Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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2 de dezembro de 2019

Todos os malucos no mesmo galho

Quando a gente acha que já ouviu todo tipo de maluquice ser pronunciada por representantes do atual governo brasileiro, eis que o recém empossado presidente da Funarte, Dante Mantovani, revelou-se um contumaz distribuidor de asneiras e delírios através de um canal no You Tube [aqui a matéria da Folha sobre o assunto]. Não faz muito tempo, o ruminante da Virgínia, Orvalho de Cavalo [sic], andou espalhando o capim estragado que mastiga , afirmando que o filósofo (esse sim, ele não) Theodor Adorno teria escrito músicas dos Beatles. Mantovani tenta se igualar no besteirol, afirmando que
  
Não é que o Adorno tenha falado assim para os Beatles, ‘faça isso, faça aquilo, faça a liberação das drogas’. O teórico desenvolve a teoria e o agente vai lá e age”, diz. “Na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.

Ecoou imediatamente para mim a paranoia do macartismo nos EUA ou da Ditadura Militar made in Brazil. Lembrou-me ainda do achaque de fanáticos religiosos aos Beatles nos anos 1960, especialmente intensos depois de Lennon ter declarado marotamente que eles eram "mais famosos que Jesus". As besteiras de então, como as que um certo reverendo Nobel distribuiu no livro Communism, Hypnotism and The Beatles (1965) são o tipo de lixo eternamente reciclável.

Esse ataque, que em outras circunstâncias seria até divertido, é testemunho da degradação intelectual e de caráter que tomou conta do governo federal e se manifesta progressivamente em todas as suas instâncias. A censura, a truculência, o aparelhamento e o enviesamento de políticas de incentivo agora são a regra nos órgãos de cultura. Essa sabotagem sistemática reflete uma escalada reacionária que compreende o campo da Cultura na esfera do Estado como alvo de disputa ideológica, plataforma do conservadorismo político, balcão de negócios sem qualquer critério de bem público e, simultaneamente, jamais tratá-lo como espaço público e de direito. Converte-a em uma espécie de arma política apropriada ilegitimamente para fustigar adversários, introduzir diversionismo e promover revisionismos de toda ordem. Enfim, há método nesse disparate, e é a partir disso que precisamos combatê-lo.

3 de janeiro de 2019

Entre a terra e o céu, há Djavãos

A velha fórmula aplicada a Milton (um mistério que o Brasil entendeu) pode muito bem aplicar-se a Djavan, cantautor idiossincrático que consegue dar ao sofisticado a sensação de ser simples, ao estudado a sensação de ser intuitivo, ao enigma de suas letras a sensação de ser solução. Ele acaba de lançar um belo álbum, Vesúvio, que já recebeu boas resenhas [Mauro Ferreira] e deveria ser o foco da escuta e da conversa [entrevista]. Entretanto o assunto não é esse, mas um trecho de entrevista motivada pelo lançamento, no qual ele diz: “Eu estou muito esperançoso. Eu sou uma pessoa otimista. Eu tenho uma esperança de que o Brasil vai dar certo. Tudo o que acontece agora aponta para um futuro melhor. A gente não pode garantir, porque o governo ainda não está atuando, está apenas se formando, mas estou esperançoso” [para ver o vídeo, aqui]. A isto se seguiu um destemperado ataque virtual que não se restringiu à declaração, transformando em alvo sua pessoa e sua obra - a que ele respondeu. Como é difícil as pessoas entenderem das falhas daqueles em quem projetam, erroneamente, uma infalibilidade. Djavan se equivoca como todos nós podemos. E como Toquinho pode. E amanhã imagino que é razoável esperar que ambos, e tantos outros, se arrependam. Aliás, é das melhores coisas que podemos esperar pois os que caíram no engodo do fakeado poderão nos ajudar a refazer o que foi desfeito. É uma imaturidade. O amor, a admiração por uma obra, pelo artista, depende de entender sua humanidade.
Para piorar, aqueles que promovem qualquer tentativa de ponderação, nos quais me incluo, são também atacados em doses maiores ou menores de fúria santa daqueles que se outorgam o papel de policiais morais e ideológicos das redes sociais. Isto é bastante revelador de que o está morrendo é a capacidade crítica. As pessoas adotam um binarismo que, no final, será insuportável para elas mesmas. Falta ler um tiquinho. De repente só O alienista de Machado já as ajudaria a ver como o mundo é bem mais complicado do que elas querem achar. Querem atribuir aos que defendem distinguir e dar proporção entre uma opinião política criticável e a avaliação do que o artista criou por toda uma carreira a pecha de cumplicidade. Há uma aplicação muito equivocada dessa expressão "passar pano". Parece mais que se trata de um verdadeiro santo sudário. Ninguém está deixando de criticar, lamentar, discordar da fala de Djavan, que é péssima mesmo se contextualizada, uma vez que ele se contradiz ao se afirmar antibelicista e depositar expectativas no governo que começou. Isto está explícito. Isso, dito, ser um bom compositor não torna ninguém infalível. Qualquer ser humano se equivoca às vezes, e tomar uma entrevista como suficiente para anular uma obra inteira , uma vida inteira, é desmedido. Fazer crítica é ter medida, e não aplicar julgamentos que parecem partidos de divindades que supostamente estariam acima (!?) da falha que é própria da condição humana. Djavan, como todos nós, pode desentender inclusive de si mesmo. Na capa do disco, ele nos mira (e também se mira, pois ela seguramente é espelho diante dele) como esfinge, cuja música merece um ouvido que tente decifrá-la e devorá-la. Entre a terra e o céu, há Djavãos. Não devemos nos tornar surdos porque um deles fala o que não queremos ouvir. Ouçamos todos.



