Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de abril de 2017

Sonhos acordes 1 - Dia desses sonhei Tom Jobim

No final do ano passado, numa conversa facebookiana com o amigo e colega pesquisador João Marcos Veiga, ele me contou que sonhara com Tom Jobim. Achei esse lance notável, e fiquei dando tratos à bola. Surgiu então a ideia de lançar uma série, em que eu chamaria convidados para escrever livremente em formato de ensaios curtos sobre um encontro imaginário com um músico que admira. Nasceu assim "Sonhos acordes".
Nada mais justo do que ser o próprio instigador da ideia o estreante, e como os leitores poderão constatar é uma estreia galante, totalmente digna para homenagear nosso maestro soberano. 


Dia desses sonhei Tom Jobim
por João Marcos Veiga
Dia desses sonhei Tom Jobim. Antes dele, porém, me veio um cheiro de terra molhada em fim de tarde de março, com o calor logo a misturar as estações. Estava eu não sei em que espaço, num tempo suspenso e inebriante, mas igualmente premonitório de algo grandioso que me rondava, como se estivesse dentro da introdução de "O Boto". Em meio a sons e gostos que ainda não distinguia, eis que o vi ao longe, sozinho numa trilha, camisa aberta, uma mão a segurar o chapéu e a outra a apontar, com olhar atento, o remexer das folhas na copa de uma figueira. É o vento ventando, é uma ave no céu. Talvez jereba imitando o vento, expandindo suas asas soberanas. Tom sorriu. No turbilhão próprio dos sonhos, logo fui tragado pelo desfilar de cenas indistintas. Tomando assento lentamente, passei a distinguir as cores do cenário no qual eu me corporificava, pouco coerentes com a primeiro. Estava eu numa festa, à beira de uma piscina e também de um imenso rio. Pessoas dançavam alegremente, com ares de ritual indígena, ao som de um carimbó. Aromas inebriavam aquele ambiente insólito. Em estado de vertigem, atento que ao meu lado agora está Tom Jobim, confortavelmente segurando uma caipirinha de carambola. "O Brasil é uma coisa né, meu jovem", disse soltando  uma jocosa gargalhada. Dando por mim em tal situação, tinha eu pressa de não perder aquela oportunidade de conversa ribeira com Antonio Carlos Jobim. "E a bossa nova, a música brasileira, onde foram parar?" Mas o maestro não parecia interessado naquele assunto. Queria saber da pimenta-de-cheiro que salpicava seu olfato, dos vestidos que cintilavam naquela dança. Mas sobretudo se divertia em identificar sabiás, rolinhas, bem-ti-vis e toda a natureza que resplandecia em nosso entorno. Eis que, me passando a caipirinha de carambola, parecia cansado, nostálgico, como se quisesse talvez descansar à sombra de uma palmeira que já não há. Where is te paradise i've made for you. Where is te greeen? And where is the blue? "O Brasil é um caso sério, meu rapaz", disse ele voltando a sorrir, apertando os lábios para melhor sentir o gosto da cachaça que sorvia. Quando já bolava eu assuntos e questões para dar prosseguimento àquele rumo de nossa prosa, eis que me encontro novamente sozinho naquela Terra Brasilis, com o sol a desmaiar ao longe. O sonho é o mistério profundo. É o queira ou não queira.


P.S.  do editor
Me  ocorreu que seria consequente encerrar sempre com alguma música do 'sonhado'. 
Escolhi O Boto (Jobim/Jararaca)

12 de abril de 2017

Artistas da fome e o valor da bolacha

Comecei a ler ontem A sociedade sem relato, do antropólogo Néstor García Canclini, que vamos debater no grupo de pesquisa interdisciplinar sobre patrimônio cultural que coordeno junto com uma colega aqui na UFMG. O livro está longe de oferecer respostas fáceis e reconfortantes, mas tem a vantagem de começar por boas perguntas. Transcrevo alguns trechos da orelha e da contracapa para dar uma pista sobre o conteúdo da obra:

"O que fazer com a insignificância e com a discordância de relatos diante de um mundo que se mostra ingovernável, em que as grandes narrativas já não são mais possíveis e o modo de produção e interação social já não encontra uma teoria que o organize? (...) Na ausência de relatos totalizadores, o que fazer com aquilo para o que não encontramos respostas? (...) a arte, não mais circunscrita pelos limites estreitos e específicos do campo artístico, é, para Canclini, o lugar da iminência: esse momento preciso em que tudo é possível, em que os desacordos tornam-se visíveis e os sentidos são reconstruídos (...)".

