Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de dezembro de 2016

Na estante - A noite do meu bem

"A noite do meu bem", de Ruy Castro, pretende fazer para o samba-canção o mesmo trabalho memorialístico que fez o autor sobre a bossa nova com "Chega de saudade" [apresentação oficial, aqui]. É aquele tipo de leitura sob medida para um período de rebordosa. Leitura amena de final de semestre, cheio de trívia, casos, intrigas de bastidor e façanhas de boêmios. Algumas dessas partes estou até pulando sem maior cerimônia. O que vale mesmo é a descrição acuradíssima da noite carioca e das boates, e o desfile do repertório de compositores, intérpretes e canções. Não foi por acaso que adquiri o livro no contexto do projeto de pesquisa "Patrimônio urbano e música popular: os sentidos dos lugares", apoiado pelo CNPq [sobre o projeto, aqui]. Seu maior mérito é o inventário gigantesco de canções, que provavelmente se trabalhado com maior atenção pode ajudar a repensar algumas coisas em relação ao cenário de emergência da bossa nova. Não achei tão bom quanto o outro, mas propicia boas doses de diversão. 
Até quando narra as mortes de alguns dos principais expoentes do samba-canção Ruy Castro o faz com uma certa verve, o que tira um pouco o peso. Mesmo se arriscando às vezes a recair no excesso de trivia misturado com recortes de coluna social e algumas inconfidências, consegue vários arremates com estilo para consolidar o que de fato é o livro - não a pretensa reconstrução histórica, expressão que considero impertinente - mas um belo tributo memorialístico às mulheres e homens que escreveram, cantaram e tocaram algumas das mais belas pérolas do repertório da música popular desse país, o que representa parte de um patrimônio cultural sem qualquer paralelo.

Vou ver se providencio uma playlist - leitores e leitoras convidados a dar sugestões - e nesse meio tempo deixo a canção que inspirou o título, de Dolores Duran.

 


4 de dezembro de 2016

O "gesto" do arranjador na música popular

O arranjo, elemento fundamental em qualquer gravação de música popular, em muitos trabalhos de historiadores acaba ficando em segundo ou terceiro plano, até pela dificuldade de dominar ferramentas que permitam uma análise pertinente. Aquelas propostas pela musicologia tradicional, por exemplo, podem ser difíceis de dominar, além de ser relativamente "estranhas" aos procedimentos próprios da música popular, aos quais muitas vezes não são adaptáveis. O avanço e a difusão de estudos próprios para essa linguagem é portanto mais que bem vindo. É imenso o benefício de contarmos hoje, nas pós-graduações em Música e também outras áreas afins que adotam a música popular como objeto de pesquisa, com cada vez mais estudiosos que tem a formação e a experiência de criação como músicos populares, o que vai consolidando um campo de pesquisa bastante relevante, especialmente entre nós, brasileiros, dada a condição especialíssima que ocupa a música popular em nossa formação social e história cultural.






Acabei de ter contato com um excelente trabalho do amigo Rafael Martini, compositor, arranjador, pianista, multi-instrumentista, músico de duas mãos cheias com recheado e premiado currículo, e que vai também trilhando muito bem o caminho acadêmico. O texto [completo, aqui] - apresentado no contexto do evento "Nas nuvens" promovido pelos programas de Pós-Graduação em Artes da UEMG e em Música da UFMG [para saber mais, aqui] - é elaborado e inteligível. O tema é de grande importância. A apresentação combina clareza, concisão, encadeamento lógico e pertinência. Quem tem uma familiaridade maior com a música e formação na área, certamente fará grande proveito, mas igualmente que está mais pra apreciador, porque está muito bem encadeado e didático, no melhor sentido que o termo pode ter.

