Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

27 de setembro de 2020

10 das minhas versões preferidas de canções dos Beatles


Só pra comemorar a diminuição parcial - parcial, vejam bem - do servicinho burô, vou mandar uma série com as 10 versões dos Beatles que eu mais gosto. Só a preferência mesmo. 

1- Sarah Vaughan, The fool on the hill.

 

Segunda da série de versões de canções dos Beatles, na que pra mim é insuperável, quiçá uma das maiores versões de todos os tempos, uma transcriação como poucas já se ouviu.

2 - Norwegian Wood - Milton Nascimento e Beto Guedes.

   

Continuando a série de versões maravilhosas de canções dos Beatles, com trocadilho. 

3 - We can work it out, Stevie Wonder:

 

Quarta da série, um versão de um dos mestres do ofício, daqueles que emite seu reflexo capturado na canção alheia. Neste caso ainda mais marcante pelo fato de ter sido mais literal ao seguir a intenção da letra que seu próprio autor, Lennon, que acabou embalando seu angustiado pedido de socorro na capa da beatlemania.

4 - Help! Caetano Veloso.



A quinta da série de versões de canções dos Beatles, totalmente inesperada e inusitada. Um deslocamento tremendo que beira a invenção de outra canção, atravessando o Atlântico rumo ao Caribe e a um sentimento de solidão com cores bem diferentes da original. Guardo meu sentimento de surpresa da primeira audição.

5 - Eleanor Rigby - Cássia Eller.


A sexta da série de versões preciosas de canções dos Beatles é de chorar. Nina Simone, alta sacerdotisa do soul, que eles adoravam, embala nossos ouvidos em sua interpretação dessa pérola solar de George Harrison. É certamente uma das glórias maiores de um compositor ser gravado por uma artista de quem ele próprio é admirador desde sua própria formação.

6 - Here comes the sun, Nina Simone


Sétima versão brilhante de canções dos Beatles, essa também traduzindo a letra para o português. Baile de Joyce Moreno ao conseguir tanto verter por completo o papo da letra quanto lançar umas pitadas brasileiras (Inamps, por exemplo) que lançam luz ao original sem tampar seu brilho.

7- When I'm Sixty-four / Velhos no Ano 2000 Joyce Moreno


Oitava da série. Ella não poderia faltar, uma das maiores damas do jazz, puxando pro seu universo a canção pop romântica com um pequeno tempero de luta de classe.

8 - Can't buy me love, Ella Fitzgerald



A nona da série, singeleza a toda prova, muitas lembranças e inspiração.

9 - Across the universe, Toninho Horta.


E eis a última da série de 10 versões preferidas de canções dos Beatles. Essa escolhi junto com uma lembrança cara, de ter visto literalmente a última apresentação do Uakti, com a família, em praça pública. Inesquecível. Queria por o disco todo mas escolho essa do Harrison, que Sinatra classificou como a maior canção de amor de todos os tempos mas pensou que era de Lennon e McCartney. Sinto muito, Frank... aqui é Uakti.



P.S. Vou acrescentar essa bela apresentação de ontem do Trio Amaranto, composto pela querida contemporânea de Fafich/UFMG Flávia Ferraz e suas irmãs Lúcia e Marina. São versões lindas e cheias de personalidade, com citações lúdicas e bem propostas de outras canções, entremeando também algumas autorais que beberam das águas do rio Mersey. 




21 de setembro de 2020

PAU BRASIL

A temática política sempre faz parte das minhas intenções na hora de fazer letras de canção, mesmo que não seja uma sugestão direta ou uma demanda explícita do parceiro que me manda a melodia. Lógico que isso não implicar em adotar uma forma de expressão panfletária, ideológica e manifesta. Mas a coisa não anda fácil no Brasil, temos convivido com tal intensidade de ocorrências absurdas em nosso cenário político que fica simplesmente impossível evitar essa tecla.

Foi assim que nos idos de 2019 finalizei a letra dessa canção cuja música me foi mandada pelo parceiro Daniel Guimarães. Era um negócio que já puxava a contundência, uma coisa roqueira e até mesmo marcial, mas que ao mesmo tempo tinha uma segunda parte mais melodiosa que sugeria como que um comentário ou ponderação à primeira. Nesta mesma época, eu estava lendo as correspondências entre Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade, e pensando muito sobre a brasilidade e suas contradições. Ainda que tenha sido de outro Andrade, o Oswald, que tenha pintado a inspiração para o título e o mote geral da letra. Para mim ter um título, ainda que provisório, dado por mim ou sugerido pelo parceiro, é quase indispensável. Neste caso foi muito certeiro, eu senti de cara que ia ser e ia puxar o resto da linha. Investi sobre a bandeira e os signos nacionais, talvez sob inevitável sombra de palmeira lançada por canções como Geleia Geral de Gil e Torquato ou da letra original de Fernando Brant para Ao que vai nascer. Daí a escolha de substantivos muito óbvios, um inventário militaresco pintando o quadro que é tão alusivo de conflitos entranhados em nossa História mas que igualmente se apresentam no agora, com suas cores próprias.  

Acabei de me dar conta que com os últimos acontecimentos a canção ficou ainda mais necessária. Por vezes o mínimo a fazer é produzir uma explosão catártica, para pelo menos não ficar simplesmente assistindo de camarote enquanto soterram o firmamento.

 


Pau Brasil (música de Daniel Guimarães e letra de Luiz H. Garcia)

Êêê chei-
ra o sangue, o arame, o metal
terra Brasil, ouro e pó
mata bandeira nacional

Êee fi-
ra, a mira, o animal
rito primal, pelotão
fuzil, trincheira, invasão

(b) A guerra, que erra e desfaz
Atrás da divisão
Soterra então
O firmamento

Êêê ati-
ra a pedra, o gás, o pau
tiro frontal, camburão
linha de frente, Capital