Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

18 de setembro de 2022

FRUTO DO TRABALHO

Faz tempo que não tiro um tempo para cuidar do blog, e aproveite o intervalo antes da preparação do almoço de domingo para voltar à carga nessa seção, contando como foi o processo de criação dessa canção que fiz com o parceiro Dan Oliveira. O Dan é aquele músico de corpo e alma, de Minas e do Mundo, e nossa parceria tem sido das mais prolíficas e produtivas. Tenho grande admiração pela forma com que ele conjuga talento e dedicação, buscando traçar seu caminho como músico e profissional. Além de me brindar com sua amizade, o que já nos propiciou muitas horas contadas de papos nos botecos da vida e de criação.


Essa tem uma história sinuosa, como o movimento da cobra. Começa que foi inspirada por um filme, Arábia, rodado aqui em Minas, produto daquela recente cena cinematográfica de Contagem, dentre os quais foi o que eu mais ouvi ser elogiado. É o retrato de uma fatia da história social do trabalho no Brasil contemporâneo. Meus filhos sugeriram num sistema de "cineclube familiar" que criamos para assistir juntos durante a pandemia. Quem quiser pode ler a resenha que escrevi, aqui. Inspirado pelo que vi escrevi um poema, não faço tantos mas me arrisco:

FRUTO DO TRABALHO
A cobra me cobra
em cobre
empresa
sua presa me despreza
me implode me sacode
me dá bode me fode
em seu cabo
me acabo
A praga me prega
emprego
em prego é preso
o pai, o filho
o espírito
o corpo
amém?
ah, nem

Depois a querida amiga e colega historiadora Andrea CasaNova gostou e me propôs publicá-lo num livro que estava organizando de relatos sobre aquele período recente e perturbador. Achei que seria pertinente, desde que reunisse um relato sobre a criação do cineclube, uma solução que encontramos para tornar o convívio virtual imposto por algum tempo algo mais interessante. Assim foi feito, e já estaria de bom tamanho. 

Mas quando o Dan começou a me enviar alguns temas de forte inspiração bituquiana, desfiando um rosário de influências afro-mineiras, eu me vi diante da sensação de que um deles encaixava perfeitamente com o poema. Era, essencialmente, uma combinação de crítica materialista das relações de trabalho combinada a alusões da religiosidade cristã, logicamente de um ponto de vista que deixa entrever meu professo ateísmo. A ponte, subentendida, é a que leva do duplo sentido de prego, remetendo tanto ao cansaço físico quanto à crucificação. Tudo isso me pareceu casar perfeitamente com a música, que carrega aquele clima telúrico recorrente na obra de Milton Nascimento, além do compasso irregular, tudo denunciado no título do arquivo que ele me enviou: "Bituca em 7". Na forma ABAB eu às vezes gosto de dar uma enganadinha, colocando um verso repetido que cria uma sensação (ainda que fraca) de refrão, ainda mais quando a melodia tem uma variação que ressalta o trecho em relação ao restante da parte, daí o "mas hei de vencer", uma espécie de retruque determinado que evita condenar o "eu lírico" à denúncia paralisante. 




Fruto do trabalho
música de Dan Oliveira, letra de Luiz Henrique Garcia

A cobra cobra-me 
Bora trabalhá 
em cobre cobre-me 
pele pra rancá 

Empresa, sua presa
me corta, despreza 
penhoro minh’alma 
mas hei de vencer 

A praga prega-me 
Bora me purgá 
Emprego emprega-me 
Carne pra sangrá 

Em nome do pai, do filho, 
do espírito santo 
Imolo meu corpo 
Mas hei de vencer