Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

25 de fevereiro de 2016

Os arquivos do Mersey Beat e a memória da música popular

Acabei de ler essa matéria do Examiner, "Mersey Beat founder seeks permanent home for his Beatles archives" (completa, aqui), que relata os esforços de Bill Harry, fundador e editor do periódico musical Mersey Beat, para dar destino a seus arquivos. Parece incrível que, nessa altura do campeonato, como dizemos, ainda haja dificuldade em encontrar uma instituição que se interesse por algo desse peso que se relacione aos Beatles, mas de fato nem a Apple Corps., nem a John Moore's University, procurados por Harry, abraçaram o projeto. Além de uma boa descrição dos itens que compõe a coleção de Harry, que inclui fotos, áudios de entrevistas, discos, material promocional, enfim, vasto material relacionado aos Beatles e a cena do chamado Mersey Beat, a matéria demonstra os riscos para a memória social quando não existe um arquivo/coleção como esse, e os itens na posse de diversas pessoas vão sendo dispersados, como nos casos do acervo de John Byrne, da banda The Hurricanes, e do disc jockey Bob Wooler. 

Segundo o próprio Harry:

“This is an archive I set up some years ago to protect Beatles and Mersey Beat items for posterity and to have them eventually find a home in Liverpool, probably at one of the universities,” he said. “The Beatles and Mersey Beat Archive will never been broken up and will one day find its permanent home in Liverpool.”

"Este é um arquivo que organizei há alguns anos para proteger itens dos Beatles e do Mersey Beat para a posteridade e para eventualmente encontrar um lar para eles em Liverpool, provavelmente em uma das universidades." ele disse. O Arquivo dos Beatles e do Mersey Beat nunca será fragmentado e um dia encontrará seu lar permanente em Liverpool".

Espero que ele tenha razão. É justamente o que estamos tentando fazer aqui na UFMG com o acervo do Clube da Esquina, através do Centro de Referência da Música de Minas.

20 de fevereiro de 2016

Bolacha completa - O canto dos escravos (1982) Clementina de Jesus, Tia Doca, Geraldo Filme

Em um desses volteios casuais pelas plagas eletrônicas, acabei topando com a reprodução desse disco completo no You Tube, provavelmente tendo como matriz o CD da obra, que foi lançado, pelo que pude apurar, em 2003, pelo Estúdio Eldorado (gravadora que veio a converter-se em selo discográfico). O universo dos cantos de trabalho, tão vasto quanto o próprio planeta terra e sua história, não cabe nessa postagem. É tão somente uma primeira incursão, à espera das próximas. Como encontrei boas resenhas e material farto, optei por reproduzir os trechos mais relevantes, inserindo links para os leitores que desejarem continuar a leitura nas fontes originais. 

Texto de Mauro Dias, em Agenda do Samba-Choro [completo]

Um dos títulos mais importantes e corajosos da fonografia brasileira acaba de chegar, 21 anos depois do lançamento em elepê, ao formato digital. Trata-se de O Canto dos Escravos (dentro da série Memória  Eldorado), coleção de 14 cantos da série recolhida por Aires da Mata Machado Filho no fim dos anos 20 do século passado, em São João da Chapada, município de Diamantina, Minas Gerais. Interpretando os cantos, Tia Doca, pastora da Velha Guarda da Portela, Geraldo Filme, um dos nomes fundamentais do samba paulistano, e Clementina de Jesus, a rainha negra da voz, como a definiram Moacyr Luz e Aldir Blanc.(...)
Marcus Pereira era um publicitário amante da música que criou o selo para dar brindes aos seus clientes, nos fins de ano. Aos poucos, abandou a rendosa publicidade, na qual era muito bem-sucedido, e ficou só com a gravadora, que viveu sempre grandes dificuldades financeiras. (...) Os que se juntaram a ele tomaram o exemplo e, posteriormente, em outrosselos, deram, de alguma forma, prosseguimento ao seu trabalho,eventualmente, ampliando-lhe o universo. A Eldorado tinha e tem, sim, orientação comercial, mas com extremo cuidado na seleção de seus títulos (Cartola, Nelson Sargento, Geraldo Filme, Adoniran Barbosa fizeram suas estréias em disco por ela), e sua iniciativa mais ousada terá sido esse O Canto dos Escravos, que há muitos anos estava fora de catálogo e era objeto de disputa entre colecionadores, estudiosos e amantes da cultura brasileira.

(...) Vissungos - Tais cantos são chamados vissungos, palavra que vem do umbundo ovisungo (cantiga, cântico), conforme ensina Nei Lopes em seu Dicionário Banto do Brasil. Já era plano de Aires da Mata Machado recolher os vissungos e reunir o vocabulário e a gramática da língua dos negros benguelas. Teve pouco êxito na primeira investida; na segunda, ele e seu colaborador Araújo Sobrinho ouviram de um Seu Tameirão 200 palavras e algumas cantigas; adiante, surgiram outros cantadores que sabiam letra, música e tradução.