12 de julho de 2015

FLIP, IASPM e outras bossas

Passei uns dias longe do blog, em função de um mês de junho muito movimentado, incluindo aí duas viagens. Numa dessas fui a Campinas para participar do 18° Congresso da IASPM (associação internacional de estudos da música popular) sobre o qual ainda falarei mais detidamente. Mas agora, de volta, enquanto assisto a um trecho da divertida e instrutiva mesa que reuniu Hermínio Bello de Carvalho e José Ramos Tinhorão na FLIP, por um link gentilmente encaminhado pela amiga e colega pesquisadora Sirlene Bernardo, não pude deixar de recordar que a primeira mesa que assisti na Unicamp chamava-se Bossa beyond Brazil, em que pude conferir os trabalhos de pesquisadores de outras terras a respeito desse gênero que é o pomo da discórdia da mesa, uma vez que Tinhorão, com a verve que lhe é peculiar continua a sustentar que a BN não é brasileira (ainda que acabe reconhecendo a originalidade do violão de João Gilberto, ops?!), calcando-se na detecção de fortes indícios de influência jazzística nas composições de Tom Jobim (ele sempre recorre aos mesmo exemplos, como Mr. Monotony em Samba de uma nota só). O curioso, justamente, é ter visto na mesa de Campinas a perspectiva oposta, ou seja, estudiosos anglo-parlantes e conhecedores de música popular ressaltando o quanto a Bossa Nova é percebida como brasileira (inclusive sendo enquadrada nos estereótipos gringos da brasilidade) e mesmo aos ouvidos dos que reconhecem traços, diferente do jazz.





31 de julho de 2014

Pobre MPB rica

A MPB está pobre, diz Mônica Salmaso [entrevista em O Globo, aqui]


A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio. Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz — lamenta.


Entendo que quando ela diz isso os ouvidos dela estejam por demais voltados para os veículos tradicionais, rádio, tv, e o mainstream da indústria fonográfica. Se cabe ponderar que a MPB feita atualmente não se resume ao que ressaltam esses meios, de outro lado é uma fala sintomática que corrobora tantas outras na detecção dessa quebra da correia de transmissão que um dia ligou o que de mais inventivo era realizado em nossa música popular a um público amplo, que acessa esses veículos. Precisamos sim reconstruir esses vasos comunicantes entre o manancial de composições de altíssimo nível e o ouvinte de música popular para além de pequenos círculos.

Ainda não ouvi o disco novo dela todo, e por mais que goste da Salmaso e seja grande admirador tanto do Guinga quando do PC Pinheiro ainda é muito cedo pra dizer que importância tem ou não. Tem outra coisa, por experiência própria sei como lamentavelmente jornalistas e editores são bem capazes de pinçar certas coisas numa fala bem mais contextualizada e apresentá-las de modo que venda e repercuta, independente de serem a expressão correta do que a pessoa falou. Enfim, continuo achando que ela abordou o cenário maior, o mainstream mesmo, mas sendo assim espero que ela se manifeste para deixar mais claro o que disse. Com as redes sociais é possível ir além da superficialidade desses jornais de sempre.

Enquanto isso, não seria desvario sonhar que essa fala da Mônica seja retrucada com ofertas e sugestões que a animem a fruir com um pouco mais de delonga e paciência o que anda tocando nos eldorados subterrâneos digitais. Me parece que nas entrelinhas fica visível que ela não tem lá grande familiaridade com o meio em questão. Eu diria que, a essa altura, se quiser ser uma grande intérprete da música brasileira de hoje - e ela pode sê-lo - ela terá que se familiarizar ou buscar auxílio para tanto. Sem romantismo algum vamos ter que considerar que "garimpar" repertório é algo que mudou de figura com tantas plataformas eletrônicas que permitem que excelentes compositores possam, passando ao largo da lógica carcomida da indústria do disco, lançar ao léu e ao mar digital seus trabalhos para deleite dos argonautas dos oceanos internéticos. Ou senão, ainda é possível viajar, por o pé na estrada, procurar as pessoas, sentar e ouvir. Os intérpretes podem e devem ser aventureiros, arqueólogos do eldorado subterrâneo da canção a descobrir que a pobre MPB é rica de marré deci. 


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O debate desencadeado pela entrevista da Mônica Salmaso tem rendido até mais do que era provável, e pensei que seria válido ir compilando aqui algumas das principais observações e posições que vão aparecendo, e que irão sendo somadas pelos comentários que os leitores começam a deixar no blog. Muitas sublinham questões para as quais não atentei ou eventualmente trazem pontos de vista diversos do meu. Como em outras ocasiões, considero o blog uma forma de agrupar material documental e dar espaço à troca de ideias. Começo com trechos de um texto que o violonista, compositor, intérprete e arranjador Sérgio Santos [quem quiser pode conhecer aqui seus brilhantes trabalhos] publicou no facebook [completo, aqui], que ele gentilmente me autorizou a publicar, pelo que agradeço muito. Se ele foi interpelado sobre o assunto é porque, além de seu reconhecido mérito como músico, mostra-se um comentarista arguto, que realiza uma crítica cultural de muita propriedade, que percebo ser uma referência para quem atua e pensa na música popular brasileira.

