Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

12 de dezembro de 2021

Cobertura - shows que a gente vê por aí: Milton Nascimento e Wagner Tiso acústico para TV Suíça (1980)

 Há um tempo pensei em criar uma série dedicada a comentar e difundir grandes shows que a gente encontra distribuídos por aí nas redes digitais, eventualmente merecedores inclusive de estratégias de preservação mais consistentes. 

Aproveitando o ensejo da data de aniversário do grande maestro Wagner Tiso, figura fundamental na constelação de criadores do Clube da Esquina, decidi começar por esse primoroso show que ele fez ao piano e órgão ao lado de seu inseparável companheiro de aventuras musicais, Milton Nascimento, vulgo Bituca, na voz e no violão. A gravação da TV Suíça traz performances impecáveis de ambos, um repertório espetacular e um entrosamento indiscutível de músicos que cravaram seus nomes em nossos ouvidos, mentes, corações e no panteão da MPB.Vale ver e rever várias vezes. 





12 de novembro de 2021

Gilmortal


 

Este sempre foi um dos meus discos preferidos do Gil, alegria extra tê-lo em vinil. Transpira humor moleque, ousado, desafiador, ressaltado ainda mais pela participação dos Mutantes, certamente no ponto culminante da aproximação deles com o tropicalismo, musicalmente falando.
Há uma saborosa ambivalência na nomeação dele para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Claro, esse jovem iconoclasta aí mudou muito, como tinha que mudar mesmo. Aliás fez da mudança um mote constante de sua arte. A vetusta ABL também muda, mas a passo de tartaruga. Agora os caminhos se cruzaram, como há décadas atrás não seria possível. Não deixa de ser um sinal significativo de disposição pelo encontro, e até uma pitada sutil de autoironia, sempre necessária às pessoas e instituições que desejam alguma forma de renovação. 
Sem deslumbre, vejo com bons olhos (e ouço com bons ouvidos) a "consagração" de um dos nossos principais cantautores como "imortal". Lógico, a ABL busca respaldo e repercussão, sentando em uma de suas cadeiras um representante indubitável da excelência alcançada na canção popular brasileira. Vamos combinar que demorou demais. Acho desnecessário discutir a pertinência da indicação, aliás acho que se a porta abriu tem uma fila bem grande aí de compositores cujo trato com a língua portuguesa à brasileira é inclusive muito mais meritório e relevante do que o dispensado por figuras que já estão lá sentadas. Falar que há politicagem? Redundante. Reconhecendo aliás, o traquejo político de Gil, podemos até esperar que ele lidere nos próximos anos uma disposição interna por abrir mais a instituição, quem sabe aproximá-la um pouco do "dia-a-dia" cultural de nosso país. Capacidade e atenção midiática para tal, ele tem. 
Por fim, ante certos comentários apressados e desmemoriados cabe lembrar que a Casa teve entre seus fundadores Machado de Assis. Logicamente sua composição, ao longo de décadas, reflete sobremaneira o componente de desigualdade social e o traço étnico decorrente da escravidão que por aqui vigorou por séculos, amém. Mas reflete igualmente, desde o início, os conflitos e contradições que disso decorrem. Teve, nos seus primórdios, por exemplo, figuras destacadas do abolicionismo, como Castro Alves, um dos patronos, e entre os fundadores José do Patrocínio, filho de vigário com uma negra mina escravizada. 
Como diz o grande Peter Burke, a função do historiador é "lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer". Ouçamos pois a voz que ressoa desde 1968, para saudar o que há de mais hilário e alegórico na conversão carnavalesca da farda da ABL vestida, em distintos contextos, por Gilberto Gil.  
 



