antigamente o povo entrava na borracha. A ditadura foi ruim, mas não tinha mendigo, a gente tinha que trabalhar. O povo pede dinheiro para droga, não é para comida. A polícia distribuía borracha”. João Martins. Entrevista concedida à autora no dia 13 de maio, na Av. Amazonas em frente ao Edifício Levy.

“Essa placa aqui cumpre a função de representar a memória de BH. Inclusive o Carlos Drummond de Andrade, frequentava aqui, os intelectuais freqüentavam esse lugar”. Karminha Primo. Entrevista concedida à autora no dia 23 de maio, no Edifício Maletta. 

Espaço de encontro e trocas culturais entre intelectuais, músicos e artistas durante as décadas de 1960 e 1970, atualmente o Edifício Maletta ainda se conforma como um lugar de encontro de pessoas associadas e interessadas com a produção artística em geral. Assim como no caso do Edifício Levy, a placa precisa ser percebida para que o sentido de lugar atribuído, construído a partir da memória do Clube da Esquina, possa ser apreendido pelos frequentadores do lugar. 


Referências Bibliográficas:


  AGIER, Michel. “Introdução”, “Um etnólogo nas cidades”, “Os saberes urbanos da antropologia”, “Situações elementares da vida urbana”. In._:Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, SP: Editora Terceiro Nome, 2011.

  ARANTES, Antonio Augusto. “A Guerra dos Lugares”. In._: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nº 23. Rio de Janeiro: IPHAN, 1994.

  AUGÉ, Marc: Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Marília Lúcia Pereira.Campinas, SP: Papirus, 1994.

  BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

  GARCIA, Luiz H. A. “Canções Feitas na Esquina do Mundo: música popular e trocas culturais na metrópole através da obra do Clube da Esquina”. In._: Revista Brasileira de Estudos da Canção. Natal, n.2, jul./dez. 2012.

  ______________. “Patrimônio Urbano e Música Popular: narrativas plurais na cidade e no museu”. IV SIAM (Seminário de Pesquisa em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola) / 21 ICOFOM LAM.Petrópolis: UNIRIO/MAST, 2012, trabalho completo apresentado em Seminário. (imp.), 12p.
LEITE, Rogério Proença Leite. Contra-Usos da cidade: Lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. 2º Ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Aracajú, SE: Editora UFS, 2007.

  MAGNANI, José Guilherme Cantor. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. In._: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 17, nº 49. Jun., 2002.

  MATTOS, Paulo César Vilara de.  “Entrevistas Márcio Borges”, “Palavra de parceiro Borges” e “Palavras de Parceiro Milton Nascimento”. In._: Palavras Musicais: letras, processo de criação, visão de mundo de 4 compositores brasileiros. Belo Horizonte: s. Ed., 2006.

  MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “O museu de cidade e a consciência da cidade”. In._: Afonso Carlos Marques dos Santos, Carlos Kassel e Cêça Guimarães [Org.]. Museus e Cidades: Livro do Seminário Internacional. Museu Histórico Nacional: Rio de Janeiro, 2003.

  MUSEU CLUBE DA ESQUINA. Guia de Belo Horizonte: roteiro Clube da Esquina. Belo Horizonte: Associação dos Amigos do Museu Clube da Esquina, 2006.

  OLIVEIRA, Roberto Cardoso. “O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir e escrever”. In._: O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora Unesp, 2000.

*O projeto recebe bolsa IC FAPEMIG e apoio da PRPq/UFMG

29 de outubro de 2013

Sob o céu de Tóquio

Os muitos trânsitos culturais acionados pela música popular são capazes, às vezes na mesma frase, de promover a redução das distâncias sem contudo obliterar as diferenças. A entrevista concedida por Herbie Hancock e Wayne Shorter, antes de se apresentarem junto a Stanley Clarke e Robertinho Silva como banda acompanhante de Milton Nascimento (que também concedeu entrevista à tv japonesa) em um show em Tóquio evidencia na questão da língua esse jogo de aproximações e distanciamentos. Hancock manifesta o desejo de saber português, causado pela tradução de algumas canções de Milton. Shorter por sua vez, apesar de ser casado com uma portuguesa (Ana Maria), diz que só fala português "subconscientemente".  Musicalmente todos se entendem muito bem.




