Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

29 de abril de 2012

A outra cidade no Palavra Som

Três momentos ímpares com esses três cantautores ímpares parceiros relembrando A Outra Cidade no Palavra Som.
Para relembrar um pouco mais dessa história, aqui.
Intuição (Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia/Kristoff Silva, Makely Ka)
Mira(Pablo Castro/ Makely Ka)
Andante (Pablo Castro/ Makely Ka)

15 de abril de 2012

Relembrando Outra Cidade


Aproveitando o ensejo, no embalo do Palavra Som, eu e meu parceiro Pablo Castro resolvemos gravar um bate-papo falando sobre a história do Reciclo Geral,  relembrando a concepção e gravação do disco A Outra Cidade (ouvir) e avaliando o significado desses eventos em nossa própria trajetória e no cenário musical, refletindo ainda sobre o ofício de compor canções. Este é apenas um trecho de uma conversa longa, uma parcela da nossa versão de uma história que muita gente pode contar. [Outras conversas como essa...]
Um marco na vida de todos nós o disco A Outra Cidade! Mudamos todos, mudou a cidade e aqui estamos revendo esse caminho percorrido. As sementes plantadas floresceram porque foram regadas, todo mundo continuou fazendo as canções daquela outra cidade. 

Era isso "se a rota torta nos pés a perder / olhar o chão e o grão que ainda vai nascer":



Relembrando Outra Cidade - Pablo Castro & Luiz H Garcia by Luiz Henrique Garcia

7 de abril de 2012

Uma ponte entre a palavra e o som

Aproxima-se um evento que sem dúvida será uma mostra fidedigna da pujança da autoria de canções em Belo Horizonte nos últimos tempos. O Palavra Som celebra essa efervescência, seja ao remeter aos 10 anos do Projeto Reciclo Geral ou ao promover o diálogo entre a geração de artistas que se projetou a partir dali e as novas levas de desbravadores dessas "tortuosas trilhas". Curti muito o videozinho (ver) [e agora mais essa a-mostra]. Me emocionou particularmente a notícia do reencontro em palco de Kristoff Silva, Makely Ka e Pablo Castro, trio responsável pelo já antológico A outra cidade (ouça muito), do qual me honra muito ter participado como letrista em duas canções. De quebra ainda estão programadas oficinas na Funarte MG, para tratar justamente da união da palavra com o som.


Ten years ago today...

Falar disso é um dos meus assuntos preferidos, como pesquisador e como autor. Jogo nas duas, como se poderia dizer em linguagem futebolística. Há mais tempo até ficava querendo separar um pouco essas duas facetas, receoso de uma interferir com a outra. Hoje vejo que a interferência é inevitável e benéfica. E às vezes acontece de forma inesperada. Motivado pelo Palavra Som acabei decidindo contar como surgiu uma canção (de fato  a última que fizemos eu e Pablo) justamente no contexto de um debate sobre a criação das mesmas. Foi assim...

Nos idos de 22 de fev/2012, o Pablo postou e comentou via Facebook uma entrevista n'O Globo com novos expoentes da cena musical carioca. Em torno de temas como cânone, vanguarda, pop, contexto, transcendência, crítica, mercado, arte, técnica, opções estéticas, políticas, "o eixo", Minas, polêmicas muitas (assunto pra várias postagens futuras), pontuadas por provocações mais ou menos intensas, compositores das várias cenas debatendo. Até meti a colher rapidamente, mas curiosamente foi surgindo uma disposição diferente. Três elementos, dentro da intensa discussão, acenderam o pavio da inspiração. Começou com a expressão usada pelo Pablo para pensar a posição de Minas entre a "profundidade" e a "superfície" (e problematizando um certo binarismo repaginado entre Rio e São Paulo). Talvez sejamos uma ponte oculta, ele escreveu.  Deu na hora vontade de ter uma música com esse título. Depois o Flávio Henrique disse que achava que a música diz bem mais que as palavras. Sou de escrever muitas palavras sobre música, mas concordo com isso e aí já estava me sentindo desafiado a fazer justamente uma música. E depois, ainda por cima, Renato Villaça botou que a História iria bater o martelo. O historiador aqui achou a mesma coisa. A comichão converteu-se em dedos ágeis no teclado. Queria colocar as ideias a partir do debate, mas a coisa foi ficando meio enigmática...a letra foi se escrevendo, em torno da ideia de oculto e visível, e a ponte entre opostos, o debate contexto x atemporal e a imagem central é isso, o monolito (trascendência) assiste a estrela cadente (momento)  - acho que dá pra entender a "astronomia" da coisa. Ao mesmo tempo é uma imagem que eu puxei de 2001 com o lance do monolito, tinha pensado no filme como cruzamento de vanguarda e atemporalidade. E no fim a história continua... (aliás, parei por aqui porque senão é como contar o fim do filme para quem vai ler/ouvir). Bem, como fiz a letra e depois o Pablo pôs a música, aqui vai nessa ordem também (daqui uns dias arrumo com a música):