24 de setembro de 2021

Aldir inédito: ventar contra a falta de ar

Acaba de sair o disco de inéditas do grande mestre Aldir Blanc, lamentavelmente tirado do palco da vida pelo pandemônio da Covid-19. A obra póstuma reúne parceiros e intérpretes consagrados  - João Bosco, Sueli Costa, Guinga, Leila Pinheiro, Moacyr Luz,Joyce Moreno, entre outros - e algumas colaborações recentes e até surpreendentes, como a do ator Alexandre Nero, que preparava um espetáculo teatral baseado em canções de Aldir, e com a mão de Antonio Saraiva, musicou um apanhado de ideias trocadas com o letrista. Do volumoso baú do compositor saíram canções inéditas que abarcam sua longa trajetória, dos anos 1970 à atualidade, reunindo desde material já acabado ao que se pode chamar de parcerias póstumas, retrabalhadas pelos diversos parceiros, arregimentados a partir da iniciativa de sua companheira Mary. Os arranjos são de Cristovão Bastos (também parceiro) e Jorge Helder. A arte da capa, feita pelo fenomenal Elifas Andreato, tem design simples que remete às antigas artes da gravadora Elenco nos anos 1960s, mas consegue sobretudo sintetizar o estilo cortante tão caracteristico dos versos de Aldir. Sua verve aguda e lirismo particular afiadíssimos estão mais que evidentes ao longo do disco, completados com a transbordante afinidade e amizade dele com a do leque de artistas que se somaram na proposta. Aldir inédito, para nos lembrar sempre que é preciso ventar contra a falta de ar.  

Todas as faixas, abaixo, e logo em seguida a playlist completa:

1. "Agora eu sou diretoria" (João Bosco e Aldir Blanc) – João Bosco
2. "Palácio de lágrimas" (Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Maria Bethânia
3. "Baião da muda" (Moyseis Marques, Nei Lopes e Aldir Blanc) – Moyseis Marques
4. "Voo cego" (Leandro Braga e Aldir Blanc) – Chico Buarque
5. "Navio negreiro" (Guinga e Aldir Blanc) – Leila Pinheiro e Guinga
6. "Provavelmente em Búzios" (Cristóvão Bastos e Aldir Blanc) – Dori Caymmi
7. "Acalento" (João Bosco, Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Ana de Hollanda
8. "Aqui, daqui" (Joyce Moreno e Aldir Blanc) – Joyce Moreno
9. "Mulher lunar" (Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Moacyr Luz
10. "Outro último desejo" (Clarisse Grova e Aldir Blanc) – Clarisse Grova
11. "Ator de pantomima" (Sueli Costa e Aldir Blanc) – Sueli Costa
12. "Virulência" (Alexandre Nero, Antônio Saraiva e Aldir Blanc) – Alexandre Nero













5 de agosto de 2021

Tinhorão (em memória): o Policarpo Quaresma que deu certo

Quem pesquisa música popular brasileira tem que passar, obrigatoriamente, por José Ramos Tinhorão... polêmicas à parte, ou não, era o maioral. Todos temos uma dívida com ele. Inegável seu impacto, no que erra e no que acerta. Sua contundência me agrada, mesmo quando discordo dele, porque não é mera performance, é embasada em sua pesquisa e visão de mundo [só a título de exemplo, sua crítica sobre o show Opinião]. Reconhecer isso não significa evitar dizer que é preciso reparo e revisão de coisas que ele fala. É necessário, inclusive para honrá-lo, fazer isso, desde que de modo consequente e sustentado.
Um pequeno caso curioso, eu num concurso desses da vida, acho que o que fiz pra uma vaga na UFU, acho que sortearam um ponto sobre historiografia, me deu na veneta fazer uma aula sobre historiografia da música popular brasileira, e tinha o Tinhorão entre os principais autores analisados. Eu certamente escolhi o tema para a banca errada kkkkk, mas saí da prova de didática convicto de ter dado uma baita aula rsrsrsrs. Depois dessa aprendi uma lição sobre escolhas de temas para aulas de concurso kkkkk.
Que bom que há muitos livros e outros registros do conhecimento reunido pelo Tinhorão. Dá pra sacar o estilo com essa palestra proferida por ele e registrada pelo MIS-RJ em junho de 1973.