25 de outubro de 2013

Aperfeiçoando o perfeito


Enquanto se acerca o aniversário de um certo Notlim Otnemicsan encontrei nesses translados ciberespaciais, através da postagem do Francisco de Paula na página de facebook do Blog Clube da Esquina, a uma versão primorosa de Ao que vai nascer, canção onírica que revolve a dimensão do tempo e brande, em meio à paisagem maculada da pátria de baionetas, uma ode à força do encontro e da criação. Nada poderia ser mais apropriado para lembrar o Nascimento de um Milton, e ouvi-lo na condição da criação que atravessa as eras.




Compartilhei-a, o que imediatamente motivou os comentários certeiros que seguem, do meu parceiro Pablo Castro:

A faixa derradeira e seminal do disco Clube da Esquina, a lunar "Ao que Vai Nascer" , de Milton e Fernando Brant, é absolutamente arrebatadora.

Meu parceiro Luiz Henrique Assis Garcia [autor/editor deste blog] achou esse versão , também com Milton, num disco [A Brazilian Love Affair, clique no link para ouvir todo] de George Duke, tecladista e vocalista sensacional que, entre incursões jazzísticas, integrou a banda de Frank Zappa.

[nota 1 do editor: e colaborou em diversas ocasiões com a grande cantora brasileira Flora Purim, radicada nos EUA e intérprete valorosa de pérolas do repertório miltonascimentiano;
nota 2 do editor: acabei de ver que o George Duke deixou o plano terrestre justamente esse ano. Segundo o bom texto do Mário Lopes (completo, aqui):
 
George Duke, músico de jazz, estrela pop, criador de funk devidamente pecaminoso, só era coerente na sua aparente incoerência. Aparente porque não havia nada de incoerente no seu percurso, antes uma imensa curiosidade (a que o levou, por exemplo, ao Brasil, no final dos anos 1970, para gravar com Milton Nascimento ou Flora Purim o jazz tropicalista de A Brazilian Love Affair). Curiosidade e a noção muito moderna, sabemo-lo agora, da inexistência real de uma hierarquia separadora da alta e baixa cultura. Nesse sentido, o músico que se iniciou nas lições de piano depois de ver Duke Ellington foi fiel à sua inspiração primeira, ao homem que afirmou um dia “só existem dois tipos de música, a boa e a má”]. Segue uma apresentação mais recente, em que ele executa sua versão de Cravo e canela:

 
Mas é Bituca do começo ao fim, numa das mais épicas páginas da música popular mundial no século XX. Uma das letras mais inspiradas de Brant, Ao que Vai Nascer conjuga um despertar assombroso lírico contra as cores pesadas do momento histórico de chumbo.

Memória de tanta espera
Teu corpo crescendo, salta do chão
E eu já vejo meu corpo descer
Um dia te encontro no meio
Da sala ou da rua
Não sei o que vou contar
Respostas virão do tempo
Um rosto claro e sereno me diz
E eu caminho com pedras na mão
Na franja dos dias esqueço o que é velho
O que é manco
E é como te encontrar
Corro a te encontrar
Um espelho feria meu olho e na beira da tarde
Uma moça me vê
Queria falar de uma terra com praias no norte
E vinhos no sul
A praia era suja e o vinho vermelho
Vermelho, secou
Acabo a festa, guardo a voz e o violão
Ou saio por aí
Raspando as cores para o mofo aparecer
Responde por mim o corpo
De rugas que um dia a dor indicou
E eu caminho com pedras na mão
Na franja dos dias esqueço o que é velho
O que é manco
E é como te encontrar
Corro a te encontrar



[Nota 3 do editor : um detalhe sobre essa canção foi o fato de sua letra original ter sido censurada, no trecho ‘Brasil é o país do futuro, meus filhos, meus netos/ o futuro está aqui/ pintaram os fatos de todas as cores/ nesta eu não .../ acaba a festa, guardo a voz e o violão/ e saio por aí/ encerro o canto só se o corpo adormecer’ que virou o trecho "Queria falar de uma terra..." e acabou ficando bem mais pesada, na interpretação do próprio autor. De fato uma grande sacada do Brant, jogar com as cores, elemento simbólico rotineiramente acionado pelo Regime Militar em seu propagandismo ufanista, aqui devidamente descascadas.]

