Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

22 de novembro de 2013

Notas sobre a história da fonografia no dia do músico

Acabei de participar, com muita satisfação, da banca da defesa de tese de Marcos Edson Filho, Memórias, discos e outras notas: uma história das práticas musicais na era elétrica (1927-1971). Calhou de ser justamente no dia do músico. Na ilustríssima companhia de Dra. Regina Helena Alves da Silva (orientadora) História - UFMG; Dr. Guilherme Caldeira Loss Vincens - Música - UFSJ; Dra. Glaura Lucas - Música - UFMG; Dr. José Newton Coelho Menezes - História - UFMG, falamos de fonografia, técnica e cultura de gravação, práticas musicais dentro dos estúdios, intérpretes, instrumentistas, arranjadores, técnicos de som, iconografia, história oral, musicologia, etnomusicologia, metodologia, fontes diversas e outras notas. Junto com arguições pertinentes, elogios, puxões de orelha, troca intelectual da melhor qualidade, reinou o bom humor, que foi a tônica (ou seria a dominante?) da defesa que trouxe, nesta quente tarde de sexta, um pouco de alento e porque não dizer, alegria, em meio aos cansativos e acumulados trabalhos de final de semestre.
 

20 de novembro de 2013

Um Brasil bem perto daqui

Parei tudo aqui e estou ouvindo, com grande interesse, o LP Imyra, Tayra, Ipy - Taiguara (1976) de Taiguara, só agora relançado no Brasil em CD [uma boa reportagem sobre o disco, aqui]. O som é exuberante, elaborado, e as letras contundentes, cinematográficas, brilhantes. Um disco denso, desafiador, que burlou a censura mas acabou sendo recolhido poucos dias depois de seu lançamento. Retrato vivo de seu tempo e simultaneamente uma leitura da história do Brasil e do continente americano. Feito no emblemático ano de 1976, que já abordei em outras postagens do blog. Além das 13 faixas compostas por Taiguara, figura uma versão solitária, e mais do que significativa, de Três Pontas (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos). Não é pura coincidência o disco ter sido gravado na EMI-Odeon, casa que abrigou boa parte daquela turma simbolicamente reunida numa certa esquina. O diálogo com o Clube e com as pontes panamericanas propostas por Bituca e cia. é mais do que audível, e reverbera também pela atuação de seus membros ilustres como Wagner Tiso, Toninho Horta, Nivaldo Ornellas e Novelli. Entre outras feras presentes, incluindo Hermeto Pascoal (responsável por alguns dos arranjos), Jacques Morelembaum, Paulo Braga...
Vale conferir ainda o site oficial do CD, bem cuidado e fazendo jus à obra que motivou sua existência. Destaque para as seções "letras" (traz fichas técnicas faixa a faixa), "entrevistas", "depoimentos" e "a censura". Mas todo o sítio vale a visita. E agora vamos ouvir que é o que mais interessa:

P.S.
Um dos melhores atrativos de manter o blog é a possibilidade de ir incorporando novos elementos e aperfeiçoando as postagens. Não é que hoje (28/12/2013) meu parceiro Pablo Castro, habitual colaborador aqui, resolver escrever algumas linhas sobre o disco. Também vale a leitura o certeiro texto do excelente cantautor Makely Ka, aqui.

Por Pablo Castro:
Acabo de escutar a obra-prima de Taiguara , seu disco censurado Imyra, Tayra, Ipy , Taiguara, de 76, ano em que nasci. Na verdade, eu já era familiar com seu disco Piano e Viola, de 72, que constava na coleção de vinis de meu pai. Eu gostava daquele disco, reconhecia o refinamento de suas melodias e seu domínio expressivo do piano, embora considerasse que ele sucumbia a algumas soluções excessivamente sentimentais e torrenciais em alguns momentos. Impressão parecida tive outro dia a escutar um LP anterior, de 69.