Que saibamos fazer jus, mesmo que seja para contradizê-lo. Uma pena que o acervo dele foi parar no IMS - por mais que esteja bem cuidado lá - deveria estar num Museu da Imagem e do Som público - por mais que estejamos testemunhando os efeitos nefastos da negligência calculada sobre nosso patrimônio cultural no momento. O Brazil não merece o Brasil... façamos por onde merecer.




4 de julho de 2021

VALSA DO NÃO LUGAR

Mais uma para essa coleção de relatos sobre a feitura das letras de canção que tenho feito pela vida. Essa é relativamente recente, composta salvo engano em 2018. Meu parceiro Pablo Castro me deu essa bela valsa e apenas um verso sugerido, "haverá um não lugar". Se o pano de fundo emocional era o amor perdido, a sugestão temática remetia ao universo das utopias. Era literalmente uma encomenda. Aconteceu de por volta dos dias em que recebi a gravação fui assistir a um show (não tenho certeza absoluta mas acho que foi de Luisa Lacerda e Giovanni Iasi, que aliás foi fino) na simpática Idea Casa de Cultura, teatrinho intimista numa casa tombada em que funciona na entrada uma pequena livraria. Pois ali me peguei a folhear, um pouco antes do espetáculo, História das terras e lugares lendários, erudita compilação do grande Umberto Eco, com textos comentados combinados a mapas e ilustrações belíssimas desse campo particular da invenção humana. Passeando entre Atlândida, Lemúria, Shangri-lá e o País da Cocanha, encontrei o mapa da mina, por assim dizer. Para mim funciona muito assim e depois que encontro o rumo já sei mais ou menos os caminhos a trilhar. Rapidamente fui listando os lugares utópicos ou fantásticos e decidindo como encaixá-los na melodia, imaginando um "eu lírico" como um arqueólogo ou desbravador daquelas grandes obras do romance de aventura do XIX que marcaram minha formação de leitor, como o professor Lidenbrock de Verne, o Challenger de Arthur Conan Doyle ou Alan Quatermain de Haggard. Ótima oportunidade também de brincar um pouco com o "academês", trazendo um vocabulário pouco afeito ao repertório típico do que seria suposto para uma canção de amor, mas totalmente aplicável neste caso. Aproveitei pra revezar sons abertos e fechados, acentos agudos e circunflexos, dando uma enriquecida nas rimas. Joguei também um pouco com os suportes, as diferentes fontes de informação - alfarrábios, códices, iluminuras, manuscritos - que esse investigador poderia consultar em busca de resolver o mistério, de achar o lugar perfeito para viver com sua fugidia amada. Me lembrei da atmosfera de Futuros amantes, do Chico - só que ali é só debaixo d'água, e eu imaginei mais uma viagem pelo globo, até chegar à Amazônia, para dar uma tonalidade brasileira e colocar ali o uirapuru - esses nomes indígenas tremendamente musicais são irresistíveis - combinando com a melodia sinuosa e esvoaçante dessa terceira parte. E finalmente cheguei ao bordão final, preparado com uma pequena variação, em que aproveitei para ser, digamos, mais óbvio, usando explicitamente Utopia e Ilha - que não poderiam ficar de fora - deixando o eco da busca inconclusa como som síntese da esperança utópica de reencontrar o amor perdido. Considero essa uma das melhores letras que fiz nos últimos anos e ela veio num período em que eu estava precisando acertar a mão, por assim dizer. Se for pra fazer uma valsa romântica, de preferência que seja uma letra cheia de lugares incomuns.
 

Valsa do não lugar

(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)

Consultei os alfarrábios,
doutos manuscritos,
contos em chinês

Os recônditos tratados
de proscritos sábios
parcos rodapés

Shangri-lá seria aos pés do Himalaia
Xanadu perdida atrás de uma montanha
As minas do rei Salomão
cidade ao sol

Na Amazônia o uirapuru me guiaria
Rumo a terras que você não sonharia
longe
dessa ilusão
civilizada

Sigo em busca de utopias
Pra gente morar
Haverá um não lugar
Haverá um não lugar

Procurei nos pergaminhos
Nas iluminuras
cultos dos nagôs

As menções mais obscuras
Códices antigos
leis de faraós

A Lemúria desapareceu no tempo
Lilipute não passou de outro delírio
Atlântida submergiu
Mistério mór

Na Amazônia...