Ainda vou ter que avançar mais na leitura para amadurecer uma apreciação menos superficial e decidir quais os meus acordos e discordâncias. Como o dilema arte x mercado entra na mira do livro eu me lembrei de algumas considerações escritas ano passado que acabei não publicando, refletindo sobre as condições da criação artística num contexto de diluição da valoração - ou indiferença ao valor, dependendo da mirada. Me perguntava então sobre o que ocorre quando o relativismo desavisado leva a comunidade de ouvintes a deixar o mercado falando sozinho na hora de dizer o que pode ser produzido, circulado e ouvido. Isso foi de encontro a algumas reflexões do parceiro Pablo Castro sobre o sentido ou não do músico popular insistir na produção de discos. Acabei portanto reunindo os dois escritos no intuito de polinizá-los mutuamente, ainda que no debate possamos ir alinhavando melhor as coisas:


Um caminho para responder, ainda que não seja simples, o que é a "qualidade" ou "valor": qualquer distinção que se atribui a partir de critérios que se elege em embates simbólicos que são dinâmicos e mudam, inclusive no tempo, embora alguns desses critérios possam ter maior durabilidade do que outros. Acontece que são diferentes agentes capazes de interferir nos debates, com recursos diversos e desiguais. Temos aí alternadamente o fã, o crítico de jornal, o programador de rádio, o produtor de gravadora, o músico de estúdio, o compositor profissional, o intérprete que trabalha em casas noturnas, o professor de música, o pesquisador acadêmico, e por aí vai. Se por exemplo aqueles que integram um circuito mercadológico elegem a vendagem como critério mor, eles tem consideráveis recursos para afirmá-lo. E uma grande mudança foi que agentes que tradicionalmente apostavam em identificar e avaliar critérios de ordem estética, criativa, etc., como críticos, pesquisadores acadêmicos, alguns produtores e gerentes de gravadora, e mesmo muitos músicos, agora hesitam em empregá-los. Assim, sobra ao mercado uma hegemonia tremenda para definir valor, sem maiores contestações. 

O que é notável é que num determinado momento, cerca de 60 anos atrás, a indústria fonográfica e os mass media estabeleceram relações "forçosas" com critérios estéticos objetivos, com a categoria dos críticos, com os debates entre pares, com as preferências de diferentes camadas do público. O que ocorreu é que depois a indústria e os meios descobriram como mudar o modus operandi de modo a basicamente dispensar essas relações, assumindo que a lógica de consumo mediaria sozinha a apreciação da música popular, particularmente a que se dá com maiores taxas de vendagem. Portanto, discutir qualidade é, entre outras coisas, discutir nosso hábito de ouvir e apreciar música, se temos ou não a disposição e o interesse em avaliar criticamente como e porque elaboramos nossas preferências. Se o único dado que informa nossas escolhas for a vendagem, a "embalagem", fatalmente nos vemos a consumir mais do mesmo. Ou seja, assegurar a diversidade e o "espaço de criatividade" na música depende de reconhecermos objetivamente suas qualidades, promover uma escuta atenta e exigente para elas. Está muito longe de ser uma proposta de elitização do gosto, é pelo contrário, a efetiva democratização do gosto.

O relativismo desavisado, como já comentei em muitas discussões como essa, significa no final o esvaziamento de sentido do próprio trabalho criativo nos termos que definem a valoração da produção musical. Consequentemente, perde-se capacidade de reivindicar a remuneração desse trabalho, por exemplo, que seja em outros termos que não os do mercado. É uma tremenda armadilha, em matéria de sobrevivência, pois em outras artes se o artista tem como assegurar essa validação ele pode fazer o trabalho que considera "de qualidade" e ser reconhecido e pago pelo público que valoriza essa qualidade. Se na música só resta o critério de mercado, qualquer artista que quiser questionar esse critério poderá se condenar a passar fome ou ser impedido de fazer dela sua profissão.