(...) O disco, de uma beleza crua, não tem instrumentos harmônicos. Acompanham os três cantores a percussão de troncos, xequerês, enxadas, cabaças, atabaques, agogôs, ganzás, caxixis e afoxés tocados por Djalma Corrêa, Papete e Don Bira. Os intérpretes são figuras de sabida importância na divulgação esustentação da cultura brasileira de origem africana. Geraldo Filme, grande compositor, cantor de vozeirão profundo, foi, na definição de Osvaldinho da Cuíca, o grande articulador, a "cabeça pensante" do samba paulistano. Tia Doca, nascida Jilçaria Cruz Costa, manteve por décadas um pagode dominical que ajudou a manter vivo o samba de raiz carioca; sua participação no disco foi sugerida por Clementina de Jesus, que foi
revelada ao mundo aos 64 anos, depois de ouvida, num botequim da Lapa, centro do Rio, por Hermínio Bello de Carvalho. 

Trechos de entrevista de Marcus Pereira, citados no jornal Hora do Povo [completo]

Para Marcus Vinícius de Andrade, “a importância do disco está no fato dele ser o primeiro registro sonoro da música do tempo da escravidão. Apesar de ser um país essencialmente negro, o Brasil nunca tratou bem a sua história musical, daí pouco se conhecer sobre os antepassados do samba, do jongo, do maxixe e de outros gêneros musicais que os negros nos legaram”. (...) “Quando produzi o disco, minha intenção foi exatamente tentar buscar essa arqueologia sonora. Para isso, entre outras coisas, na medida do possível, tentei reconstituir em estúdio o clima dos antigos batuques das senzalas e terreiros e também isso conferiu importância ao disco” (...) “O canto dos Escravos foi a última gravação de Clementina e fico feliz em ver que ela se despediu em grande estilo, com um disco que hoje é referência obrigatória na discografia brasileira”, afirma Marcus Vinícius. Marcus Vinícius conta que, pelo fato de Clementina já estar muito velhinha na época, a feitura do disco foi “uma espécie de gravação pelo avesso, pois começou com a voz solo final”. Ele conta que inventou um sistema para poder gravá-la, já que ela já não conseguia decorar mais e via com dificuldade: “mandei escrever o texto dos vissungos em cartazes com letras bem grandes. Em seguida, ela ensaiava um determinado trecho com o Papete e, em seguida, nós gravávamos - só a voz dela e o atabaque. Depois peguei todos os trechos gravados por ela, fiz a edição de cada música dentro do respectivo andamento e só a partir daí comecei a colocar os outros instrumentos”. 
Texto de Aires da Mata Machado, reproduzido no encarte do disco em 1982 e digitado no canal de You Tube de Fred Hubner

Tomei notas apressadas, que vim depois a rejeitar. E, nas curtas estadas naquele aprazível e tranquilo arraial, nunca deixei de observar alguma coisa sobre os tais cantos de trabalho, cuja importância foi crescendo em meu conceito, à medida que fui adquirindo conhecimentos novos.

Entendi, posteriormente, de realizar, de vez, o velho plano de recolher os "vissungos", como lhes chamam, reunindo ainda o vocabulário e a gramática da "língua de banguela", certamente transformada em nosso meio.

Quase nada consegui na primeira investida. Lá ficava, porém, o meu colaborador, Araújo Sobrinho, com instruções minhas.

Voltando, mais tarde, encontrei novidades: um vocabulário de duzentas palavras, colhidas na boca de "seu" Tameirão, algumas cantigas e a notícia do falecimento do nosso prestimoso amigo.

Fiquei pelos cabelos, imaginando que tudo estava perdido. Mas não tardaram em aparecer outros conhecedores. E, depois de peripécias que não vêm ao caso, conseguimos, com um outro cantador, letra, música e tradução, ou antes "fundamento", como eles dizem.

Não sei se seremos felizes com as notas e reflexões. O certo, porém, é que só o material, que tivemos a sorte de desencavar em nossa mineração, bastaria para justificar o aparecimento de um livro.

À colheita do material seguiu-se o exame da bibliografia sobre o assunto. Compulsando livros de linguistas e etnógrafos, tivemos ensejo de estabelecer confrontos e reforçar hipóteses. Muitas vezes, vimos a autenticidade dos modestos achados e a plausibilidade das reflexões confirmadas pelas contribuições dos eminentes estudiosos que antes de nós lavraram o terreno. Com isso pudemos evitar, quanto possível, generalizações apressadas, cotejos fantasiosos e afirmações apriorísticas. Se o não conseguimos, não foi por falta de necessária diligência.

AIRES DA MATA MACHADO FILHO

O texto acima foi publicado como introdução do livro "O Negro e o garimpo em Minas Gerais (Editora José Olímpio), de Aires da Mata Machado Filho, sendo aqui reproduzido com a permissão do autor, que igualmente autorizou o Estúdio Eldorado a realizar a gravação de quatorze das sessenta e cinco partituras registradas naquela obra.
 