Sérgio Santos:
"A entrevista de Mônica Salmaso essa semana no O Globo tem gerado uma série de posts e comentários aqui. Fui citado em vários, e por isso, além de ver importância no assunto, me sinto confortável para comentá-lo. Conheço Mônica desde a época dessa foto. Pelos meus cabelos pretos dá pra ver que tem tempo. Sei que ela ama o que eu faço, assim como eu amo o que ela faz. Mas ela nunca me gravou em seus discos. E isso nunca me aborreceu ou frustrou minimamente, porque sei como ela raciocina em seus trabalhos, sei como ela pensa a música. [...] Em primeiríssimo lugar, é preciso que se diga que o fato principal da entrevista, o assunto que a gerou, é o lançamento de um trabalho magnífico. Não se trata de Guinga e de Paulinho isoladamente, mas de uma obra conjunta que estaria (por razões inúmeras que não se cabe discutir) irremediavelmente condenada ao desconhecimento, ao limbo musical eterno, caso Mônica quando a descobriu não tivesse batalhado por lhe trazer à luz. Isso é um fato, não cabe discussão. Tive o privilégio de conhecer a totalidade dessa obra há muitos anos (das gravações da Mônica só conheço as 4 que ela publicou), e não tenho a menor dúvida de que essa obra dos dois compositores é DAS MAIS IMPORTANTES E FUNDAMENTAIS DA MÚSICA BRASILEIRA RECENTE!!! Ela faz parte do que melhor produzimos em música popular!!! Esse é o fato principal!!!! E parece que ninguém se ateve a ele suficientemente, antes de criticar a cantora que a desenterrou. Acaso alguém que concluiu da entrevista de Mônica que ela desconhece a melhor música que fazemos, já ouviu essa obra? Não uma música ou outra, mas essa obra? Duvido muitíssimo que a maioria a conheça, já que ela não era acessível!! Aí temos uma cantora que descobre esse repertório oculto, que se move até ele, que enfrenta os não poucos meandros que envolvem gravá-la, que a torna acessível, e essa mesma cantora é criticada por… desconhecer a melhor música brasileira!!! Ainda que ela tivesse sido infeliz na sua declaração, E NÃO FOI, acaso não seria esse assunto principal que a materia traz, relevante o suficiente para ilustrar o fato de que trata-se de alguém que suou e muito a camisa, exatamente para mostrar a melhor música que produzimos???? Não estaria suficientemente claro, então, a qual música Mônica se refere??

Ah, muitos dirão, mas é fácil graver Guinga e PCP, que já estão estabelecidos! Queria vê-la gravando artistas realmente novos, pouco conhecidos! Há até quem tenha feito listas deles, que deveriam ter sido citados na entrevista, para mostrar a Mônica que ela desconhece tanta novidade, que está presa ao passado, etc. E aí, dá-lhe citações e listas, e em muitas delas lá estava eu incluído! Perdão mas NUNCA considerei a criatividade uma questão geracional. Fazer música criativamente não é uma atribuição exclusiva para jovens nem para velhos. Nem para iniciantes nem para consagrados. Há setentões consagrados fazendo discos maravilhosos recentemente. Assim como uma pilha de discos lindos que ouço SEMPRE de um monte de iniciantes talentosíssimos, todos desconhecidos do grande público (não me crucifiquem por não citá-los!!). E daí? Da mesma forma há um monte de discos de artistas iniciantes sofríveis, POBRES de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. Assim como também fazem um monte de consagrados!! Repito: e daí? O universo que Mônica se insere, não distingue geração entre os criadores!!! Ah, dirão, mas ela deveria ter dito que essa música fantástica existe! Perdão, mas realizar vale menos que falar da existência?? Tenho certeza que a realização de um trabalho como o que ela agora lança, fala muito mais e vai favorecer muito mais a minha música e a música de quem esteve citado em tantas listas, do que se ela tivesse desfiado um rosário de citações.

O principal a se ver nessa polêmica é reconhecer que a música brasileira não poderia passar incólume a anos e anos de bombardeamento constante de lixo descartável. Isso não pode ter acontecido sistematicamente sem deixar marcas no comportamento do público, na sua capacidade de discernimento, na nossa forma de olhar para a nossa história cultural e musical, NA NOSSA CRIAÇÃO!!! Edu Lobo tinha 17 anos quando fez Ponteio. Por ele ser um gênio? Também! Mas por viver em um ambiente cultural com as referências necessárias para realizar o que realizou. É preciso uma miopia grave para não entender que essas referências, não apenas na música, mas na cultura em geral, não apenas no Brasil, mas no mundo, empobreceram sistematicamente. E é isso que faz com que todos que pensamos criativamente nos sintamos estranhos no ninho!! E essa falta de referências culturais, que foram substituídas pelo marketing, pelo peso da mídia e pelo lixo industrial, pesaram negativamente para o geral da criação artística no mundo todo, em todas as artes!! É a esse empobrecimento que Mônica se referiu. E ISSO NÃO MUDA PELO FATO DE HAVER UMA LEGIÃO OCULTA DE SOBREVIVENTES DESSE DILÚVIO DE MEDIOCRIDADE!!! Legião essa que luto dia após dia para fazer parte dela. E é preciso se ter muito claro que a chamada música independente, está apinhada, repleta, entupida, dessa mesma pobreza criativa que não é exclusividade do “mainstream”. Ela se espalha exatamente pela capacidade de divulgação e pelo espaço desproporcional que ocupa. Crer que a "independência" e a onipotência da internet garante a isenção estética, na minha modesta opinião é um grave erro, e bastante generalizado.

Fiz um post há alguns dias dizendo dessa mesma coisa, do meu cansaço e do desgaste que é enfrentar essa realidade POBRE diariamente!! Alguém acha rico o contexto que nos inserimos? Alguém acha instigante se mover no sistema geral desse mundinho ridículo de editais aos quais temos que nos submeter? Alguém é capaz de dizer que há riqueza nas possibilidades a que nossa profissão foi relegada? Principalmente, alguém é capaz de achar que isso não influencia esteticamente naquilo que se cria?? Nesse post, curiosamente ninguém me criticou. Pelo contrário! Talvez o tenham feito com Mônica pelo lugar que ela vem ocupando, e ocupa com a maior das justiças. De mim pelo menos não poderão dizer que sou “divo”, que estou na mídia, etc. Espero que não, que me rebatam com argumentos!! Pra terminar, tenho a maior das certezas de que TODOS os envolvidos nessa discussão JOGAM EXATAMENTE NO MESMO TIME!!! Talvez seja oportuno calibrar melhor a mira!!!"