Luiz H. Garcia

Toda essa estória de fazer o Disco do Tênis com o Lô, ensaiar a banda, tirar os vocais, tratar com carinho cada passagem de um álbum com quase meio século de lançamento, me pôs a pensar sobre o valor da fonografia enquanto sustentáculo da arte musical.
De coisa de cem anos pra cá , foi possível que não só a partitura fosse escrita, mas o som gravado, e tal tecnologia permitiu que a música fosse encarada, ainda que em circunstâncias específicas, uma arte de registro para além do texto musical propriamente dito : a música enquanto performance e produção de som. Posteriormente a própria confecção dos discos tomou outra proporção, aliando uma série de artifícios de estúdio de modo a atingir efeitos praticamente impossíveis numa performance ao vivo.
Mais do que isso, uma coleção de discos se tornou uma janela para a vida sonora, como que um compêndio das possibilidades humanas em forma de arte musical. Passou a ser exequível um artista só fazer discos e nunca se apresentar ao vivo. Foi o caso do cantor e compositor Harry Nilsson, de quem os Beatles eram fãs confessos ; mas também dos próprios Beatles durante a confecção de seus álbums mais ousados, e de artistas brasileiros como Chico Buarque, que passou anos sem fazer um show mas produzindo intensamente canções, discos, livros e peças teatrais.
Tudo isso apenas para responder à provocação do amigo Rafael Mendonça, que outro dia questionava se algum artista independente ainda acalentava a ilusão de ganhar dinheiro com venda de discos ou fonogramas. É fato que, do ponto de vista pragmático, o artista fora-da-mídia pode chegar à conclusão certeira de que entregar de graça a música que faz seja uma das únicas formas de divulgar seu trabalho e daí conseguir fazer shows, a única forma realmente ainda eficaz de ter seu trabalho remunerado num mercado esquizofrênico e tomado por monopólios criminosos como é o caso da música do Brasil hoje.
Mas do ponto de vista da afirmação artística de nossos trabalhos musicais, continuo achando a produção de discos crucial para que nos entendamos como artistas, seres que buscam a perpetuação de uma obra para além de suas vidas performáticas. Acho a revalorização do vinil uma idéia bastante interessante, porque o próprio aspecto do vinil redunda numa valorização maior ao conteúdo fonográfico inscrito sob suas ranhuras.
E do ponto de vista dos mecanismos de financiamento à cultura, urge lembrar aos colegas a necessidade de que não abramos mão de ter discos financiados , com tudo que lhes é de direito : arranjadores, músicos contratados, projetos gráficos caprichados, acesso aos melhores equipamentos.
Ainda que 90% da população ouça música hoje de uma forma completamente diferente do que há 20 ou 30 anos, isso não justifica que os artífices deste campo de produção simbólica tenham que abrir mão de suas formas mais consagradas e artisticamente relevantes de produção sonora. É uma questão de perenidade e confiança na contribuição de cada um de nós para um campo que já definiu muito do que somos.
Pablo Castro

P.S.
Retorno brevemente ao livro de García Canclini para de algum modo alinhavar as reflexões, a partir de um quadro em que a tradição não assegura sua perpetuação e a arte pós-autônoma "trabalha nos rastros do ingovernável". Nesse tempo de erosão não se pode confiar em manter o passado por definição nem tampouco ter certeza de que a novidade irá irremediavelmente substituir o que há para melhor. É possível que o trabalho de apoderar-se de algo do passado que possa ter sentido no presente possa de algum modo ter uma relação espelhada com o desejo de capturar, nesse mesmo presente, algo que não é mais do que um vir a ser. Ele aposta que a arte pode ainda falar do que resta de enigma a partir do reconhecimentos das tensões não resolvidas que guardam o possível. Nós, de certa forma, também.

9 de abril de 2017

Os Beatles - apreciação e análise por Howard Goodall

Esse documentário é simplesmente genial, uma combinação perfeita de didática com argúcia, clareza e profundidade. Vira e mexe os detentores dos direitos das músicas dos Beatles dão um jeito de retirá-lo do You Tube. Então vou aproveitar a maré de sorte e publicar logo. Pena não ter a legenda em inglês, mas com um pouco de paciência quem tem alguma noção consegue entender. E também é perfeitamente compreensível para quem não tem formação acadêmica em música.Na realidade, a gente aprende um bocado sobre esses aspectos musicais, que Howard Goodall consegue comunicar muito bem.






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8 de abril de 2017

Lô Borges "Meu Filme" ao vivo no Rival (RJ) 1996

Sempre quis postar o vídeo desse show, em que o Lô, ladeado pelos competentíssimos irmãos Beto e Wilson Lopes, todos aos violões, desfia várias pérolas de sua obra e as novas canções do então recém lançado "Meu Filme". Em geral encontrava cópias com má qualidade de vídeo, ou de áudio e vídeo, como essa. Vale pelo depoimento incial do Lô, falando de sua relação com o violão, e para sacar a música que abriu, que foi Para Lennon e McCartney, com o Lô sapecando um solo no final. De Equatorial em diante já podemos passar a assistir nesse vídeo diferente, que acabei de encontrar. Se a qualidade do sinal do som não é maravilhosa, o vídeo sim, é o melhor que eu já vi desse show.


Seria maravilhoso se isso um dia fosse um DVD. Uma das coisas que me preocupa no eminente sucateamento da rede pública de televisão é justamente o acervo que está constituiu, muitas vezes na contramão do que o mercado procura destacar. Certamente em meados dos anos 1990, se quisermos saber de toda uma produção da música popular brasileira que não se prendia às necessidades e ambições comerciais, vamos ter que recorrer ao acervo da tv pública, como Cultura, Rede Minas e TVE - Rio, que foi quem registrou esse belo show de forma que pudéssemos assisti-lo mais de 20 anos depois.