Sigo em busca de uma ilha
Pra gente se amar
Haverá um não lugar
Haverá um não lugar

14 de maio de 2021

Música popular e memória: em discos (1)

Revendo uma postagem feita pelo meu parceiro Maurício Ribeiro [quem quiser sacar algumas de nossas parcerias, aqui aqui aqui aqui], compositor, instrumentista, arranjador e produtor atualmente radicado na Espanha,  lembrei-me dessa antiga série que comecei e não foi muito longe, "Música popular e memória". A ideia era convidar leitores que se animassem a escrever suas recordações associadas à música popular. Ficou pelo caminho, depois de alguns episódios que depois recupero e boto link aqui [Pedro Munhoz; Rafael Senra; Míriam Hermeto].  Como às vezes ocorre, eu simplesmente encontro alguma coisa já escrita por alguém, em redes sociais, e dá aquele estalo. Lendo esse do Maurício me deu vontade de retomar a série, agora com esse conceito de partir de discos. Como as pessoas estão sempre respondendo enquetes sobre os seus álbuns preferidos - pelo menos quem tem uma certa idade e ainda aprecia a música a partir desse tipo de suporte - acho que não faltará material. Já deixo o convite para quem quiser entrar nessa roda, é só se manifestar pelos comentários ou fazer contato que será um prazer publicar mais relatos desse mesmo teor. Para aliviar o peso da postagem fiz links para os discos no YouTube, é só clicar no título. 

Gracias, parceiro! Fiquem aí com o relato e a seleção de audiomemorabilia do Maurício:

Meu amigo Luiz Pinheiro me convidou pra participar da brincadeira da capa dos discos, postando uma capa a cada dia. Não gosto de entrar nessas correntes, mas ele deu uma subvertida postando as 10 capas de uma vez, o que me inspirou a fazer o mesmo.

Além disso, vou mandar um pequeno texto sobre cada disco e o que ele representou pra mim. Portanto, quem só quiser saber quais são os discos, basta ver as imagens; quem quiser ler textão, segue; e quem acha que a brincadeira deveria ser durante 10 dias, volte aqui por dez dias lendo uma história por dia... hehehe
Daqui, seguimos cronologicamente em relação ao momento em que fui apresentado a estes álbuns.
Os Beatles foram a primeira banda que me lembro ter escutado, e escutado sistematicamente. O álbuns da primeira fase – e também a coletânea vermelha 1962-1966 que eu ouvia na casa do meu tio Elson e em fitas k7 gravadas dali pelo meu pai – foram praticamente decorados por mim ainda na primeira infância (ainda que meu inglês tivesse sido inventado por mim mesmo, o "inglês de sonoridade"). E foi ali, entre a primeira e a segunda infância, que eu, pela primeira vez, escolhi como presente de aniversário algo que não fosse um brinquedo. Talvez motivado pelo nome do LP, pedi para meu pai para comprar o Revolver. Até aquele momento eu vinha conhecendo os Beatles cronologicamente, e tive a felicidade de me envolver com cada LP a seu tempo, como os primeiros fãs dos Beatles fizeram em sua época. Fico imaginando, então, a sensação dos primeiros beatlemaníacos ao ouvir este disco. Para mim, foi mágico! Para os meus ouvidos, Revolver soava muito diferente dos álbuns anteriores, e realmente era. E foi o álbum que me empurrou para a segunda fase da banda, da qual só anos mais tarde fui ouvir inteiramente os LPs. Mas naquele momento, vim a conhecer e aprender as canções desta nova fase através dos k7s e da coletânea azul 1967-1970. De todo modo, Revolver representa pra mim toda a minha relação com os Beatles e com a música em geral, desde e até sempre.