Mas Imyra,Tayra, Ipy, Taiguara é arrebatador. Essas torrentes emocionais que sempre acompanharam suas músicas dessa vez são totalmente naturais e a orquestração, simplesmente fantástica, épica e expressiva, está entre as mais inspiradas de toda a produção fonográfica brasileira. As canções são nada menos que estupendas, começando com um refrão que diz : " eles querem lotar o maracanã" , aliando as assertivas pianísticas de Taiguara com um nível de orquestração que beira o sentimento sinfônico. Esse trangredir de fronteiras se vale também de experimentações tecnológica, com o uso despudorado de reverbers, ecos, truques analógicos, e também da retórica intrumental de nomes como Hermeto Pascoal , Toninho Horta , Nivaldo Ornellas, Wagner Tiso , Jacques Morelembaum, Zé Eduardo Nazário, Novelli , Paulo Braga, Lúcia Morelembaum . Esse disco realmente é um Rio Amazonas de expressividade grandiosa , o que também transparece no canto arrojado do cantautor, se valendo de notas longas, falsetes, sempre com melodias rigorosas em suas redondezas. A harmonia transparece um diálogo com Milton Nascimento, para cuja canção Três Pontas ( em parceria com Ronaldo Bastos ) ele apresenta um arranjo espetacular, que chega a superar o original.

As letras falam do auto-exílio ao pé da letra e daquele auto imposto pela censura no Brasil. A sua atualidade é tocante. Que justamente esse disco tenha sido totalmente censurado é mais um testemunho de um crime da ditadura militar contra a cultura brasileira. Que ele e seu autor ainda não tenham sido redescobertos e consagrados pela grandiosidade de sua obra atesta a nossa empobrecida relação com a memória musical de um país que é um país de canções : aquele Brasil idílico de que teimamos não conseguirmos nos desvencilhar.





P.S. 2019
Encontrei esse trecho do programa Metrópolis de 2014, com depoimentos de Wagner Tiso, Jacques Morelembaum e Novelli a respeito do processo de gravação do disco, do trabalho com Taiguara e dos acontecimentos que cercaram aquele período.


17 de novembro de 2013

1a. c/ a 7a. Dona Olímpia

Dona Olímpia, personagem popular de Ouro Preto, inspirou a belíssima canção homônima de Toninho Horta e Ronaldo Bastos. Descobri por andanças digitais esse trecho de um curta sobre ela, cuja trilha é assinada pelo Toninho, que em sua gravação de 1979 inseriu justamente o áudio do documentário no início da faixa.



Ficha Técnica [do site do Arquivo Público Mineiro - completo, aqui]

Grupo Novo de Cinema apresenta; Um filme de Luiz Alberto Sartori Inchausti; Fotografia e câmera: Maurício Andrés, Ricardo Stein; Roteiro: Sartori, Geraldo Linares Filho; Música: Toninho Horta; Som: José Sette de Barros Filho, Ricardo Stein; Montagem: José Tavares Barros, Sartori; Produtor: Alfredo Antônio; Co-produtores: Maurício Andrés, Sartori; Equipe produção: Flávio Ferreira, Antônio Maria de Oliveira, Jair Carvalho Junior; Agradecimentos: Banco Minas Gerais SA, Hotel Restaurante Pilão, Escola Superior de Cinema UCMG, José Aloísio Teixeira de Souza, Intercâmbio Mercantil Ikay LTDA, Taverna do Chafariz, Prefeitura de Ouro Preto, Contur-cia Nacional Turismo.

Palavras-chave

Ouro Preto; praça Tiradentes; dona Olímpia; moradora ouropretense; turistas americanos; centro histórico de Ouro Preto.

Sinopse

Documentário sobre Dona Olímpia Cota, personalidade popular de Ouro Preto. O filme mostra Dona Olímpia contando fatos de sua vida, sua história e sua rotina, intercaladas com imagens da cidade de Ouro Preto e seus habitantes.