17 de fevereiro de 2016

Leite derramado

Já faz parte da rotina de quem atua no campo da cultura e acompanha de perto as políticas (e a falta delas), as leis de incentivo e as discussões geradas pela forma como funcionam topar de frente com notícias incômodas a respeito de financiamentos exorbitantes e questionáveis, destinados a artistas consagrados por público e / ou crítica. A bola da vez é a proposta biografia da cantora Cláudia Leitte, contemplada em 100% do projeto para captar R$ 355.927,00 para a publicação de uma tiragem de 2000 exemplares [notícia, aqui]. Para tecer algumas considerações, acabei acessando dados do projeto pelo SalicNet [acesse e busque por palavras-chave como livro cláudia leitte], sistema do ministério da cultura que apoia a operacionalização dos projetos que envolvem renúncia fiscal. 

Descobre-se ali que não se trata exatamente de uma biografia, mas "de um livro com entrevista exclusiva da cantora Claudia Leitte para a jornalista Jaqueline Gonzales que será compilado e editado pela jornalista. Além da entrevista exclusiva, o livro terá letras e partituras dos principais sucessos, além de fotos exclusivas de toda a carreira e a biografia da cantora, em português e inglês". 

O sistema enquadra-o no Art.18 parag. 3° "b) livros de valor artístico, literário ou humanístico", mas basta ler essa síntese para considerar que se trata, antes de mais nada, de uma peça publicitária com a pretensão de promover a cantora internacionalmente. Empreendimento a que ela poderia legitimamente se lançar por conta própria, levando-se em conta os cachês altos que cobra por show, ou com parceiros privados que certamente se interessariam em ajudá-la a vender tal peça editorial. Embora o relativismo desavisado que tanto convém a esse tipo de empreendedor possa ser evocado para absolver Cláudia Leitte e sua carreira de um julgamento de VALOR (pois é 'valor' o conceito explicitado no Art.18), são ostensivas e patéticas as piruetas retóricas necessárias para convencer alguém de que o projeto em questão atende esses critérios. Como os recursos são finitos e existe um mecanismo de seleção, para o qual inclusive supõe-se que o ministério seleciona avaliadores abalizados, é inevitável que sejam feitos juízos. Para acrescentar ainda mais contundência ao argumento, vejamos na totalidade o parágrafo:
 § 3o As doações e os patrocínios na produção cultural, a que se refere o § 1o, atenderão exclusivamente aos seguintes segmentos: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
a) artes cênicas; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
b) livros de valor artístico, literário ou humanístico; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
c) música erudita ou instrumental; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
d) exposições de artes visuais; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
e) doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para a manutenção desses acervos; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
f) produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; e (Incluída pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
g) preservação do patrimônio cultural material e imaterial. (Incluída pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
h) construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes. (Incluído pela Lei nº 11.646, de 2008)
Fica nítido que o espírito geral da lei é financiar expressões que a princípio não seriam viabilizadas por seu interesse mercadológico. E a lei, quando trata de música, considera financiável a música erudita ou instrumental. Não vou discutir aqui se é acertado ou não [poderei fazê-lo noutro momento] mas depreende-se que o foco é para estas manifestações. Mais um elemento que dificulta enxergar o valor artístico maior dessa entrevista exclusiva a ser publicada seguida de acompanhamentos. O ponto aqui não é dizer se Cláudia Leitte é uma artista - efetivamente ela é, independentemente da qualidade do que ela faz - mas sim se a referida proposta editorial tem "valor" nos termos da lei para ser aprovada em detrimento de outras. Efetivamente não é o caso, e para isso contribuí, o que digo sem qualquer intenção de constranger pessoalmente a cantora, que a biografia dela ou seus feitos como artista não alcançam uma dimensão cultural, histórica ou estética suficiente para justificar que o Estado permita que seja gasto dinheiro público com a tal impressão. Repare-se ainda que o projeto está autorizado a captar para renúncia fiscal 100% do valor aprovado - lembrando que o valor solicitado foi R$ 540.000,00. Vendo o valor, já em si exorbitante para uma tiragem pequena, acaba pairando sobre esse tipo de projeto uma sombra que obscurece a lógica da seleção pois parece que não vem ao caso o ajuste entre o montante solicitado e a natureza da proposta no que tange à sua aprovação. No máximo o que se faz são aqueles cortes "pré-fabricados", que aparentemente são como álibis plantados para que se justifique o ministério quando alguém questionar a discrepância: "mas nós até cortamos"... 
Vejo tudo isso e me assombro com a constatação de que enquanto um projeto desse deverá facilmente realizar a captação, o acervo de Edu Lobo sob a guarda do Instituto Tom Jobim não conseguiu fazê-lo e assim não pode ser digitalizado para que se torne acessível gratuitamente pela internet. Enfim, as leis de incentivo baseadas em renúncia fiscal promovem muitas distorções, e críticas bem mais densas do que essas que rapidamente arregimentei para avaliar um caso já foram feitas. Neste caso aqui já é leite derramado*. Esperamos providências há anos, mas trata-se, fundamentalmente, de um esquema que permite retorno certo na forma de publicidade que as empresas realizam com o dinheiro dos cidadãos e ainda lhes devolvem, via de regra, aquilo que o mercado já lhes propicia por sua própria conta, ou seja, a renúncia, do ponto de vista público (favor não confundir com massa, ou com público consumidor) - é o único ponto de vista que conta quando a finalidade e o dinheiro são públicos - não compensa. 