Talvez minha memória me engane, mas vários anúncios publicitários de TV do final dos anos 70 e durante os anos 80 trazia como trilha sonora músicas do Jean Michel Jarre, entre eles o do Telecurso (1º ou 2º graus) e o do prêmio Operário Padrão. Além disso, meu pai em casa o Equinoxe. Entre a escuta de Beatles e uma grande variedade de música brasileira, também me encantava a sonoridade modernosa e sintetizada dessa música eletrônica. No entanto, eu me comportava de maneira diferente: quando eu parava para escutar este álbum, eu ouvia e reouvia uma música para descobrir e entender cada camada e textura ali presentes; tinha a clara e perceptível melodia, mas havia uma seção rítmica elaborada, os arpegiators, diferentes timbres de sintetizador... Eu, ainda sem saber o que eram estas estruturas ou nuances, já percebia a diversidade de componentes musicais ali engendrados, tão distintos uns dos outros mas funcionando perfeitamente juntos. Certamente, vem da música eletrônica daquela época a minha escuta ao detalhe, e certamente vem deste álbum o meu gosto duradouro pela música sintetizada dos anos 80. Acho que foi onde eu descobri que a música se apresenta em camadas, e cada uma delas – e todas juntas – tem um gostinho especial.

Obviamente, a música brasileira sempre foi majoritária dentro de casa. E meu pai foi um grande apreciador de LPs, e buscava estar sempre atualizado com os lançamentos de diversos estilos. Ouvíamos Noel Rosa, Cartola, Paulinho da Viola, João Nogueira, Elis, muito Chico-Caetano-Milton (nem tanto Gil, estranhamente), Simone, Taiguara, Gonzaguinha, Jovem Guarda... bem, a lista de nomes não caberia nem em centenas de posts. Nesta difícil tarefa de listar 10 álbuns, eu posso marcar como certa a escolha do LP Vida, do Chico Buarque. Você imagina uma criança de 10 anos de idade deitando no sofá e botando este disco pra escutar repetidamente, lendo o encarte, aprendendo a cantar todas aquelas canções? O disco tem algumas obras primas, mas dada a minha idade então, eu só vim a compreender a profundidade das letras muito tempo depois. Entretanto, uma delas em especial me tocava desde aquele momento, e me emociona até hoje: Bye bye Brasil. Eu percebia a música como melancólica, ao mesmo tempo épica; a aventura de uma partida forçada e dolorosa, ainda que necessária. Quem diria, né? De todo modo, até hoje eu considero este um dos melhores LPs de Chico. E, não por acaso, nos shows-tributo a ele que faço aqui na Espanha, canções como Vida e De todas as maneiras estão sempre presentes.


É difícil explicar a importância dessa banda na minha vida. Conheci e escutei demais todos os LPs deles – ao menos enquanto ainda estava ali o Flávio Venturini. Eu diria que, em termos de freqüência e importância na minha formação musical, eles chegam a se aproximar dos Beatles. Ali, como em J. M. Jarre, de novo os sintetizadores e timbres me faziam mergulhar fundo nas camadas da música – e somavam-se a eles os arranjos vocais e as letras; uma canção recheada de muita mineiridade. A cada escuta eu tentava cantar uma voz diferente, e isso exercitou ainda mais minha percepção aural. E cada LP continha uma música instrumental, o que eu achava o máximo pois parecia música de comercial – não sei porque, eu gostava da música ilustrando uma imagem, e os comerciais me tocavam mais pela música que pelo conteúdo. Talvez aí uma conexão com Jean Michel Jarre e Kraftwerk... O segundo LP da banda, 14 Bis II, foi o primeiro a entrar em casa, e certamente motivou a compra dos outros. E Planeta Sonho foi um hino pra mim, justo no momento em que eu começava a aprender violão.