11 de fevereiro de 2014

Estudando a entrevista


Enquanto relutava em concluir a leitura do já nascido fundamental livro de Chico Amaral, A música de Milton Nascimento [ler resenha aqui], fiz algumas reflexões, entre as muitas instigadas por estas páginas tão bem escritas e alinhavadas com a habilidade e criatividade próprias de seu autor. Como uma suíte, o livro é composto de partes que se encadeiam e se complementam, mas guardam andamento e arranjo diferentes. Destas, um dos destaques é a longa entrevista feita com Milton. Uma coisa que me incomoda nas entrevistas feitas com músicos populares, que li em boa quantidade ao longo dos anos em que pesquiso o assunto, é que as perguntas e respostas tendem a se repetir, seja pela finalidade editorial daquele depoimento, seja porque o entrevistador acomodou-se e confiou nos caminhos já trilhados de quem já registrou a fala de seu entrevistado, ou porque este último já como que automatizou as respostas, tantas foram as vezes em que lhe fizeram as mesmas questões. A do livro tem como mérito maior o tempo e destreza gastos em esmiuçar o que de fato é o objeto da obra, ou seja, a música. Não é comum os músicos tratarem de forma tão detida desse assunto, e aqui isso se dá porque o entrevistador não apenas conhece a teoria, mas igualmente a prática, o que lhe instrumentaliza para conduzir bons papos, eventualmente difíceis para os que não detém um certo conhecimento específico da matéria. Além de deixar espaço para as idas e vindas, sem deixar o entrevistado refém de um roteiro muito estruturado, mas tão pouco lhe abandonando às longas derivas que o rememorar pode produzir, ela é bem pensada na forma de apresentação, trazendo aqui e ali rápidos e certeiros comentários posteriores do autor ou, o que é muito interessante, alguns trechos de outras entrevistas com os demais participantes das aventuras musicais de Milton, chamadas para esclarecer, pontuar, pormenorizar, ou talvez para lembrar ao leitor a natureza lacunar própria do lembrar. 
É uma alternativa ao formato mais clássico de entrevista longa, geralmente organizado em torno da biografia do entrevistado. Uma variação pode ser encontrada nas entrevistas conduzidas por pesquisadores usando metodologia da denominada História Oral, concebida para revelar novos ângulos a respeito do vivido partindo do trabalho de rememoração  pelo sujeito que protagonizou a experiência histórica em questão. Entrevistas assim tem o mérito de poder cobrir uma gama de assuntos de interesse e costumam ser mapeadas de modo a permitir a indexação e acesso a partes delimitadas de seu conteúdo, como nos depoimentos ao Museu Clube da Esquina produzidos pela equipe do Museu da Pessoa.
Há também entrevistas que são realizadas por vários perguntadores, posicionados  em bancadas, como no emblemático programa de tv Roda Viva {Bar Academia; , ou de modo mais informal e próximo ao entrevistado, como era o costume nas realizadas pel' O Pasquim. Outra possibilidade é a de realizar a entrevista com vários músicos, arregimentados por sua afinidade e envolvimento em projetos coletivos, como é o caso de algumas entrevistas com membros do Clube da Esquina. {Histórias da MPB, TVE-RJ; O som do vinil; Espaço aberto} Ou eventualmente os próprios músicos podem ser deixados à vontade para desenvolver uma conversa proveitosa e reveladora. É o que ocorre no documentário A sede do peixe, no cenário propício de uma mesa de bar. Um formato marcante é o do programa Ensaio, em que o músico vai interagindo com o entrevistador mas quem assiste só ouve as respostas, sentido-se instigado a deduzir as perguntas feitas da cabine do programa. Em muitos programas televisivos desse tipo há apresentações musicais intercaladas, e eventualmente os músicos permanecem com seus instrumentos ao longo da entrevista, o que pode ser interessante para que ele ilustre ou traduza sonoramente determinados pontos de sua fala {Toninho Horta violão ibérico}. 



27 de janeiro de 2014

Polêmicas que movem a música popular

Matéria muito interessante sobre a situação atual do tango, no Tiempo Argentino. Apenas um aperitivo:

Extender certificados de defunción es una actividad exclusivamente humana. Pero esa costumbre o necesidad también suele aplicarse al mundo de las artes. Sin ir muy lejos, el rock convive con cíclicos y grandilocuentes anuncios de su muerte que pueden desestimarse sin mayores esfuerzos. Alcanza con repasar su inserción popular y el volumen y nivel de muchas de sus propuestas artísticas  –que como casi siempre hay que saber ir a buscar y no entregarse al recorte interesado de las altas rotaciones radiales–. Lo mismo le suele pasar al folklore, el jazz y a tantas otras músicas. Quizás nuestra ineludible finitud tenga algo que ver con esa necesidad de dar por concluido lo no concluido. Pero posiblemente la mayor motivación pase por nuestra dificultad para comprender –y aceptar– los cambios en las estéticas y modos de circulación de muchos de esos géneros.

Una entrevista realizada a Rodolfo Mederos en el diario El País de Colombia bajo el título "El tango está muerto" despertó una enorme polémica entre músicos y fanáticos locales. El texto incluía otras expresiones controvertidas como "Quien no vivió en Buenos Aires en los años '50 o '60 nunca va a comprender lo que fue el tango", "(al tango) No le queda camino, el camino va para atrás. Queda la historia" o que Piazzolla es casi "el antitango". Es evidente que Mederos –como cualquier otra persona– tiene todo el derecho para expresar sus opiniones. Y que en su caso en particular cuenta con un innegable compromiso con el género –como intérprete, compositor y docente– y una sólida capacidad intelectual para presentar sus ideas. También es notorio que mucha otra gente no comparte esas expresiones y hasta puede sentirse ofendida. Pero no se trata de discutir a Mederos –que de hecho muy gentilmente se sumó a la convocatoria de Tiempo Argentino para participar de ella–. Aquí se abre otra oportunidad para poner los ojos en el tango de hoy y reflexionar sobre sus fortalezas, sus debilidades y pensar qué medidas o estrategias pueden favorecer su crecimiento.