*P.S. "Não foi leite derramado"
Hoje saiu a notícia do arquivamento do projeto, a pedido do proponente. Sem dúvida efeito da enorme pressão feita através das críticas que circularam nas redes sociais, na qual esse blog modestamente deixou sua contribuição. No grosso, não faz muita diferença, mas essas pequenas escaramuças dão a medida de que ainda é possível fazer alguma frente aos desvirtuamentos e equívocos na aplicação dos recursos públicos, aqui no caso, na área da Cultura. Vale sim comemorar essa pequena vitória, mas continua a luta para que as políticas públicas sejam democráticas e efetivas, bem concebidas e aplicadas. 



15 de fevereiro de 2016

Bolacha completa - Corpo de Baile (Mônica Salmaso, 2014)

Na série Bolacha completa, a proposta não é necessariamente a de realizar uma resenha técnica, faixa a faixa, mas sim expressar um reconhecimento sobre uma dada obra e evidenciar como se dá essa apropriação por parte de quem, numa audição particular que guarde uma perspicácia ímpar, acrescenta com ela mais alguns sulcos por onde possa transitar a agulha da nossa percepção. É nesse intento que posto este texto escrito e gentilmente cedido - fique aqui registrado meu imenso agradecimento - pelo Thiago Amud, compositor brasileiro cuja contundência artística e demais predicados os leitores que ainda não conhecem façam-se o favor de conhecer, começando por aqui


- Corpo de Baile - 

 Por Thiago Amud:
"Escutei ontem, pela primeira vez, Corpo de Baile, o disco em que Mônica Salmaso canta Guinga e Paulo Cesar Pinheiro. 

Fugi desse disco porque intuía que, se o ouvisse, aconteceria exatamente o que me aconteceu: a Beleza me esmagaria. 

Só senti isso com música uma vez na vida antes dessa: ouvindo a Sinfonia nº2, do Mahler. 

Tendências contemporâneas: relativizar a perfeição; tentar atenuar sua violência; tentar elencar razões pelas quais um objeto estético não é nada em si mesmo, mas apenas num determinado contexto sócio-econômico; não medir esforços para desfazer os laços entre o Belo, o Bom e o Verdadeiro; pressupor que tudo tem uma história racionalmente rastreável: cada emoção, cada lágrima, cada empolgação. 

Tudo em mim agora diz "não" a essas veleidades. 

Corpo de Baile fura a couraça do tempo: a eternidade nos enlaça. 

"Thiago, arrenego tanta metafísica, tanto platonismo, tanta idealização! Você fala como um velho de mil anos!" 

Eu SOU um velho de mil anos. 

Quis me enganar pra não ouvir o disco: a sonoridade deve ser datada, a cantora deve estar fria, o brasilianismo deve ser rançoso, isso, aquilo... Tudo fuga: eu estava era com medo de ouvir e me sentir, como estou me sentindo, indigno de continuar fazendo música. 

Corpo de Baile é, até agora, o maior disco da música brasileira do século XXI.

A dialética que aprenda a ouvir a Beleza Absoluta. 

O Amor é inegociável."


O disco, na íntegra [assegurando que este blog tem finalidade única e exclusivamente cultural,  e que não detém qualquer direito sobre o link/arquivo de imagem incorporado e o retirará imediatamente caso seja solicitado pelos detentores, e recomenda aos leitores que comprem o disco]



1. FIM DOS TEMPOS Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Tiago Costa
2. PORTO DE ARAUJO Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Luca Raele
3. NAVEGANTE Guinga / Paulo César Pinheiro Arranjo Coletivo
4. QUADRÃO Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Luca Raele
5. BOLERO DE SATÃ Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nelson Ayres
6. CURIMÃ Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Teco Cardoso
7. FONTE ABANDONADA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Tiago Costa
8. NOTURNA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Paulo Aragão
9. RANCHO DAS SETE CORES Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nailor Azevedo Proveta
10.VIOLADA Guinga / Paulo César Pinheiro
11. NONSENSE Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nailor Azevedo Proveta
12. SEDUTORA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Luca Raele
13. CORPO DE BAILE Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nelson Ayres
14. PROCISSÃO DA PADROEIRA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Dori Caymmi


13 de fevereiro de 2016

Grandes Encontros da música popular - a parceria Edu Lobo e Chico Buarque

A possibilidade de elaborar listas de audição em sítios, portais e afins, representa uma nova forma de colecionismo e circulação da música gravada (ainda que lembre a possibilidade já oferecida pela fita k7  e depois pelo CD gravável de elaborar coletâneas próprias), sobre a qual ainda pretendo escrever com mais aprofundamento. Enquanto isso, é uma prática que permite criar uma noção de conjunto e auxiliar na exposição de um determinado tema. Como fez meu parceiro Pablo Castro ao criar uma playlist para "ilustrar" aspectos específicos da parceria Edu e Chico. Achei oportuno aproveitar tanto o  texto quanto a lista no escopo da série "Grandes Encontros da música popular".