Novamente um LP de 1980. Ano importante, hein? Conheci Supertramp por ele, talvez influenciado pelo meu primo Sandro que o tinha em casa. Mais tarde, fui conhecer os álbuns de estúdio da banda, da qual ainda sigo ainda um grande fã. Este álbum traz, provavelmente, suas melhores músicas – ainda que uma ou outra música genial tenha ficado de fora. De novo, há uma música-chave que remete aos comercias de TV: o refrão instrumental de Fool's Overture. Não me lembro de qual comercial, pode até ser insignificante; mas quando a escutei pela primeira vez, relacionei com uma propaganda da época, o que aumentou minha curiosidade sobre a banda. De todo modo, o Supertramp representou a minha introdução ao rock progressivo – ainda que depois eu tenha entendido que estava redondamente enganado a respeito da atribuição deste rótulo a eles. Mas Fool's Overture tinha, sim, uma estrutura formal que remete a algo de rock progressivo; e além dela, quase todas as outras canções do disco têm sua importância gravada na história da música pop. Junto com Jean Michel Jarré, foi o disco que, anos depois, me motivou a aprender teclados. E tanto Roger Hodgson quanto 14 Bis me fizeram – e ainda fazem – insistir em cantar em um registro vocal que não me cabe.

Eu conheci o Rush por engano. Um amigo – agora não me lembro quem – havia dito que tinha a música da série Profissão: perigo. Eu imaginava que fosse o tema que era tocado quando terminava o episódio, uma música bem alegrinha – de novo, eu e a música pra TV. Ele me gravou um k7 com Tom Sawyer, que era usada para anunciar o episódio na TV. Na telinha, vinham apenas os 4 acordes iniciais que compõem o riff a estrofe da música. Não era o que eu esperava, mas "baum também". Entretanto, quando a escutei inteira no k7, eu não gostei: – "que voz estranhíssima", pensei comigo mesmo –, e deixei a banda pra lá. Poucos anos depois, em 1990 (meu último ano de Escola Técnica), eu estava em um papo com meu amigo Cabral onde veio à tona o Rush, e eu disse que não gostava. Daí, ele me emprestou o Exit... Stage Left. Ali eu pude escutar um conjunto mais completo de canções, e de repente Tom Sawyer e a voz do Geddy Lee faziam todo sentido. O Rush se tornou a principal trilha sonora de praticamente uma década da minha vida, junto a um grupo maravilhoso de amigos que nos denominamos Os Inflamáveis. Ainda escuto, com menos frequência do que antes (assim como os demais álbuns dessa lista). Mas este LP representa um enorme salto na minha trajetória, tanto pessoal quanto musical. Ele fez a ponte para o rock, que até então eu nunca havia ouvido pra valer! Só depois de conhecer os demais trabalhos da banda é que eu fui levado a escutar os clássicos do rock – Led Zeppelin e Deep Purple, e mesmo Iron Maiden –; e o Rush foi, dessa vez corretamente, a porta de entrada para o rock progressivo, vertente estética do rock que ainda me mostra caminhos, não importando em que estilo musical eu me situe.
A partir daqui, a lista fica mais condensada no tempo. Estamos em 1990, e do Rush eu fui muito rapidamente para o rock progressivo. Talvez o primeiro LP que eu tenha comprado pra mergulhar neste universo tenha sido o Time and a word, segundo álbum do Yes. Eu me arriscava em LPs que não conhecia, recomendados pelo meu vizinho e músico Rubinho, que tinha uma banca de LPs usados numa feirinha em Vitória (ES), onde eu morava. Ali foi onde comprei às cegas e conheci Yes, Genesis, Focus, ELP, Premiata Forneria Marconi, Eloi, Van de Graaf Generator, Gentle Giant, entre outros tantos. Música cabeçuda, enfim!! Mas foi realmente um assombro quando descobri o Thick as a brick, um álbum inteiro com apenas uma música de 45 minutos. Pra mim, era o progressivo do progressivo! Ainda que eu reconheça em Yes uma sonoridade mais representativa do estilo, em Genesis uma construção musical e temática mais "palpável" (no bom sentido), e em Gentle Giant uma complexidade composicional mais profundamente admirável, acho que o Jethro Tull consegue protagonizar o símbolo de toda essa minha duradoura fase. O disco é visceral, lírico, profundo, complexo e bem amarrado!