24 de dezembro de 2013

Quanto vale o show?

Uma das formas de repercussão cultural que considero particularmente interessante é o comentário. Uma breve notícia, ao ser comentada, dependendo da argúcia ou mesmo da verve de quem a comenta, pode desencadear um imenso debate, que por vezes pode superar a condição de festival de verborragia e realmente acrescentar algo, lançar uma nova luz sobre o que motivou a discussão inicial ou ao menos  representar uma reunião de posições relevantes para que o debate possa seguir e se aprofundar. Hoje em dia isso acontece com frequência via facebook mas às vezes sinto que o encadeamento do processo se perde quando o tempo passa e o ímpeto suscitado pelo comentário arrefece. No caso abaixo achei que valia a pena transformar em postagem, na tentativa de deixar ao menos um registro que fosse além das "linhas do tempo"...

A notícia
A Retratos da Vida descobriu o cachê que Caetano Veloso e Gilberto Gil vão receber para cantarem no réveillon de Salvador. Cada um dos baianos embolsará R$ 600 mil. A festa está sendo organizada pela empresária Flora Gil, cujo sobrenome entrega de quem ela é mulher. A virada do ano na capital da Bahia está sendo financiada com dinheiro público e de empresas privadas.

O comentário da notícia, por Pablo Castro
Caetano e Gil vão receber, cada um, 600 mil reais para cantar no reveillón de Salvador. Estou pra escrever um artigo mais longo sobre esse assunto, mas já cabe aqui apontar em que medida esses dois baluartes do tropicalismo se tornaram uma espécie de coronéis da cultura brasileira. Nada justifica um cachê desse porte, ainda mais para dois milionários.
Ao invés de propor um debate sobre o sucateamento da música brasileira, eles se contentam em engrossar sua fortuna com dinheiro público. Injustificável.

O comentário do debate no facebook, por Luiz H. Garcia
Acho que algumas coisas se perdem e argumentos truncam quando não fica claro onde estão os nós. Primeiro, quando se trata de dinheiro público não se pode raciocinar estritamente dentro de uma lógica de mercado. Cabe exigir sempre transparência e responsabilidade dos administradores, e aí cabe questionar o montante, mas também a própria decisão. Por que o Estado, que nem dá conta de garantir com boa qualidade os serviços essenciais, gasta recursos com festa de reveillon, inaugurações e afins? Mesmo que seja legal, será legítimo? Assim, mesmo com zero desvio, zero superfaturamento, zero favorecimento de x ou y, mesmo assim seria questionável. E outra coisa, prefeitura tem que pensar em política, em equipar a cidade,com esse dinheiro dá pra fazer coisas que atenderiam gerações, anos e anos, ao invés de fazer um espetáculo de uma noite cujos benefícios, por mais que existam, se dissipam rapidamente. Por que as empresas, que se interessam pela publicidade direta ou indireta desses eventos, não pagam a conta toda do bolso delas? Não dizem que a propaganda é a alma do negócio? Então? Os argumentos até aqui nem colocam em questão quem são Gil e Caetano, nem a qualidade ou perenidade da obra deles, sequer da atuação deles como cidadãos. Personalizar e medir afetos e desafetos não funciona, aliás é um verdadeiro traço de cordialidade, no sentido proposto por Sérgio Buarque de Holanda. Entrar nessa de quem merece, quem não merece, não é razoável até porque no final vamos ter que encarar que vivemos numa sociedade totalmente desequilibrada em relação à forma de remunerar o merecimento (há exemplos acima). Isso portanto já é uma premissa. Agora o nó mais apertado, difícil de debater é a questão ética. Sem bom-mocismo, sem cinismo, devemos debater isso sim. Para efeito de raciocínio novamente não interessa quem são Gil e Caetano. Interessa que são cidadãos brasileiros e que vão se apresentar em espaço público. Seria mesmo absurdo demais desejar que dois cidadãos nessas condições propusessem cachês menores, que ainda fossem plenamente satisfatórios para remunerar uma noite de trabalho, por considerar a dimensão pública dessa apresentação?? Queremos um Estado transparente, administradores responsáveis, mas nós não precisamos agir assim?? E mais, ante um comportamento cuja legitimidade é questionável, devemos é nos calar porque no fundo supostamente gostaríamos de estar na mesma posição para ter o mesmo comportamento? E quem age assim não deve nem ao menos receber a crítica? Sem romantismo, repito, mas é possível aperfeiçoar uma democracia esperando que um Estado comprometido com o bem público brota por geração espontânea, que bons governantes descerão de discos voadores? Enfim, um debate mais que urgente e importante, que é bom que seja feito sem pequenez, sem picuinha, sem personalismo.

20 de agosto de 2013

Tropicar ou não tropicar, eis a questão... ou não (Na estante especial)


Pena que não se produzam aqui mais publicações como essa organizada por Carlos Basualdo, em edição primorosa da Cosac Naify, de grande apuro visual e combinando ensaios recentes, textos de época, documentos, obras e reproduções gráficas, num conjunto que agrada e ao mesmo tempo é de grande utilidade para o pesquisador interessado pelo tema. Sua única falha, de certo modo sintomática, é a ausência de músicos em qualquer dos textos analíticos ou balanços de época, que não sejam os próprios partícipes - e talvez mesmo aí um foco demasiado centrado em Caetano e Gil, vício compartilhado por quase tudo que se produz sobre o lado musical do tropicalismo. Daí que me pareceu uma ótima ideia uma postagem especial da seção "Na estante", fugindo um pouco da forma enquadrada da resenha e apresentando o livro junto com essa arguta e sintética análise do meu parceiro Pablo Castro para um trecho de um dos artigos do mesmo. Devorem sem moderação: 


“Talvez os softwares livres do ministro Gilberto Gil criem um ciberespaço onde o espírito tropicalista se reproduza em inteligências artificiais e virtuais, na periferia de um novo império americano que o rock amado com tanto custo por determinados jovens baianos dos anos 60 nem sequer podia imaginar”. Hermano Viana. Políticas da Tropicália. in: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 142.