Separei um trecho que achei bem significativo:



Observando o problema da tipificação da atividade de arranjo disposta, nessas pesquisas, frente a frente aos seus procedimentos inerentes, podemos diagnosticar seu posicionamento múltiplo, e por isso de difícil delineamento. O fato de, no universo da música popular, o arranjo ser uma “atividade-meio” (ARAGÃO, 2001), que geralmente é situado entre as etapas de composição e performance, faz com que ele possua interfaces, contamine e seja contaminado pelos procedimentos destas duas pontas da cadeia produtiva. Ao reformular, elaborar e adicionar elementos a uma composição popular com fins de prescrever (SEEGER)[1] uma performance da mesma, o arranjo se consolida como uma ponte entre as potencialidades das composições e as possibilidades da performance em direção à produção de sentido.





[1] Para noções de prescrição e descrição na notação e transcrição musical ver SEEGER, Charles: Prescriptive and Descriptive Music-Writing, in The Muscial Quartely, Vol. 44, Nº2 (Apr. 1958) pp. 184-195.

Faço votos para que muitos colegas pesquisadores aproveitem esse tipo de trabalho e possam ir aprofundando as análises sobre música popular contemplando cada vez mais o arranjo como parte de suas investigações.

Agradeço ao Rafa por ter compartilhado e parabenizo os organizadores do evento, que já está em sua segunda edição.
 


--\\//--

O resumo

O “gesto” do arranjador na música popular


Rafael Andrade Martini[1]
Orientador: Prof. Dr. Mauro Rodrigues

Resumo:Contextualização da atividade do arranjo no universo da música popular e breve análise comparada de algumas definições encontradas na pesquisa musicológica. Amparado por discussões como da conceituação da instância do “original” das obras em música popular, propõe-se uma reflexão sobre a valoração do arranjo dentro da cadeia produtiva da música popular, com especial atenção para sua situação como atividade-meio, ponte entre composição e performance, campo de “inter-contaminação” e integração entre as duas.


Palavras-chave:Arranjo musical. Música popular. Oralidade e escrita. Original em música popular

The arranger “gesture” in popular music

Abstract:Contextualization of the activity of arrangement in the world of popular music and brief comparative analysis of some definitions found in musicological research. With basisin discussions as of the regarded onhow the instance of the "original" works in popular music, it proposes a reflection on the valuation of the arrangement within the production chain of popular music, with special attention to its situation as a activity-way bridge between composition and performance, field of "cross-contamination" and integration between the two.

Keywords:Musical arrangement. Popular Music. Oral and writing. Original in popular music



[1] Mestrando, Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: rafaelmartinioficial@gmail.com
 



30 de novembro de 2016

O patrimônio e os panteões: Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular

Como parte das atividades da bolsa de iniciação científica (IC) concedida pelo CNPq para o projeto Patrimônio urbano e música popular: acervos e lugares que coordeno, o bolsista Isac Santana produziu uma pequena resenha que decidimos em conjunto transformar em postagem do blog. O foco é a comparação entre listas de consagração de bens culturais elaborados por políticas de patrimônio e as listas elaboradas por compositores populares para celebrar seus pares. Transcrevi-a abaixo, com algumas pequenas modificações.



Referência: TRAVASSOS, Elizabeth. Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular. Porto Alegre,  03 maio 2006, 11p.  Texto elaborado para o debate A memória da música popular promovido pelo Projeto Unimúsica 2006 – festa e folguedo. [para baixar o texto, aqui]

A autora, em 2008.