19 de outubro de 2013

Cheire Vinícius

Tá difícil de sair o texto. Também tá difícil deixar passar a necessária homenagem ao centenário de nascimento do grande poetinha Vinícius de Moraes. Não pode... Como compositor bissexto e amador que sou, aprendiz, diria que Vinícius, se fosse santo, seria o santo padroeiro dos letristas. Se toda uma linhagem de músicos populares brasileiros aprendeu com João a ser desafinado, aprendeu com Vinícius a escrever beijinhos. Mas ele não tinha nada de santo, felizmente. Talvez esteja mais para um buda etílico*, uma contradição em termos, já sei, mas não resisti à imagem que cai como uma luva para o sujeito que disse que o uísque era o cachorro engarrafado. Vinícius irradiava inspiração de uma forma generosa, na sua obra e na sua vida. Aliás é isso, o que ele sorveu e transpirou em seus versos, em seus escritos, canções, frases, foi a vida de forma plena, nos seus gozos, angústias, doçuras, amargores, sutilezas, asperezas, no vinho, na água, no sangue, na tristeza, na felicidade. O verso do Chico é preciso: "cheire Vinícius". É pelo olfato, na sua visceralidade, que sentimos a onda que é Vinícius. Não precisam se preocupar, não é pra deixar de lado os outros sentidos. Por todos o poetinha se faz presente. 




***



Em 2010, quando residi em Governador Valadares para lecionar na Univale, passamos as primeiras semanas respirando Vinícius de Moraes em casa, pois sem antena e sem cabo, o dvd player ficava ligado e meus filhos ficaram absolutamente fascinados pelo disco (presente que ganhei do caríssimo amigo Guilherme Lentz) que registra um show de Tom e Vinícius para uma tv suiça, acompanhados por Toquinho e Miúcha. Ouviram tanto que sabiam cantar todas as músicas, iam comentando, se encantando, e também a mim. Me senti inclusive instigado a ler uma biografia - gênero absolutamente necessário, entre outros motivos, para conhecer a história da música popular e seus artífices - que encontrei numa visita entre tantas à biblioteca do Campus II. Estava lá - e recomendo
- "VINICIUS DE MORAES - O POETA DA PAIXÃO" de José Castello [confira aqui a resenha no site da editora Cia das Letras]. 

***
Por fim, deixo os links do novo sítio oficial e também da muito bem cuidada iniciativa do "Memória Viva", ótimos pontos de partida para conhecer melhor a vida e a obra de Vinícius de Moraes. Destaco essa seção em que é possível ouvir o poeta declamando alguns de seus poemas.


_______________________
* inspiro-me na imagem do buda lácteo criada por meu parceiro Pablo Castro

15 de outubro de 2013

McCartney ressurge (?!) or, the first septuagenary on the disco

Tinha começado a escrever essa postagem antecipando o lançamento de "New", novo álbum de Paul McCartney, a partir de algo que li em O Globo. O tempo passou, o disco saiu, já ouvi e acabei decidindo fazer a postagem tendo a versão anterior como preâmbulo.
É uma matéria que dá até pano pra manga, mas por enquanto vou reter esse trecho que me divertiu:

"McCartney bem diferente do que lançou “Kisses on the bottom” — uma coleção de clássicos americanos, em 2012. No novo trabalho, Macca está muito mais “moderno”, embora tenha preferido usar apenas instrumentos vintage na gravação das canções, num clima que lembra bastante o seu projeto “The fireman”, que rendeu o ótimo “Electric arguments” (2008)." (Fernando de Oliveira/O Globo). 

Um paragrafo bem pós-moderno e bem ruim, diga-se de passagem. Se "Kisses" tem uma qualidade marcante, é ser moderno, sem aspas. "New" por sua vez pode ser justamente esse retrato musical do "retrô" pós-modernista sob a ótica de Paul McCartney, ao qual o emprego da expressão "vintage" remete, sem que o jornalista tenha percebido.O próprio título da reportagem é muito mal escolhido, ressurgir é um termo estranho de usar para tratar de um músico com a carreira e a presença que tem Paul no universo da música popular. Isso só mostra o estado atual de calamidade da escrita sobre música na grande imprensa.