Com essa frase lapidar é possível antever em que se transformou o conceito tropicalista, ou pelo menos o seu uso na atual guerra ideológica em torno de cultura, política e ativismo: ao invés de proporcionar uma janela antropofágica para o mundo, em que o enlatado gringo era fagocitado e reelaborado por um espírito brasileiro não subalterno, dedicado a traçar, a partir de um mosaico de referências variadas e mesmo díspares, uma salada de possibilidades estéticas emancipatórias, o que enxergamos hoje é um ataque a toda e qualquer altivez autônoma do espírito brasileiro em nome de uma panacéia do "roque amado ", envelhecido , indiferenciado e completamente desvinculado de qualquer raiz cultural -musical brasileira, uma espécie de "software livre" musical que é o único denominador comum de gerações e gerações que não conheceram a riquíssima música brasileira pré e mesmo pós-tropicalista, por força das contínuas investidas imperialistas contra a música nacional : primeiro, sucatearam a indústria fonográfica brasileira de modo a incorporá-la às majors ; em seguida, extinguiram a estreita brecha por onde a música brasileira não totalmente dominada pelo processo industrial era alçada a multidões através da Tv e do rádio , instituindo a maior "cadeia nacional " de Tv de que se tem notícia no mundo ocidental, e fortalecendo o jabá no sistema radiofônico, sufocando as expressões simbólicas locais e instituindo um filtro apertado , controlado por pouquíssimas mãos, sobre o que era alçado a nível nacional, desfazendo os laços entre a música brasileira e seu povo, descaracterizando a formação musical do ouvinte ; e, por fim, nos últimos anos , aparentemente através da participação política do próprio Gilberto Gil enquanto ministro da Cultura, se propulsionaram investidas nebulosas contra o artista e o autor brasileiro, o que o crescimento da rede FDE, agigantada nos anos Gil, deixa evidente, alimentada com dinheiro público de editais e estatais, com tentáculos na grande mídia , em vários partidos e nos primeiros escalões das secretarias de cultura e do Minc.

Também se destaque o papel de uma certa intelectualidade acadêmica com relações no mínimo suspeitas com "gestores culturais " , atuando nos dois lados da equação : como legitimadores de certos "processos" e beneficiários de determinados investimentos culturais , alguns públicos e outros de origem obscura.

Assim, a premissa antropofágica tropicalista se converteu em salvo-conduto contra toda e qualquer crítica cultural que problematize a progressiva homogeneização e rebaixamento das expressões musicais no Brasil ; um relativismo absolutista que , por meio do nivelamento por baixo de tábula rasa, iguala tudo a qualquer coisa, e , ao contrário de revelar a potência política da música, em seu conteúdo imanente, faz dela um mero pretexto para objetivos político-econômicos extremamente perversos do ponto vista do auto-reconhecimento de um povo e sua soberania artística, intelectual e cultural. Pablo Castro

10 de agosto de 2013

O caso Fora do Eixo

Os depoimentos, longos ou não, são importantes para que se desenvolva uma perspectiva sobre um determinado objeto, no caso o Fora do Eixo. Eles se cruzam, evidentemente, com outros registros e formas de troca de experiência. Como era de se esperar aparecem depoimentos {Laís Bellini, Isabelle Gusmão, Tuizo Tozzi, Beatriz Seigner, Malu Aires George Yudice entre tantos} de toda ordem, mais ou menos coerentes, mais ou menos refletidos, ou intensos. Mas todos os que tenho lido (não só os que aparecem agora, mas há mais tempo também) de alguma forma convergem no sentido de revelar práticas nefastas que estão de alguma forma camufladas por uma retórica supostamente "revolucionária" e "coletivista". Cito aqui a precisa síntese de meu parceiro Pablo Castro: "O Fora-do-Eixo não se interessa por isso [arte]. Interessa-se por editais públicos, jogos de gabinete, tráfico de influência e marketing baseado em trabalho escravo 2.0." Simplesmente é isso, uma forma de expropriação do trabalho até mais rentável do que a do trabalho assalariado. 

Sem disposição para fazer tratados no momento, mas como afirmar, como querem alguns,  ser contra-hegemônica uma forma econômica que promove a expropriação do trabalho - não vem ao caso se é voluntária ou não é, pois no limite "trabalho" é um meio de manutenção da existência humana, o que torna ainda mais integrada uma forma de expropriação que supera até a concessão de remuneração do trabalho tipicamente capitalista que é o salário. O FdE vende "espaço", "divulgação", "exposição na mídia" (ainda que não seja a tradicional) , bens simbólicos, intangíveis, cujo valor difícil de mensurar foi cartesianamente atribuído através de um sistema monetário (cubo cards), que no fundo se lastreia, SIM, na produção material real que desemboca nos recursos públicos aferidos por IMPOSTOS, pois é das leis, editais e demais mecanismos de renúncia fiscal que são alocados os milhões de REAIS que pagam pelos eventos, circuitos, etc. Portanto, basicamente, podemos dizer que o FdE especula com o dinheiro público se aproveitando organicamente, sem qualquer contraponto, de uma política neoliberal implantada na área cultural.