Ao falar de música popular em seu texto, Elizabeth Travassos traz os elementos das listas comparando aquelas que foram criadas pelas políticas de patrimônio e as listas feitas em canções populares, apresentando um contraste existente nas análises dessas listas.  Para elucidar seus pensamentos sobre as listas, a autora começa apresentando as proclamações da UNESCO sobre obras-primas do patrimônio cultural oral e imaterial da humanidade, que abrangem praticas, representações, conhecimentos e técnicas, o que nos instiga a olhar as práticas sociais e festas como obras-primas. Dentro dessa lista da UNESCO temos como exemplo arte gráfica e oral dos índios Wayãpi, o canto védico na Índia o teatro de bonecos na Indonésia e a festa dos mortos no México. Ao proclamar esses objetos a UNESCO tenta reconhecer o seu “valor” mas não trabalha esses patrimônios diretamente com os agentes produtores de cultura. A antropóloga Barbara Kirshenblat-Gimblett observa que:  “o patrimônio é um modo de produção cultural que insufla vida nova nos fenômenos culturais em vias de extinção ou que saíram de moda, ao exibi-los como patrimoniais”. Mesmo a lista tendo efeitos importantes  sobre as comunidades geradoras dessas obras é difícil prever os impactos dessas proclamações. Aqui no Brasil, além de participar das proclamações da UNESCO, temos nossa própria política sobre patrimônio imaterial. Os nossos bens culturais são registrados em quatro livros de acordo com a sua categoria: há um livro para os Saberes e Modos de Expressão, outro para as Celebrações, outro para as Formas de Expressão e outro para os Lugares.  Como esclarece Travassos:

Observe-se que os documentos brasileiros não empregam a categoria ‘obra-prima’. Tampouco acentuam o ato de proclamar. Entre nós, a ênfase do discurso está na inscrição em Livros, em registrar por meio da letra o que era falado e vivido sem necessidade da escrita. (TRAVASSOS, 2006, p.3)

A autora destaca propositalmente itens na lista da UNESCO relacionados a música e dança para enfatizar que são sempre grandes potenciais e merecedoras de proteção, e começa então a apresentar as listas que são usadas dentro da música popular. Elizabeth escolhe 3 canções. A primeira canção que usa como exemplo é do Sr. Joaquim Crisóstomo, de São João d’Aliança. A lista utilizada nessa moda traz os nomes dos foliões, parentes e amigos do Sr. Joaquim.


“Nesta hora eu me lembrei

De tudo que já passou

Me alembrei de tanta gente

Que pro céu Deus já levou

Me alembrei de Zé di Telo

E do caixeiro Fulô

Vendo as moda de Domingo

Só a saudade ficou...”







Outro exemplo usado é a canção Paratodos de Chico Buarque: 


“O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano

O meu bisavô, mineiro

Meu tataravô, baiano

Meu maestro soberano

Foi Antonio Brasileiro...



...Viva Erasmo, Ben, Roberto

Gil e Hermeto, palmas para

Todos os instrumentistas

Salve Edu, Bituca, Nara

Gal, Bethânia, Rita, Clara

Evoé, jovens à vista...”






Nessas duas canções, os autores listaram pessoas representativas dentro dos contextos sociais que pertenceram. A primeira traz uma memória local, seus parentes e sujeitos próximos. A canção de Chico também se inicia em um contexto familiar e vai abrindo espaço para pessoas de uma linhagem musical consagrada nacionalmente, composta por membros de várias regiões brasileiras, mostrando assim que a música popular é “paratodos”. Outra lista apresentada bem similar à lista de Chico é Beba dosamba de Paulinho da Viola.

Nessas canções os compositores criam sua própria lista para proclamar seus heróis em forma de registro. A autora as utiliza para mostrar como esses grupos sociais gravam em forma de composição suas memórias, que se assemelha bastante a algumas políticas da UNESCO, como os “tesouros humanos vivos” que atraem novos aprendizes para herdar determinadas sabedorias e estudar com esses mestres. As canções populares aqui descritas ao apresentar figuras celebres também desperta a vontade de aprender os conhecimentos desenvolvidos por esses mentores.  A maior diferença que a autora destaca sobre a UNESCO e as canções populares, é que os agentes da UNESCO que votam e escolhem os patrimônios nunca serão tão próximos e conviventes com os objetos culturais como os compositores das canções. Para ela é importante frisar que "Todas as listas são discutíveis, sob certo ponto de vista, e isso se aplica, naturalmente, à minha própria lista de listas. Seus critérios de seleção sempre podem ser objeto de disputas" (TRAVASSOS, 2006, p.8).

 Concluindo, ela ressalta que ambos buscam salvaguardar memórias, preservar fontes identidade cultural que assegurem a diversidade que é fundamental para as relações humanas.