Por Pablo Castro:
É provável que nunca, em lugar algum, houve uma parceria entre compositores que tinham sido revelados anos antes num esquema competitivo, quando eram em alguma medida adversários, disputando palmo a palmo os primeiros e mais influentes festivais da década de 1960, tendo ambos depois seguido as suas respectivas carreiras, ambos capazes de letrar e musicar (embora as letras de Edu se contem nos dedos de duas mãos, elas são ótimas), bons cantores, influentes e consagrados, com vários discos gravados, até se unirem para compor uma das mais importantes obras cancionais de uma música popular, como a parceria entre Chico Buarque e Edu Lobo. 

Normalmente duplas com esse nível de qualidade e quantidade de produção são estruturantes na carreira dos parceiros, e a tendência é a parceria em algum momento romper-se ou perder o ímpeto. Se o grosso da leva da parceria Tom/Vinícius se deu ainda na década de 1950, ela foi arrefecendo até virar apenas amizade. Tom e Vinícius pararam de compor juntos ainda no início dos anos 60. João Bosco e Aldir Blanc se encontraram como um choque de deuses antípodas e complementares, um acontecimento da natureza que gerou meia dúzia de discos espetaculares e dezenas de clássicos, até se desfazer e se bifurcar em meados da década de 1980. Aldir depois achou um parceiro tão significativo para suas letras como João fora: um dentista chamado Guinga, com quem construiu uma outra obra absolutamente expressiva.
Na música anglo-americana, temos o incontornável exemplo de Lennon/McCartney, cujo funcionamento era diferente: ambos compositores de letra e música, colaboravam entre si das mais variadas formas, mas nunca com a fronteira delimitada de letra e música para cada parceiro. Além disso, a dinâmica interna da duplas estava submetida a uma banda com outros dois músicos, um dos quais um compositor tão criativo quanto.
Os irmãos Gershwin , Burt Bacharah e Hal Davis, Rodgers e Hart, Andrew Lloyd Weber e Tim Rice, todas mais ou menos no padrão letrista / compositor. Edu Lobo e Chico também funcionaram assim. Mas a trajetória pregressa deles e o caráter e a importância de cada um na moderna música popular braseira fazem dessa junção algo realmente especial. Como uma lista de suas canções pode provar .
Fiz uma playlist que inclui praticamente toda a obra conjunta deles. Pra quem quiser conhecer, trata-se de 5 projetos de teatro ou dança que foram de encomenda, o que originou algumas das mais finas canções da história da música popular. O que demonstra o quanto poderia ser positivo para o Brasil uma articulação maior entre a música, o teatro, a dança e o cinema no país, que , hoje, praticamente não se comunicam.
Divirtam-se ! 


9 de fevereiro de 2016

O Clube da Esquina no repertório de Simone

Quando escrevia minha tese de doutorado imaginei fazer uma extensa pesquisa cercando as gravações por diferentes intérpretes das canções de membros do Clube da Esquina. Doutorando adora inventar projetos que não são factíveis para criar obstáculos mil à conclusão da tese. É inevitável. Enfim, em algum momento o prazo falou mais alto e tive que transformar isso em uma investida bem mais limitada e possível, elegendo alguns intérpretes e álbuns com o intuito de demonstrar - creio que de forma bem sucedida - como o Clube da Esquina alcançou grande penetração no cenário da MPB na década de 1970. A pesquisa precisa desses ajustes, e neles acabamos muitas vezes compensando o fato de não termos voado tão alto quanto gostaríamos com alguns rasantes bem significativos. Mas fica sempre aquele gostinho de incompletude, com o qual todo pesquisador precisa aprender a conviver, e eventualmente guardar como combustível para uma futura arremetida. Eis que me deparei hoje com essa playlist disponibilizada pelo Gustavo Matavelli, colega frequentador de uma página sobre o Clube no facebook, elencando 17 canções do repertório da cantora Simone escritas por participantes da constelação de craques agremiada na imagem prosaica da esquina. Deu vontade de retomar algumas postagens e complementar alguma coisa por aqui.
Algumas observações iniciais que são interessantes para situar a constituição desse repertório. Primeiro é que Simone, ainda em início de carreira, foi imediatamente contratada pela EMI-Odeon, que era a gravadora que tinha sob contrato toda linha de frente do Clube, havia lançado o álbum duplo Clube da Esquina e eleito Milton Nascimento e seus amigos como núcleo duro de seu cast de prestígio, ou seja, aqueles artistas que se acreditava que representariam, mesmo que sem grandes vendagens de discos, o estofo para constituir o patrimônio de excelência musical dentro do mercado fonográfico. Simone contava com um produtor de extrema competência, conhecedor de repertório e compositor de mérito próprio, Hermínio Bello de Carvalho, para produzir seus 4 primeiros discos, sendo que no último, Gotas D'água (1975), ele dividiu a tarefa com ninguém menos que Milton Nascimento. Recupero um trecho da minha tese que já citei em postagem anterior sobre o Clube no repertório de intérpretes femininas [aqui].