Seus dirigentes, organizadores, integrantes, colaboradores, ou seja como se chamem, devem ser interpelados na medida de seu comprometimento e atitudes. Não é possível ignorar a profusão de críticas, denúncias, desabafos. Respostas serão cobradas, junto com documentos que possam esclarecer as questões nebulosas [esperando coisa melhor que isso aqui]. Mas, creio que o buraco é bem mais embaixo e a interpelação deve ser direcionada também às instâncias públicas responsáveis. Porque está claro que há aí um verdadeiro sorvedouro de recursos públicos (via leis de incentivo, editais e congêneres) destinados à cultura que revelam, talvez em uma versão superlativa, o grande problema de concepção dessa forma de financiamento público da cultura em que emergiu a figura do atravessador/produtor cultural que em modulações diversas intermedeia a criação alheia e conseguem ser mais bem remunerados que os próprios criadores [não estou obviamente ignorando as exceções, mas chamando a atenção para um padrão]. É muito grave que este modelo que se preste ao financiamento de "casas" e de uma organização em que há evidências de práticas que desrespeitam vários direitos, coação, assédio e/ou violência, exploração do trabalho, entre outros. Assim, não é o caso apenas de denunciar e criticar o FdE a partir de evidências mais do que abundantes, mas sim de conduzirmos uma reflexão sobre toda uma forma de organizar os recursos públicos destinados à Cultura em nosso país, pois é nos nós cegos do modelo do incentivo que se costuram práticas nefastas dessa rede/seita,  e que também se precariza, efetivamente, as possibilidades concretas de sobrevivência digna, independente e criativa dos que são indubitavelmente os artistas.

Para ler também:

"A arte da renda". In: A produção capitalista do espaço
Por David Harvey [aqui pdf completo do livro]

"O pós-rancor e o velho Estado: uma crítica amorosa à política do Fora do Eixo"
Por Regis Argüelles [aqui]

"Olhar de Alguém de Fora no Fora do Eixo" 
Por Shannon Garland [aqui

"Fora do eixo: raízes do ressentimento"
Por  André Azevedo da Fonseca [aqui]

4 de agosto de 2013

Do arco da velha

Li agora um texto do filósofo Vladimir Safatle publicado na Folha, desses que tem aquele título feito sob medida para despertar a polêmica: "Música no Brasil é prisioneira da canção" [completo, aqui]. Não entendi muito não, o que ele quer, dar uma puxada de orelha na "classe ilustrada" brasileira? Dar uma aulinha básica de produção contemporânea erudita? E os exemplos que ele cita, é pra gente ver que ele conhece? Desculpe-me o Safatle, achei isso aí "do arco da velha".
Senão, vejamos... Começa assim

"Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira." Esse diagnóstico preciso foi fornecido pelo compositor Gilberto Mendes.


Ora, o subtítulo do referido texto diz que o "Debate cultural ignora contribuição da produção contemporânea erudita". Não poderia ser mais sintomática a retomada de uma citação que está tão datada que colocá-la sem maiores ponderações é, no mínimo complicado. Se é para falar de nossa contemporaneidade, precisamos rever e ponderar as expressões usadas por Mendes na fala dele. De quem ele estava falando e de quem falamos agora? O que seria hoje a "classe culta brasileira", ou o "intelectual brasileiro". São expressões elitista mais que desgastadas. Não tenho a menor pretensão de resumir aqui décadas de discussão sobre sociologia dos intelectuais. Mas obviamente já se esgotaram as reservas rígidas de gosto ou capital cultural, implodindo com isso qualquer perspectiva de que se possa categorizar indivíduos que constituem coleções heterogêneas dos mesmos como uma "classe" ou "categoria". A seguir o "contemporâneo", essa categoria escorregadia. Não sou, nem de longe, um bom conhecedor da "produção contemporânea erudita" (comprando por um instante a premissa, problemática, de uma classificação que musicológica e culturalmente poderia ser discutida longamente...). Mas quem são os contemporâneos? Podemos tomá-los pelos que estão vivos, respirando e vivendo no mesmo tempo que nós estamos. Ok. Mas também podemos pensar, se tentamos de alguma forma dar inteligibilidade histórica à campos específicos da produção cultural, que contemporâneo é o que ainda não está, definitivamente, incorporado a uma narrativa que o posiciona em um dado contexto, tradição, momento. Não pode evidentemente existir nada fora da História, mas enquanto certos fenômenos se desenrolam estamos ainda a descobrir e tentar definir sua historicidade. Nesse sentido o "contemporâneo" do Safatle me parece já muito bem assentado e suas referências são essas já 'panteonizadas' seja no que ele toma por erudito - Boulez, Berio, Ligeti, Glass - ou popular - Caetano, Chico. Por isso mesmo me parece que não está a falar desse momento, ou da produção de agora. Seria recair num absurdo "presentismo" desconhecer que qualquer um desses compositores possa ser contemporâneo no sentido de por sua criação em diálogo com o que está acontecendo hoje, porém, por outro lado, não vejo também como não considerar o que, na posterioridade desses, ou dos que cita Gilberto Mendes, reconhecer e investigar o contemporâneo. Não há menção no texto a nada produzido por quem quer que seja nos últimos 10 anos. Não quero aqui fazer um juízo primário sobre o valor do novo, apenas entender sob qual material sustentam-se as conclusões oferecidas pelo autor.
A seguir lê-se

"Ele indicava uma estranha ausência no "sistema nacional das artes": a ausência de debate e interesse pela produção musical das últimas décadas. Mesmo comprar um CD de compositores fundamentais como Brian Ferneyhough, György Ligeti ou de brasileiros como Flô Menezes e Almeida Prado pode ser tarefa impossível. Como se essa produção não existisse e nada tivesse a dizer.
Pode-se dizer que essa situação não é muito diferente em outros países. Mas isto não é verdadeiro. Mesmo que compositores americanos como John Adams e Steve Reich recebam mais encomenda na Europa do que em seu país de origem, é inegável que a música contemporânea tem um lugar no interior do debate e na vida cultural da América do Norte e Europa. Podemos nos perguntar por que, apesar de esforços como o Festival Música Nova, isso não ocorreu entre nós."
O que seria nesse mundo globalizado de deus um "sistema nacional das artes"? De acordo com quem, a Funarte?! Espero que não... Comprar um CD remete a questões de mercado que não se pode jogar fora e colocar o peso nessa suposição de que a produção não ganha sentido entre nós - e ainda por cima botar isso na conta da canção. O que seria esse debate e vida cultural agora, com foros tão diversos e conversas tão fragmentadas. Onde seria possível localizar "a" vida cultural aqui ou em qualquer lugar? Será nos círculos fechados, nas mesas redondas das universidades, nas colunas da Folha? Vale o buteco da esquina?