Ponte oculta

A ponte oculta
do canto que partiu
a parte alguma
da nuvem que pariu
do céu ao chão a chuva

que lava a superfície nua
da rua
que leva ao oceano solo
da lua

um monolito transcedente
assiste a estrela cadente
e a história continua

A ponte oculta
da linha que cerziu
a tela rôta
a outra que emergiu
pincel a mão a luva

que pinta o sol fenol na finda
esquina
que limpa a poeira fina da
ruína

um monolito transcendente
assiste a estrela cadente
e a história continua

5 de abril de 2012

Uma nota para Santuza Cambraia Naves

A nota triste de ontem foi o falecimento de Santuza Cambraia Naves, pesquisadora pioneira e importante referência nos estudos sobre música popular brasileira. Para não ficar o "Triste som do silêncio" (RHBN), pensei nessa pequena nota de homenagem, certo de que muitos acordes ainda se farão no diálogo entre as pesquisas que virão e a obra dela, trilha que atravessa  palavras/sonoridades-chave para entender a canção e o Brasil. Não farei balanço exaustivo, que outros certamente poderão fazer melhor, mas senti tocar essa "notinha", aqui do lugar de quem pode notar a contribuição intelectual e o alcance do trabalho de Santuza. Faço apenas esse registro pessoal, sem maiores pretenções, modesto tributo. Foi durante o mestrado o primeiro contato, lendo O violão azul : modernismo e música popular (fruto da Tese dela), que posso dizer que ainda é o que mais "soa" para mim. Na dissertação as marcas desse contato ficaram em notas e passagens como a que contrasta tropicalismo e canção de protesto utilizando o conceito "estética do excesso", que me induziu a pensar numa "estética da escassez". A nota credita:
A expressão “estética do excesso” é usada por NAVES para ressaltar a capacidade inclusiva da cultura brasileira, que ela destaca no modernismo de 22 e no movimento tropicalista. NAVES, Santuza Cambraia. op. cit., p. 219.
Vinha (e continuo) refletindo muito na encruzilhada entre ruptura e tradição, procedimentos de mistura, hibridação, e lá estava a Santuza discutindo o contraste entre engenheiro e bricoleur, contenção e excesso (vale ler esse artigo), que me fez, junto com outras coisas, pensar um bocado, me sentir provocado. Daí saiu, muito apoiado no Garcia Canclini, a ideia de que a crítica poderia ter instalado um "paradigma antropofágico" na cultura brasileira, descartando outras formas de hibridação (como eu propunha tratar o caso do Clube da Esquina). Ali foi só uma especulação (que me rendeu bons comentários da banca rsrsrs), mas que ilustra bem como é valioso e estimulante para um pesquisador iniciante debater ideias de um trabalho tão consistente. Acabou que por essa picada aberta só pude enveredar no doutorado, aprofundando mais o diálogo com a antropologia, mas confesso que não vejo nem de longe como assunto encerrado. Muita reflexão e pesquisa ainda a ser feita, por muita gente, e com certeza a contribuição de Santuza vai se fazer presente. Porque além de livros e artigos relevantes tratando de compositores como Caetano Veloso ou Noel Rosa, produziu trabalhos que são boas introduções e serão indispensáveis fontes de consulta, como Da bossa nova à Tropicália, e A MPB em discussão — entrevistas (organizadora junto com Frederico Coelho e Tatiana Bacal), livro que me permitiu notar algo de inusitado em relação a entrevistas de músicos populares, que era o modo como se repetiam as respostas quase que ipsis literis num lapso de 30, 40 anos (pois eu trabalhava com as entrevistas do Pasquim, por exemplo). Usei isso no capítulo que trabalhava com os relatos biográficos sobre a formação dos músicos populares, usando esses elementos recorrentes como eixos para a análise. Por isso essa notinha só, que soe: obrigado Santuza Cambraia Naves.