Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

19 de junho de 2022

Que tal o samba do Chico?

Chico Buarque, mesmo quando "automático", mostra-se um cancionista no controle absoluto de todos os macetes dessa arte. É tudo tão redondo, desce tão macio, que a gente se rende na primeira audição. Claro, não dá pra comparar com Apesar de você ou Vai passar, inclusive porque a gente sabe que a correia de transmissão que os festivais e a força da MPB nas décadas de 1960-70 produziram já se rompeu, e o povo não vai sequer ouvir os acordes desse de Holanda, temperados com o bandolim do outro, o Hamilton. Som do bom, claro, é sempre um alento.

A mola mestra desse novo rebento de melodia fluente e gingada é a pergunta, na forma da informal interpelação, "que tal?" Interrogar, ao invés de afirmar, ainda que de maneira retórica, é um jeito malemolente de começar o papo. Com esse convite a uma mudança de ares, expressa através de metáforas simples, acessíveis, porém sem didatismo exagerado, o compositor quer mobilizar seu ouvinte, tirá-lo da placidez. Porém não faz uma convocação panfletária mergulhada em óleo quente e convicção, e sim um apelo ao lúdico, à dança, à festa, ao desafogo, ao esconjuro. Também evita cair no vocabulário "resistente" que se limita a reagir às intempéries, uma vez que propõe, olhando para o futuro, uma utopia a ser buscada. Reeditando sintética e sincreticamente tantos sonhos de Brasil que já foram sonhados, com toda a cornucópia dos signos do país do samba, do futebol, da cultura, da mistura. Sonho do qual gerações mais jovens muitas vezes desconfiam pelos motivos errados, engolindo sem deglutição alguma um corolário identitário gestado na terra dos guetos. No entanto é preciso também pontuar as contradições que moram na eterna ode ao país do futuro, especialmente nas rimas que remetem à Beleza pura de Caetano - e mais uma vez a tabela entre os dois parece azeitada quando lembramos que o baiano acabou de fazer Sem samba não dá, um elogio ambíguo como ele gosta a esse gênero basilar de nosso cancioneiro. "Não com dinheiro mas a Cultura" pode ser lido de tantas maneiras num país de milhões de analfabetos funcionais e desempregados, famintos e falidos, que não podemos fugir à contradição que desperta desse que é um dos versos mais acertivos da canção. No rol das derrotas, que Chico tem o juízo de mencionar mas não se ocupa em precisar, esta é uma das maiores. No final, o legado do partido de esquerda no governo, para o povo, não foi conclusivamente nem um nem outro. Dinheiro não. Cultura também não. Ou sim, diria Caetano? É de nos perguntamos: sabe com quem ele está falando?

Enfim, voltando ao início, é na falta das correias de transmissão, da circularidade cultural, que reside o perigo de que esse sofisticado interrogatório sobre o desejo (ou não) do brasileiro de mudar seu presente (e para qual?) corre o risco de ficar perneta, não por culpa do Buarque, que fique claro. Ele é, no fundo, a voz mais bem entoada (se alguém leu isso e ainda não entendeu que ele canta pra caralho, tá na hora) desse impasse da MPB que projetou e construiu pontes enormes entre classes e vocabulários brasileiros, mas que depois assistiu essas pontes ruírem por falta de manutenção e muitas vezes se acomodou num posto avançado de observação, de onde o povo seguiu sendo fonte de matéria-prima mas não protagonista criador. O apego ao samba - que tal? - talvez seja o último baluarte desse esforço, porque como a própria canção demonstra, ele não é ponte, é uma cidade inteira, feita de diferentes localidades e ramificações, onde todo Brasil cabe. Ao propor um samba, ainda, Chico Buarque reitera que ainda é possível a utopia, a construção de um bom lugar em que esse filho brasileiro, de pele escura e formosura, possa crescer. Quem sabe?





QUE TAL UM SAMBA? (música e letra de Chico Buarque) Um samba Que tal um samba? Puxar um samba, que tal? Para espantar o tempo feio Para remediar o estrago Que tal um trago? Um desafogo, um devaneio Um samba pra alegrar o dia Pra zerar o jogo Coração pegando fogo E cabeça fria Um samba com categoria, com calma Cair no mar, lavar a alma Tomar um banho de sal grosso, que tal? Sair do fundo do poço Andar de boa Ver um batuque lá no cais do Valongo Dançar o jongo lá na Pedra do Sal Entrar na roda da Gamboa Fazer um gol de bicicleta Dar de goleada Deitar na cama da amada Despertar poeta Achar a rima que completa o estribilho Fazer um filho, que tal? Pra ver crescer, criar um filho Num bom lugar, numa cidade legal Um filho com a pele escura Com formosura Bem brasileiro, que tal? Não com dinheiro Mas a cultura Que tal uma beleza pura No fim da borrasca? Já depois de criar casca E perder a ternura Depois de muita bola fora da meta De novo com a coluna ereta, que tal? Juntar os cacos, ir à luta Manter o rumo e a cadência Esconjurar a ignorância, que tal? Desmantelar a força bruta Então que tal puxar um samba Puxar um samba legal Puxar um samba porreta Depois de tanta mutreta Depois de tanta cascata Depois de tanta derrota Depois de tanta demência E de uma dor filha da puta, que tal? Puxar um samba Que tal um samba? Um samba