Este álbum – um dos meus primeiros CDs, já que em 1993 eu ainda comprava LPs – foi uma grande guinada na minha vida. Ganhei de presente da Yara, com quem eu namorava na época. Não conhecia Pat Metheny até então, e acho que foi premonitório ela ter me presenteado com ele. Quando eu o escutei pela primeira vez, foi um baque!! O álbum inteiro me prendeu no início ao fim, por anos. Ali pela mesma época eu conheci o Brutus, um flautista que se tornou um grande amigo e parceiro. Grande conhecedor e admirador da obra do Pat, Brutus me apresentou o restante da sua obra, que veio a se tornar uma das minhas maiores referências musicais. Só depois dele eu fui mergulhar em Toninho Horta, e de quebra o Brutus me apresentou também o guitarrista Kevin Eubanks. Meu segundo CD, Trio (2013), é uma influência direta destes três guitarristas, que seguem sendo ainda um norte nas minhas escolhas musicais. Foi também meu primeiro contato íntimo e interessado com o jazz, território de constante pesquisa e descobrimento.

Nos anos 90, minha vida estava intensa, e eu ouvi muita coisa diferente. Como sempre, tudo misturado, ainda que essa mistura pudesse ter lá suas conexões internas. Com a viagem no rock progressivo e o descobrimento de Pat Metheny, eu não tive tanto interesse pela música brasileira feita naquele momento, e em se tratando de Brasil eu passeava entre os clássicos dos 60 aos 80, agregados ao BRock – o rock brasileiro surgido no últimos anos da ditadura (Legião, Paralamas, e todo mundo). Mas foi justamente entre o rock progressivo e Pat Metheny, com as pinceladas sempre recorrentes de Beatles, que eu fui ouvir com mais atenção ao Clube da Esquina, e por fim mergulhei – com imperdoável atraso – em Milton Nascimento. Eu já conhecia muito da sua obra de maneira picotada, através de outros intérpretes, de ouvir em rádio, ou de ouvir um disco ou outro. Eu já repetira centenas de vezes no meu toca-discos a coletânea "Nada será como antes – Elis interpreta Milton", que congrega as duas maiores estrelas da música brasileira. Eu também já tocava muita coisa de Milton que figurava entre as mais conhecidas. Mas a mistureba que eu escutava nesse momento, creio eu, me fez voltar pra conhecer o Bituca de uma maneira mais sistemática. Ali eu via jazz, via rock progressivo, via Beatles, conseguia distinguir a guitarra do Toninho... era tudo junto, e tudo mineiro demais! O CD gravado com orquestra fez a coisa ficar ainda maior. Eu comecei a perceber que a grandeza dos sintetizadores que eu tanto gostava em Equinoxe ou no Yes buscavam replicar instrumentos de verdade, que no álbum do Milton estavam todos presentes, tocando pra valer. Ali eu comecei a querer virar arranjador. E, de quebra, foi onde eu elegi Outubro como meu hino, uma das canções mais bonitas já escritas.