O disco de Simone Gotas d’água (EMI, 1975) traz Milton como co-produtor, além de participar cantando e tocando piano em Gota D’água (Chico Buarque) e ceder duas canções feitas com Fernando Brant (Outubro e Idolatrada). Wagner Tiso, além de tocar piano e órgão em várias faixas, fez arranjos para 5 canções. A concepção da capa foi feita por Ronaldo Bastos e Cafi, o “fotógrafo oficial” do Clube. No repertório, compositores que começavam a conquistar espaço, como a dupla João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaga Jr. (que ainda não assinava Gonzaguinha) e uma parceria de Tavinho Moura e Murilo Antunes. Na parte instrumental, a presença dos integrantes do Som Imaginário, na formação que contava com Nivaldo Ornelas, Novelli, Paulo Braga, Toninho Horta e o já citado Wagner Tiso. (GARCIA, 2007, 230-231)


Essa proximidade toda se reflete não apenas na escolha de repertório, mas na arregimentação de músicos (Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes, Nelson Angelo, Nivaldo Ornellas, entre outros, figuram em várias faixas), concepção de arranjos, etc. Vejamos por exemplo a ficha técnica da antológica gravação de Gota D'água (Chico Buarque):
  • Wagner Tiso (Órgão e Piano)
  • Novelli (Baixo Elétrico)
  • Toninho Horta (Guitarra)
  • Paulinho (Bateria)
  • Chico Batera (Efeitos de Percussão)
  • Nivaldo Ornellas (Flauta)
  • Milton Nascimento (Voz/Piano)
  • Arranjo: Wagner Tiso

Escolhi propositadamente uma canção que não foi composta por membro do Clube, mas cuja assinatura ficaria evidente. É relevante assinalar que esse momento de forte aproximação entre Chico e Milton, então dos dois mais populares artistas da MPB, foi acompanhado de perto por Simone, que inclusive gravou a 1a. parceria deles, Primeiro de Maio [mais detalhes nesta postagem do blog]. Esse laço se reforça no LP Face a face, como é possível notar analisando o repertório completo: apenas 3 das canções não são ou de Chico ou de alguém do Clube. E mais, é como uma pequena prévia de Clube da Esquina 2, com o qual compartilha 4 canções.


1. "Face a Face" (Sueli Costa / Cacaso)
2. "Primeiro de Maio" (Milton Nascimento / Chico Buarque)
3. "Reis e Rainhas do Maracatu" (Milton Nascimento / Novelli / Nelson Angelo / Fran)
4. "O Que Será" (Chico Buarque)
5. "Céu de Brasília" (Toninho Horta / Fernando Brant)
6. "Paixão e Fé" (Tavinho Moura / Fernando Brant)
7. "Jura Secreta" (Sueli Costa / Abel Silva)
8. "Valsa Rancho" (Chico Buarque / Francis Hime)
9. "Canoa, Canoa" (Nelson Angelo / Fernando Brant)
10. "Começaria Tudo Outra Vez" (Gonzaguinha)

Justamente em meados da década de 1970, a MPB passou a atingir um público mais amplo, especialmente a partir da consolidação do 'circuito universitário', forma de criação e consolidação de público extremamente importante no momento político em que vivia o país. Nos repertórios desses primeiros discos de Simone vemos também a constante presença de compositores que emergiram nesse contexto, como a dupla João Bosco/Aldir Blanc, Ivan Lins e Gonzaguinha. Aqui não cabe agora mas acredito ser razoável intuir que seus discos seguiam em boa medida o que seria a 'receita de bolo' estabelecida por Elis Regina, obviamente com variações e evidentemente sem a mesma força para lançar e alçar novos compositores.  O peso do Clube em seu trabalho, especialmente visível nesse período entre meados de 1970 e meados dos 1980 é sensível, mesmo depois de ter mudado de gravadora. Note-se que a faixa seu disco Cigarra (1978) é a canção homônima de Milton e Ronaldo Bastos, certamente escrita para ela. Nesse rol podemos colocar também Mulher da vida e Amor e paixão (ambas de M.Nascimento e F. Brant). Outro detalhe é o fato dela ter acesso e gravar em primeira mão algumas canções. Canoa, canoa (Nelson Angelo e Fernando Brant) ela gravou no disco Face a face em 1977, antes da gravação de Milton para o Clube da Esquina 2, e no mesmo disco fez a primeira gravação de Céu de Brasília (Toninho Horta e Fernando Brant). Não gravava apenas canções já conhecidas e/ou reconhecidas, como Outubro ou O sal da terra, mas também escolhas mais difíceis, como Coisas de balada (N. Angelo e F. Brant), O trem tá feio (Tavinho Moura e Murilo Antunes) ou Nenhum mistério (Lô Borges, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes). 
 Observando esse repertório, gostaria de notar ainda que a atribuição do rótulo de "cantora romântica" a Simone perde de vista o conjunto dos registros desse período de sua carreira, embora possa ter sido guiada por uma leitura de seus maiores sucessos. Mesmo não sendo o foco da  postagem, é relevante perceber a carga política e artística das escolhas de repertório e das performances de uma cantora que fazia parte do primeiro time de intérpretes da MPB na passagem daquela década. Canções como Itamarandiba, Primeiro de Maio, Povo da Raça Brasil, Outubro, entre várias da obra do Clube que gravou, comprovam isso. Sem querer me alongar, é perfeitamente identificável o engajamento dela na questão da redemocratização, se ainda faltar evidência, pelo impacto de ter sido a primeira a cantar Pra não dizer que não falei das flores (Vandré) após a censura liberá-la em 1979, e ter feito dela o registro mais emblemático excluindo-se o do próprio autor. Até hoje em manifestações de rua costuma-se ouvir a reprodução da gravação de Simone desse hino político e popular. 
Esse exercício, que ainda comportaria mais algum detalhamento, cumpre o objetivo a que se propôs mas também lança pequenos insights sobre o peso do repertório dentro da obra de uma intérprete, a forma como certos rótulos estabelecidos obscurecem nuances de uma determinada carreira e a importância de uma pesquisa para revisar perspectivas e abalar verdades estabelecidas.