5 de abril de 2017

Aula de canção: Canto de Ossanha, ou pequeno tratado contra o anacronismo

Em meio a mil afazeres tirei alguns minutos para tirar a poeira do blog. Sem tempo pra inventar muita moda, e parcialmente motivado pela apresentação que o jornalista Lyra Neto acabou de fazer agora à tarde na Fafich UFMG de seu livro Uma história do samba: as origens (1° de uma trilogia sobre o gênero)  que me levou a um comentário sobre tantas leituras anacrônicas que vem sendo feitas a partir de analogias um tanto quanto descuidadas entre os sambas de 1920-30 e os funks da atualidade, ou entre a misoginia dos sambas-canção de 1950 e do pagode contemporâneo, por exemplo. Nesses eventos o tempo para debate nem sempre é suficiente, e dependendo do contexto a coisa morre por ali mesmo.  O anacronismo, denunciado por todos aqueles historiadores que são as referências de minha formação, é um equivoco imperdoável para o profissional do ofício. Cada tempo tem seus valores e relações, e é preciso evitar nas avaliações retrospectivas julgar os atos e dizeres das pessoas de outra época com se fossem nossas contemporâneas. "The past is a foreign country: they do things differently there", "O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas distintamente por lá", diz o poema de Hatley do qual o geógrafo David Lowenthal emprestou o título de um livro seminal sobre patrimônio e memória escrito nos anos 1980s que lamentavelmente até hoje não foi editado no Brasil. 

Mas me lembrei dessa postagem que ficou rascunhada, escrita ano passado. Em seu blog Farofafá o jornalista Pedro A. Sanches, comentando a apresentação da cantora Elza Soares na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, começou dizendo o seguinte:

"Os versos são de Vinicius de Moraes, o poetinha ex-diplomata que nunca chegou a ser o mais progressista dos brasileiros. A música é de Baden Powell, que no final da vida extirpou a palavra “saravá” de suas canções e substituiu os antigos cantos de candomblé pela religião evangélica. Transtornado por Elza Soares, o “Canto de Ossanha” (1966) de Baden e Vinicius constituiu-se, para boas entendedoras, no grande momento político da cerimônia planetária de abertura das tristes Olimpíadas do Rio de Janeiro." [aqui o texto completo]


Eis a interpretação de Elza, com arranjos significativamente turbinados por batidas eletrônicas que ao final assumem a forma mais típica que se utiliza nos funks atuais - só a título de observação nenhuma das batidas faz jus à elaboração rítmica do afro-samba. Enquanto o narrador 'conceitua' pop (obviamente desconsiderando toda teoria social que já se debruçou sobre o assunto), Elza, visivelmente debilitada, manda uma interpretação até solene, que contrasta tanto com o arranjo quanto o cenário - nesse sentido ela não foi nada pop.


 


O que escrevi como comentário, no próprio blog dele, transcrevo abaixo, a modo de concluir :

Concordo com boa parte da sua interpretação, mas com um ressalva. O princípio do texto não faz jus aos AUTORES da canção. Por que, para empoderar quem quer que seja, é preciso trair ou desmerecer os esforços e o sentido que estava posto antes? Vinícius e Baden merecem todos os elogios por tudo que representam os afro-sambas [uma postagem a respeito, aqui]. E a Elza Soares não transtornou nada, ela derivou o sentido diretamente do que estava lançado lá. Perdeu-se nesse tempo de binarismo e identitarismo barato a capacidade de reconhecer a empatia. A descoberta do Outro e a capacidade de compreender e solidarizar com seu sofrimento, ainda que sem vivê-lo na carne. A capacidade do poeta de fingir, no sentido que emprega Pessoa. Se Vinícius não era o mais progressista (?!), em seu tempo foi deveras progressista - quantos brancos educados e privilegiados de sua época devotaram qualquer entendimento ao universo religioso afro-brasileiro? Poucos. E se Baden converteu-se no final da vida, não importa quando o que cumpre é qualificar sua obra  - no caso em questão a forja poderosa de seu violão fabricando uma modalidade absolutamente original de canção - a partir da qual intérpretes do quilate de Elis, Mônica Salmaso e Elza Soares encontram o solo onde plantar o grão de suas vozes. Os dois merecem toda a consideração de quem fizer crítica musical tendo sua obra em pauta. Saravá.   



 E ouçamos Elis, numa de suas poderosas interpretações ao vivo da canção:



Canto de Ossanha
Baden Powell e Vinicius de Moraes

-"O canto da mais difícil
E mais misteriosa das deusas
Do candomblé baiano
Aquela que sabe tudo
Sobre as ervas
Sobre a alquimia do amor"

Deaaá! Deeerê! Deaaá!

O homem que diz "dou"
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz "vou"
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!
O homem que diz "sou"
Não é!
Porque quem é mesmo "é"
Não sou!
O homem que diz "tou"
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha
Traidor!
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!...

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...

Amigo sinhô
Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha
Não vá!
Que muito vai se arrepender
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...(2x)