Por fim, como falar, com conhecimento de causa, que a canção aprisiona? A canção brasileira (naquilo que se dispõe a se chamar assim sem desconhecer a natureza nômade da música, como queria Said, e a disposição transcultural da música popular, especialmente) liberta! Seria preciso gastar mais outro tanto de linhas para dizer o que basta ouvir? Querendo ou não, na música, foi a canção popular a principal expressão de como nos vemos e somos vistos no mundo, e o que fizeram e fazem vários dos nossos cancionistas (não precisa fazer a lista porque eles fazem parte do nosso debate contemporâneo rsrsrs) só pode ser descrito como transgressão. Sim, escreve-se teses, dissertações, tratados e artigos acadêmicos sobre a canção. Porque mudaram os intelectuais - sejam quem forem, hoje - e porque a canção é um objeto pra lá de estimulante, múltiplo e relevante. Quem seriam, me pergunto, os artífices da tal "ideologia cultural nacional"? Que país será esse incapaz de "ver" uma música não popular? Não vou dar a pecha de crítica conservadora aqui, me parece é que é crítica ruim, puxão de orelha uspiano que dá muita preguiça. O que ouviu ou não ouviu um compositor de canções no Brasil? E, por consequência, seu ouvinte? E ademais, se vamos falar de intelectuais nas universidades, nos cursos de música, não vamos encontrar lá muitos, zelosamente, "aplicando" seus alunos em Boulez, em Ligeti? Muito mais do que em Chico, Milton, Caetano, para não falar nos contemporâneos que provavelmente nem sequer tem seus nomes mencionados? E qual música não seria, em alguma medida, a eleição de uma forma, de uma convenção usada para dar inteligibilidade aos sons? A argumentação poderia continuar mas a verdade é que já estou me sentindo prisioneiro aqui na frente da tela, vou ali ouvir uma canção do arco da velha.

7 de agosto de 2012

A boa palavra de Caetano Veloso





Sobre o Caetano há muito o que dizer. Caetano, por sua vez, também teve e tem muito que dizer. O autor de Boa palavra (diga-se de passagem a que Milton Nascimento mais gosta) fez dela matéria-prima de canção e pensamento como poucos. Assim pensei em reunir alguns trechos de entrevistas ou escritos do rapaz que comemora 70 verões.


Boa Palavra, de Caetano Veloso, na gravação de Elis Regina em 1966.








Debatendo os caminhos da música brasileira em 1966

“Preocupado com as coisas que Tom, Vinícius e João Gilberto formulavam, resolvi usar seus métodos na pesquisa de nossas raízes folclóricas. Daí em diante mudei pouco, pois já havia abandonado a preocupação formal da bossa-nova e queria fazer música brasileira(...). Hoje digo o que sinto, com o aperfeiçoamento musical que adquiri e com a consciência que a realidade brasileira me dá".”in: KALILI, Narciso. “A nova escola do samba”. Realidade. São Paulo: Abril, 1966,op.cit., p.119.


Lançando a ideia de linha evolutiva

“Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos (...) se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba(...)” Revista Civilização Brasileira, ano 1, n° 7, mai. 1966, p.378.


Comentando os impasses dos anos 1970 no livro Alegria, alegria

“O som dos setenta certamente só será audível quando nós estivermos perto dos oitenta. Pelo menos só então será identificável. Talvez, pelo contrário, seja ouvido de pronto e fique para sempre inidentificável. O som dos setenta talvez não seja um som musical. De qualquer forma, o único medo é que esta venha a ser a década do silêncio.” (VELOSO, 1977:56)


Discutindo arte e mercado no mesmo livro

“Pra que alguém possa fazer qualquer coisa assim como ‘Jóia’ é preciso que as gravadoras tenham Odair [José] e Agnaldo [Timóteo]: o universitário que tenta me entrevistar e salvar a humanidade fica indignado diante do meu absoluto respeito profissional e interesse estético pelo trabalho de colegas meus como Odair e Agnaldo. Centenas de novos compositores e cantores e dezenas de velhos músicos não encontram lugar no mercado.” (VELOSO, 1977: 174)



Participando de mesa-redonda “A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque, Caetano Veloso [que chega mais tarde], Edu Lobo e Aldir Blanc”, no suplemento especial de A revista do homem n°26, “dez anos depois dos festivais” (portanto, provavelmente em 1976).

“Dá a impressão que nós da música popular continuamos adotando uma posição elitista que mantém o peso semântico da palavra poesia como algo erudito, sério, importante (...) o problema da divisão entre música popular e música erudita é muito mais de áreas objetivas de ação que de algo perceptível pela criação (...) Nós, compositores da classe média, não fazemos uma arte erudita mas também não fazemos uma arte popular – ‘popular’ entendido como algo que sai do povo. O povo é tido como uma espécie de produtor puro de coisas não contaminadas por algo que não seja a sua essência. Ver o povo dentro desses moldes é uma atitude medieval.” (p.12-13)


Avaliando o passado em Verdade Tropical

“Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acorde perfeitos maiores em relações insólitas. Isso deve muito ao modo como ouvíamos os Beatles (...) Na verdade foi uma composição de Gil, ‘Bom dia’, que sugeriu a fórmula. A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a autonomia dos criadores – e dos consumidores” (VELOSO, 1998: 169 – 170)