A playlist:


1 de fevereiro de 2016

Tarde em Brasília, ou como as canções se movem no tempo

Enquanto preparo o texto a ser apresentado no no XII Congresso da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular (IASPM) Seção Latinoamericana, a ser realizado entre os dias 7 e 11 de março de 2016, na Casa de las Américas em Havana, Cuba, vou encontrando material de arquivo que se encontra fartamente distribuído pela internet, ainda que não nas melhores condições de áudio e vídeo. 
O trabalho, em co-autoria com o músico e mestre pelo PPG em Música da UFMG, Marcos Sarieddine, e o granduando em História pela UFMG Húdson Públio, bolsista IC CNPq do projeto "Patrimônio Urbano e Música Popular", intitulado“Mesmo assim não custa inventar uma nova canção”: o Clube da Esquina e a Redemocratização no Brasil (1978-1985), versa sobre a participação de músicos populares na construção de caminhos em direção à redemocratização do país, num vasto leque que vai da criação cancional, dedicada a reavaliar a experiência social dos duros “anos de chumbo” e advogar a retomada das liberdades e direitos, à sua participação na re-ocupação do espaço público, pela realização de concertos integrados a campanhas fulcrais (Anistia, Diretas Já), pela articulação a movimentos sociais e atores coletivos da sociedade civil engajados no restabelecimento da democracia, evidenciada tanto em sua atuação como músicos como quanto figuras públicas. 
É particularmente notável a participação, no período compreendido entre 1978-1985, dos músicos associados à formação cultural denominada Clube da Esquina (GARCIA, 2000), encabeçados pela figura emblemática de Milton Nascimento, nas atividades públicas e na produção musical que associamos aqui ao período de redemocratização. Canções tão diversas como Credo (1978), Sol de Primavera (1979), Todo Prazer (1981), Coração de Estudante (1983-1984), ou projetos grandiosos como a Missa dos Quilombos (1982), demonstram o profundo envolvimento desses músicos com os dilemas culturais e políticos de seu tempo, bem como a capacidade da música popular entranhar-se na experiência social, constituindo-se como lócus privilegiado de expressão de estruturas de sentimento, posições sociais e projetos políticos compartilhados.

É nesta perspectiva que propomos um estudo que capte, aliando a investigação histórica que insere as obras em seu contexto de produção e reúna para análise registros documentais diversos (entrevistas, resenhas críticas e fonogramas, principalmente) aos estudos de música popular atentos às escolhas e invenções estéticas que os criadores protagonizam sem estar descolados de seu contexto social e histórico. Além da participação emblemática em concertos, da atuação pública com forte vinculação aos movimentos sociais, pretendemos identificar em suas criações da época o balanço histórico do que se passara e a propensão por ensejar, numa reivindicação de caráter utópico na conotação plenamente política do termo, a expectativa e o desejo pela novidade embutida na abertura paulatina do regime e na perspectiva de viver um tempo regido por outra ordem, democrática. Retomar essa obra invoca o sentido pleno do pensar com a História, uma vez que nos confronta com os significados e perspectivas sonhados e vividos na construção da democracia. 
Aí me deparo com alguns trechos de um programa especial de TV realizado pela Globo em 1982. Mesmo com os problemas de qualidade da imagem e do som, conseguimos experimentar a intensidade e a beleza da obra de Milton Nascimento e seus parceiros. No primeiro trecho, que parece ter sido muito editado, resta de mais consistente a parte final, em que Milton canta acompanhando-se ao violão Minas (Novelli) em frente a uma igreja barroca em Congonhas, e enquanto essa belíssima, melíflua ode às terras mineiras caminha para fade out, ele recita o texto Oração, de Fernando Brant, originalmente elaborado para o espetáculo O último trem, do grupo Ponto de partida. Mais uma vez Brant dialoga com a tradição religiosa católica tão presente na história do estado, novamente apropriando-se da oração Pai Nosso como já fizera em Feira Moderna. Não há sátira mas há um gesto transgressivo, ainda que não destitua completamente. Deus existe, mas não está aqui. Nesse tom que em outros tantos momentos da parceria M.Nascimento e F. Brant podemos encontrar, não há descarte da transcendência e do divino, mas há denúncia e recurso ao cotidiano, ao carnal, ao humano.