A partir daqui insiro o que escrevi no facebook, onde rolou um bom debate com a participação de companhias internáuticas de alto gabarito de Rafael Senra, Guilherme Lentz, Thiakov, Alô Prado e Pablo Castro. Tentei agrupar o melhor possível algumas falas, mesmo tirando da ordem em que estavam, na tentativa de criar uma visão um pouco mais sintética da argumentação. Nada impede a conversa de continuar por aqui
...

Para ouvir a faixa título


L.Garcia sem muita aflição: Mais um disco do Paul McCartney. Nem pensei que ia ouvir hoje, mas viva a generosidade incomensurável da Liga dos Internautas Unidos. Alô Prado também sem ansiedade: Na verdade nem ouvi o New, não fiquei nada curioso. Já perdi o lançamento de todos os discos dele até o Press To Play... 

L. Garcia faz uma 1a. apreciação:
A percepção de Paul McCartney que gosto de reter é a de um músico capaz de fazer descobertas, abrir trilhas e ser alvo das tentativas de cópia. Porém ele, em momentos de sua carreira solo, escorrega rumo à banalidade pop e o desejo legitimo de conquistar novos públicos por vezes se confunde com a adesão a clichês de produção, como foi em álbuns como Press to play. Assim, o "novo" pode soar paradoxalmente velho, ainda mais em se tratando de um compositor com uma obra tão vasta. Em casos crônicos ele chega a soar como pastiche de si mesmo - o refrão de "I can bet" diz tudo, é literalmente um "Get back" reciclado. Mas claro que se trata de um grande músico que mesmo nessas circunstâncias consegue acrescentar algo. Quem sabe não será através desse álbum que outras gerações irão ser introduzidas às obras máximas do genial Paul McCartney

G. Lentz comenta faixas: 
Gostei muito de "Early days". Lindo uso da voz envelhecida. Acho que é um disco de muitas texturas novas. "Road", "Appreciate", "Hosanna", "Aliggator" e "Looking at her" estão bem longe da linha usual do Paul. Acho que serão louvadas e criticadas por isso. Gostei muito dos rocks e da balada "Scared". "I can bet" tem uma levada mais dançante muito legal - a propósito, bem lembrada a semelhança com "Get back", Balu! Mas agora é deixar a audição pousar e ver que raízes o disco vai criar.

R. Senra analisa e compara discos: 
A cada audição, gosto mais... creio que, até agora, o classificaria como melhor que os anteriores de inéditas (Chaos and Creation... e Memory Almost Full), mas é cedo pra dizer. 
L. Garcia: Memory Almost Full é um disco que nem lembro direito, mas o Chaos and Creation reputo entre os melhores solo do McCartney. Nesse New não tem nenhuma letra do nível das quem tem nele, por exemplo. Fico com a sensação - ainda que carente de verificação - que o New as canções estão mais a serviço da produção que o contrário. Isso até pode ser interessante mas aqui vejo resultados irregulares. Acabei gostando um pouco mais dessa - "Scared", que dá a sensação de ser uma canção da época do Chaos and Creation que ficou de fora.






R. Senra: 
sobre o Chaos and Creation, acho ele muito bem produzido, mas eu particularmente senti falta de um "algo mais" no disco. Deixo claro que é gosto pessoal mesmo. Nunca prestei atenção nas letras dele, exceto as faixas que Paul tocou naquele video "Chaos and Creation at Abbey Road", como English Tea, e outras que lembro ter gostado. Concordo com o que vc diz sobre Paul, e, no mais, achei que o New herda um pouco da produção modernizada do Electronic Arguments (que diziam ser um projeto eletrônico, mas q achei bem orgânico), com a diferença de que Paul parece retomar um suposto formato tradicional da canção popular em diversas faixas. O saldo pra mim (sempre lembrando que, no calor do momento, as opiniões saem meio enviesadas) é um disco uniforme na qualidade, ainda que sem pontos consideravelmente altos.