12 de novembro de 2013

Atravessando o deserto


Vale conhecer e vale muito apoiar mais um aventureiro que se dispõe a desbravar a mata, enfrentar a tempestade, subir o Everest ou atravessar o deserto em busca de novos caminhos para o destino da canção. 
Falo do Rafael Dutra, que atualmente grava seu CD solo de estréia, Oásis de Vidro. Conheci melhor o trabalho dele através da mostra Cantautores [confira o som aqui], que já se tornou importante evento para a difusão da produção autoral de canções em Belo Horizonte. Aliás, é a cidade que propicia os encontros inesperados e auspiciosos como o que tivemos recentemente saindo de ônibus do campus da UFMG dias atrás. Falamos sobre o projeto do disco e assuntos de momento, mas sobretudo das canções e dos múltiplos caminhos da sua criação. Papo da melhor qualidade, cujo saldo seria difícil expressar aqui de uma forma precisa, até porque certamente o melhor seria revisitar a conversa pela memória de ambos interlocutores. Diria, em suma, que foi uma pródiga troca de impressões e experiências. Mas o que interessa mesmo é deixar aqui o convite para que o leitor acesse a campanha de financiamento via Catarse para finalização do disco, conheça melhor o trabalho do cara e se antecipe para ter em mãos esse primeiro registro fonográfico solo e demais produtos oferecidos. Passe lá e confira!


6 de novembro de 2013

Museu Clube da Esquina e lugares da cidade na Semana do Conhecimento e Cultura da UFMG 2013


Parte das atividades de pesquisa que venho desenvolvendo envolvem a orientação de bolsistas de iniciação científica. É uma satisfação apresentar a seguir uma síntese do trabalho recentemente apresentado pela bolsista Julianne Paranhos (o texto e as fotos são dela):

Durante a Semana do Conhecimento e Cultura da UFMG, que ocorreu entre os dias 21 a 25 deste mês, apresentei (Julianne Paranhos) os primeiros resultados das pesquisas desenvolvidas no Projeto Museu Clube da Esquina: do sonho à cidade, coordenado e orientado pelo Prof. Dr. Luiz Henrique de Assis Garcia. As pesquisas foram realizadas em diálogo entre Museologia, História e Antropologia Urbana, e buscaram perceber os laços simbólicos e de apropriação dos citadinos para com três dos lugares (ARANTES, 1994) demarcados com placas comemorativas pelo Museu Clube da Esquina* – o Edifício Archangelo Maletta, o Edifício Levy e a Esquina no Bairro de Santa Tereza. Muitos dos processos da pesquisa foram expostos aqui na página e aproveito para também compartilhar a conclusão parcial- pois, o projeto ainda está em andamento - apresentada no evento. Os lugares abordados na pesquisa, ao serem demarcados com as placas, transformam-se por meio de uma ação museológica extra-muros (MENESES: 2003). À esquina, locus adotado pelos músicos e letristas para a constituição da identidade da formação cultural em questão, pode ser incluído à ideia de lugar os sentidos atribuídos pelas canções do Clube da Esquina e a placa ali instalada reforça esses sentidos. Já nos Edifícios Levy e Maletta, estas  apresentam aos citadinos seus sentidos de lugar.



As placas celebram situações e ao serem percebidas pelos citadinos, colaboram para trazer à tona memórias de diferentes naturezas marcando no tempo e no espaço os sentidos construídos sobre e no lugar, sentidos estes que se fundem com os novos usos e significados que as pessoas atribuem ao espaço urbano.


“Isso é um memorial, marca um momento, de um tempo onde a galera se encontrava, onde as coisas começaram. É um símbolo, o lugar é um emblema. Santa Tereza é um bairro rico, especifico do pessoal da música e o movimento do Clube da Esquina atrai outros músicos e a música é o que lembra o ambiente, é a música que faz lembrar o fato do passado. As placas guardam a memória de uma coisa que está muito viva.” (Grifo meu) Flávio Emauel. Entrevista concedida à autora no dia 04 de junho, na esquina no Bairro de Santa Tereza.




