Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

27 de março de 2023

NOVA ARCÁDIA

Compor canções é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Claro que quando tratamos desse assunto em nossos dias inevitavelmente situamos tal ofício em relação ao meio que acaba exercendo sobre ele forças centrípetas e centrífugas, que é a indústria fonográfia. Ainda que qualquer canção possa nascer, e mesmo existir por anos e anos totalmente alheia aos processos que a fonografia estabeleceu, esse será um parâmetro inevitável para avaliar e experimentar sua aparição no mundo. Quero, com esse preâmbulo, introduzir meu relato sobre duas sensações complementares, que não percebo como contraditórias. A primeira é que compor - para mim eminentemente em parcerias - é um trabalho com inquestionável validade em si mesmo, de modo que cada criação merece ser apreciada desde a gestação até o momento em que se consolida aos olhos e ouvidos dos compositores. A segunda é a gravação, ou seja, a transmutação de uma canção da sua forma original, nua em pelo, por assim dizer, numa aparição diversa, vestida com todo tipo de procedimento mediado por uma aparelhagem que permite o que se assemelha a costurar uma indumentária com arranjos, timbres, solos, vozes, entre outros elementos musicais, e até mesmo alguns extramusicais, para vesti-la. É possível gostar das duas coisas, dos dois momentos, e se eu posso me permitir essa analogia, com o devido desconto, é como celebrar o nascimento da criança e depois um grande momento da vida de um ser humano, como uma formatura ou matrimônio, por exemplo. 



É portanto uma felicidade em dobro quando sai uma canção de um parceiro comigo, como acabou de acontecer com Nova arcádia, que fiz com Rafael Senra,  em seu disco O sereno da noite [ouça todo][veja a página especial], ainda que "disco" hoje remeta sobretudo a um conceito que reúne canções num lançamento simultâneo, pois tornou-se cada vez mais raro e difícil lançar tal tipo de "objeto" em sua tradicional forma física. Aliás, é sobre isso que versará, entre outras coisas, a pesquisa de pós-doutorado que irei realizar a partir do meio do ano (assunto quiçá para outra postagem). 

Nova arcádia faz parte de uma primeira leva de parcerias nossas, que pelos meus registros começaram a tomar forma em 2017. Quem lê o blog portanto irá imediatamente perceber a distância que pode haver entre a composição e a gravação de uma canção, e olha que pode ser muito maior que isso. Mas a proposta aqui é falar de criação, então vamos lá. Enquanto ouço a despojada demo que o Rafa me mandou, dedilhando o violão e cantarolando a melodia, penso que de alguma forma o letrista tem que "advinhar" o que pode vir a ser a canção, inclusive na virtualidade de sua gravação. Compartilhamos entre outras afinidades e interesses, o gosto pelo rock progressivo (ainda que ele conheça infinitamente mais o gênero que eu) e a temática de pesquisa sobre Clube da Esquina (ambos tratamos disso em nossas dissertações de mestrado). De posse desse "esqueleto", que além da própria combinação entre harmonia e melodia já propunha uma estrutura para os versos, me ocorreu trazer para a letra algo que traduzisse a sensação de algo épico e ao mesmo tempo "clássico", por assim dizer. Me ocorreu que a mineiridade, tópico que o Rafa tratou com muito mais delonga do que eu ao escrever sobre o Clube, era um tema que respondia a essa necessidade, e ao mesmo tempo ganha em peso experiencial a partir da ida dele para lecionar na UNIFAP no Amapá. Foi ficando definido pra mim que deveria explorar a ligação da Inconfidência mineira com o Arcadismo, evidente na participação destacada de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Daí obviamente temas neoclássicos como a mitologia, a natureza e o elogio da razão. Sem o mesmo rebuscamento, eu me inspirei nas letras de Peter Gabriel no tempo do Genesis, como The fountain of Salmacis. Não sou de grandes formalismos mas às vezes pinta uma ideia, como a reiteração do "v" que começa já no primeiro verso. No mais recorri a imagens bastante manjadas, e é como se o "eu lírico" fosse uma personagem de época, soltando bordões  iluministas e citando deuses gregos. Tem uma lembrancinha ou duas também das aulas de Política na graduação, uma pitada de Hobbes aqui, de Rousseau ali. Acho que condiz bastante com o rumo que a música tomou na gravação, esse tom assertivo e grandiloquente. E se o disco não tem um conceito de amarração tão explícito, esse tópico da noite é recorrente. Na canção claramente a treva, a sombra, são representações da falta de esclarecimento e civilidade. O "nova" entra como uma espécie de vontade de atualização, ou mesmo uma projeção utópica, a contrapor a distopia que tomou conta dos últimos tempos. Certamente o "eu lírico" da canção é mais ingênuo do que eu, mas gosto de pensar que sempre essa emissão dá ao compositor a oportunidade de deixar algo de si mesmo quando, simultaneamente, se distancia pela oportunidade que a imaginação lhe confere de ser "outro". 




Nova Arcádia (música de Rafael Senra, letra de Luiz Henrique Garcia)

Entre as trevas a vista
se insinua o sinal
Imortal
O fogo que deu Prometeu
para a terra iluminar

nos cantos escuros
nas Minas Gerais
onde mais
se forje no ferro a razão
para o medo aprisionar

longe do alvorecer
e deixar
nosso povo escolher

sem calar
toda voz que se erguer
pra falar
do que ainda há de ser

Entre as sombras mais vastas
Esgueira-se a luz
Corpos nus
Apolo conduz pelo sol
para a vida completar

num canto maior
Nova Arcádia de paz
onde mais
se forje no ferro a razão
para o medo aprisionar

longe do alvorecer
e deixar
nosso povo escolher

sem calar
toda voz que se erguer
pra falar
do que ainda há de ser