L. Garcia:
Acho que o "New" mostra sem dúvida um McCartney que jamais se acomoda, mas que por outro lado às vezes se ressente da falta de uma voz dissonante e discordante na composição. Acho sintomático que o disco proponha algum diálogo na figura específica dos produtores, e não de outros músicos. Assim a aventura da coisa parece estar mais nas timbragens e em alguma medida nos arranjos de modo geral, mas aí, posso até estar enganado, mas não escuto novidade no plano geral, ainda que seja interessante a ideia de um cara na faixa dos 70 procurar uma expressão com um vocabulário sonoro da geração que tem 20,30. E enfim, como letrista, nada me chamou muito a atenção, tirando um ou outro achado aqui e ali. Mas tem mesmo que esperar o "pouso" da audição, como o Lentz disse. 

P. Castro, entrando com a costumeira contundência:
Achei fraco. Ouvi até a metade. Claro que Paul continua com seu profissionalismo composicional, mas muito em círculos. Não é na produção fonográfica que se renova a composição de canções. O som pode até ser contemporâneo, mas as idéias musicais continuam muito antigas. Thiakov provoca: Reclama não Pablo Castro! Presentaço do vovô Macca. P. Castro, na sequência: Mas pra que essa condescendência toda ? Ele não é meu avô, mas parece ter problemas em envelhecer, como, aliás, seu contemporâneo caetano, igualmente incapaz de atingir o nível de seu auge, igualmente tentando oxigenar suas composições com tendências da moda. Pelo menos Caetano ousa mais, ainda que a custo de seu antigo apuro melódico e formal. Paul, aqui, realmente parece , mais do que velho, cansado, recorrendo às velhas formas. Do ponto de vista da composição, esse disco poderia muito bem ser da década de 80, há 30 anos. Claro que há momentos interessantes, mas os automatismos de melodia e harmonia perduram sem tocar no sublime que lhe era tão frequente nas décadas de 60 e mesmo 70. Do ponto de vista das letras, parece ter alguns achados, mas nada realmente muito surpreendente. A grande pergunta é: por que continuar gravando um disco por ano, se ele não acrescenta realmente nada à sua obra. Achei bem mais interessante a ideia do disco de standards do ano passado. Acho que ele poderia redescobrir algumas pérolas dele, que ficaram escondidas em tão extenso cancioneiro. Seria bem mais consequente do que se obrigar a fazer 13 músicas por ano aos setenta, além de turnê mundial , etc. (...) Falo assim , de ele ter respeito com a própria obra. É importante uma certa autocrítica, sei lá. L. Garcia: Concordo em relação à autocrítica. Paul é muito prolixo como compositor e simplesmente não se preocupa com essa de obra, até por já ter feito o que já fez, provavelmente. Claro que poderia usar essa ideia das releituras.

R. Senra: Isso que o Pablo disse é algo que sempre me inquietou. Tudo bem que o Paul exiba uma excelente forma, e faça shows antológicos de 3h de duração até hoje, mas ele passou as ultimas décadas repetindo um setlist composto pelos clássicos dos Beatles (eventualmente até resgatando algumas pérolas da banda, como Benefit of Mr.Kite), e alguns dos seus hits solo. Mas ele tem MUITA coisa boa talvez nunca tocada ao vivo. O próprio Paul disse numa entrevista recente que a ideia de fazer shows na linha "classic albuns" não o agradava muito (o repórter sugeriu que ele tocasse o Band on the Run ou o Ram inteiro ao vivo). Seria realmente revigorante vê-lo sair desse repertório que, ainda que impecável, tornou-se meio que lugar comum (ainda que, convenhamos, é um lugar comum fantástico, rs). L.Garcia: acho que por mais maluco que pareça, o Paul se comporta muito como se ainda fosse preciso dar o show, agradar as grandes audiências, ele respira através disso e provavelmente não sabe viver sem isso.

Encerro com o segundo título, pretensa síntese em uma frase do que seria uma apreciação bem rigorosa do álbum, inspirada pela audição da faixa bônus "Struggle": 
McCartney, the first septuagenary on the disco