“Mas você está no lugar errado! O Clube da Esquina é lá em Santa Tereza!” 
“A noite é cara, tem que pagar para entrar nos lugares e os shows na rua acabaram (...). Depois veio a geração do Skank que faz show na praça. Hoje o povo quebra as praças. Hoje o povo não tem cultura e quebra tudo. Antigamente o povo entrava na borracha. A ditadura foi ruim, mas não tinha mendigo, a gente tinha que trabalhar. O povo pede dinheiro para droga, não é para comida. A polícia distribuía borracha”. João Martins. Entrevista concedida à autora no dia 13 de maio, na Av. Amazonas em frente ao Edifício Levy.

“Essa placa aqui cumpre a função de representar a memória de BH. Inclusive o Carlos Drummond de Andrade, frequentava aqui, os intelectuais freqüentavam esse lugar”. Karminha Primo. Entrevista concedida à autora no dia 23 de maio, no Edifício Maletta. 

Espaço de encontro e trocas culturais entre intelectuais, músicos e artistas durante as décadas de 1960 e 1970, atualmente o Edifício Maletta ainda se conforma como um lugar de encontro de pessoas associadas e interessadas com a produção artística em geral. Assim como no caso do Edifício Levy, a placa precisa ser percebida para que o sentido de lugar atribuído, construído a partir da memória do Clube da Esquina, possa ser apreendido pelos frequentadores do lugar. 


Referências Bibliográficas:


  AGIER, Michel. “Introdução”, “Um etnólogo nas cidades”, “Os saberes urbanos da antropologia”, “Situações elementares da vida urbana”. In._:Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, SP: Editora Terceiro Nome, 2011.

  ARANTES, Antonio Augusto. “A Guerra dos Lugares”. In._: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nº 23. Rio de Janeiro: IPHAN, 1994.

  AUGÉ, Marc: Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Marília Lúcia Pereira.Campinas, SP: Papirus, 1994.

  BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

  GARCIA, Luiz H. A. “Canções Feitas na Esquina do Mundo: música popular e trocas culturais na metrópole através da obra do Clube da Esquina”. In._: Revista Brasileira de Estudos da Canção. Natal, n.2, jul./dez. 2012.

  ______________. “Patrimônio Urbano e Música Popular: narrativas plurais na cidade e no museu”. IV SIAM (Seminário de Pesquisa em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola) / 21 ICOFOM LAM.Petrópolis: UNIRIO/MAST, 2012, trabalho completo apresentado em Seminário. (imp.), 12p.
LEITE, Rogério Proença Leite. Contra-Usos da cidade: Lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. 2º Ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Aracajú, SE: Editora UFS, 2007.

  MAGNANI, José Guilherme Cantor. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. In._: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 17, nº 49. Jun., 2002.

  MATTOS, Paulo César Vilara de.  “Entrevistas Márcio Borges”, “Palavra de parceiro Borges” e “Palavras de Parceiro Milton Nascimento”. In._: Palavras Musicais: letras, processo de criação, visão de mundo de 4 compositores brasileiros. Belo Horizonte: s. Ed., 2006.

  MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “O museu de cidade e a consciência da cidade”. In._: Afonso Carlos Marques dos Santos, Carlos Kassel e Cêça Guimarães [Org.]. Museus e Cidades: Livro do Seminário Internacional. Museu Histórico Nacional: Rio de Janeiro, 2003.

  MUSEU CLUBE DA ESQUINA. Guia de Belo Horizonte: roteiro Clube da Esquina. Belo Horizonte: Associação dos Amigos do Museu Clube da Esquina, 2006.

  OLIVEIRA, Roberto Cardoso. “O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir e escrever”. In._: O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora Unesp, 2000.

*O projeto recebe bolsa IC FAPEMIG e apoio da PRPq/UFMG