Pai nosso que não estas aqui
Sacrificado é o vosso povo
Humilhados e ofendidos são os nossos homens
Deserdados e famintos são os nossos filhos
Feridos e estéreis são os nossos ventres
Aqui, na terra.
O pão nosso de cada dia
A alegria nossa de cada dia
O amor nosso de cada dia
O trabalho nosso de cada dia:
Venham a nós, voltem a nós
De trem, de carro ou navio.
Não nos deixei cair em lamentações
Mas livrai-nos desse vazio.


O outro trecho que destaco traz Milton (voz) e Wagner Tiso (piano) levando Tarde, parceria do primeiro com Márcio Borges (composta em torno de 50 minutos, com a impressionante média de 1 acorde por minuto, num programa de televisão, a partir do mote “Não peço mais perdão” sorteado de um envelope), e foi gravada originalmente no LP Milton Nascimento de 1969 (aquele da igrejinha).  Uma canção muito solene, para não falar tristíssima, que já mereceu interpretações marcantes de ases como Joe Pass ou Wayne Shorter. O recurso de emparelhar a desilusão amorosa e a dureza dos anos de atmosfera plúmbea, encontra nesse outra curva da História uma significação nova. Pois o desejo de sair das sombras, expresso em 1969, ganha em 1982 contornos bem diversos, alinhavados na exploração da câmera que registra Milton e Wagner na paisagem de Brasília. Milton declama um texto introdutório, exaltando a cidade, sua arquitetura (citando Niemeyer) e destacando justamente o Memorial JK nesse trecho do discurso. Em 1969 renascer da solidão, encontrar sentido de viver, superar o sofrimento, era de uma enorme urgência, mas ao mesmo tempo dificílimo, improvável – E mesmo se a dor encontrar – não pedir mais perdão ecoa a resolução de ser resiliente, aguentar o tranco. Em 1982 ela se volta para o futuro – Brasília é uma cidade como um avião, que ainda aguarda “desempenhar seu verdadeiro destino”. A interpretação de Milton, ainda que carregada de sentimento, é ligeiramente mais solar, como se correspondesse ao sol de fim de tarde que compõe com o céu nublado o pano de fundo da apresentação. A resolução da canção, em letra e música (não peço mais perdão/ porque já sofri demais), se estende tanto no vocalise final quanto no arranjo de piano, e o tom solene dá lugar a um breve vôo pássaro que a câmera sagazmente dirige à estátua do ex-presidente JK em bronze, de 4,5 m, esculpida por Honório Peçanha. É como se a voz e o olhar, simultaneamente, mirassem o futuro, divisando uma imagem representativa de um ideal de democracia que despontava no horizonte. Mas, inevitavelmente nos ocorre, a cidade voltada par o futuro parece já carregada de passado.  A arquitetura modernista, que adentrara o imaginário nacional prometendo descortinar o amanhã à vista dos brasileiros, converte-se em tradição (moderna tradição, se quisermos retomar a grande sacada de Renato Ortiz), e JK no seu messias às avessas. Em 1969 restaurar a democracia significava parar de ter saudade do que era um tempo bem recente, de poucos anos no passado. Em 1982 o Golpe já tinha 18 anos! O futuro não realizado de Brasília, parece mais um futuro passado, de repente mal-passado, como de fato revelou-se em poucos anos com a derrocada das Diretas e o arranjo conservador que garantiu a transição democrática sem sobressaltos. Quando pensamos em como uma canção se move no tempo, é preciso considerar mais que apenas a mudança de contexto. Ela pode ser resignificada por uma nova execução, uma outra audiência, por variados detalhes da performance, pelo meio em que está circulando (em nosso caso, por exemplo, um programa de televisão da Rede Globo), uma associação com outros elementos estéticos (como no caso, o vídeo). 



Naquele momento, certamente as nuvens se dissipavam mas havia muitas incertezas, convivendo com grandes expectativas. Sem saber exatamente para onde ia a estrada, mas com muita paixão, talvez um pouco mais de fé cega e um pouco menos de faca amolada, a obra de Milton Nascimento, especialmente na parceria com Brant , desse período em diante bem mais volumosa do que com os demais compositores do trio chave de letristas do Clube, Márcio Borges e Ronaldo Bastos, sinaliza essa acomodação, e talvez seja esse mais um dos motivos de ter sido a que melhor expressou no âmago o sentimento em suspenso desse momento em que se buscava o dia de amanhã mas sem virar devidamente as páginas do dia de ontem.