Minha lista termina ainda nos meados dos anos 90, no mesmo embalo que me apresentou Pat Metheny e me fez redescobrir Milton Nascimento. Se na vida musical profissional eu me alternava tocando com o Grupo Corsário (influências de 14 Bis e Boca Livre, entre outros) e trabalhos esporádicos com uma dupla sertaneja e em bandas de axé (o pagode só veio no fim da década), o meu caminho de aprendizado e escolha pessoal já havia sido impactado profundamente pela obra do Pat. O gosto por música instrumental me levou à música erudita e orquestral, ainda que naquele momento elas viessem em doses homeopáticas. Mas daí eu comecei a tocar na Orquestra de Violões do Espírito Santo, criada pelo violonista Fabiano Mayer. Era um trabalho muito bonito, e que me trouxe também experiências musicais e pessoais profundamente transformadoras. Com ouvidos carregados de violão, eu conheci – talvez também por intermédio do amigo Brutus – o grupo D'Alma, trio formado pelos violonistas André Geraissati, Ulisses Rocha e Mozart Mello. A gravação do disco me foi dada em k7, pois não encontrava o LP pra comprar. A música era muito foda, tocava em mim pela natural proximidade com o violão; era um lance meio jazz brasileiro, tinha a elaboração do rock progressivo... enfim, um trabalho que eu ouvi exaustivamente, e que anos depois influenciou minha primeira produção autoral, o CD Ventania no cerrado (2011). Ainda que eu nunca tenha chegado ao nível de execução destes três grandes, eu gravei uma neste CD uma música para 3 violões, Para cada esquina um sinal, uma referência direta à influência do D'Alma. Além disso, nos shows de divulgação do meu CD nós tocávamos um arranjo feito pra Roda Gigante, uma das composições de Ulisses Rocha neste LP. E, por fim, dali eu vim a me interessar pelo violão brasileiro: Dilermando Reis, Garoto, Rafael Rabello e Baden Powell foram nomes que passaram a nortear algumas das minhas escutas.

--\\//--

Pois bem, 10 discos, e ainda estou lá pelos meus quase 30 anos de idade. É provável que, de lá pra cá, eu tenha descoberto coisas que me modificaram em parte ou completamente. Mas talvez o tempo e a maturação sejam necessárias para que a gente se dê conta de como nos transformamos. Igualmente, é bem provável que eu tenha deixado passar alguns discos importantes, ou que eu tenha escolhido um ou outro álbum equivocadamente para ser o representante de um conjunto de coisas... de Beatles, poderia ser qualquer um; no progressivo, igualmente, dada a infinidade de material. Enfim, fica aí a lista pra posteridade! heheheh
Vou postar uns links ilustrativos – e curiosidades! – nos comentários para entreter os mais interessados. O convite que se supõe fazer pra manter a corrente fica estendido a todos que quiserem falar de música e de suas influências.
Saludos!!!

Por Maurício Ribeiro

5 de maio de 2021

Bolacha completa - John Lennon/Plastic Ono Band edição de luxo

Acabou de sair uma caixa com a edição de luxo do primeiro disco de John Lennon em carreira solo - claro, com sua parceira de vida e música Yoko Ono, co-produzindo, e tocando, como está no título, com a Plastic Ono Band - o que representa, neste caso, uma banda que incluiu Ringo Starr, Klaus Voormann no baixo, Billy Preston nas teclas, uns pianos complementares do legendário produtor Phil Spector. Instado por mim e por outros internautas, meu caríssimo amigo Vlad Magalhães, músico profundo entendedor da obra de Lennon e dos Beatles, presença consagrada nas melhores formações de bandas ou em apresentações solo de tributo à obra dos quatro cavaleiros do Após-calipso, registrou sua apreciação do impressionante montante de mais de 7 horas de áudio. Ele gentilmente cedeu o texto, que disponibilizo aqui no Blog disparando foguetes. Ao Vlad meus cumprimentos e agradecimentos por esse minucioso relato, porque eis aí o mapa da mina. Além de tudo ele reuniu um extrato dos "melhores momentos" numa playlist aberta do Spotfy, que seguirá no corpo da postagem. Quando eu puder, pretendo traçar algumas linhas sobre o disco original, mas isso pode esperar.

Por agora, deleitem-se. 

"Atendendo a pedidos" aí vão minhas impressões sobre PLASTIC ONO BAND (THE ULTIMATE COLLECTION)
 Por Vladimir Magalhães 
DISC 1
é o disco oficial + 3 singles lançados na época, remasterizados. Sem grandes surpresas, diferente das novas mixagens dos Beatles que alteraram bastante vários elementos (nem sempre pra melhor). Esse foi bem mais fiel à mixagem original, claro, com mais definição na voz e nos instrumentos, como se tivessem dado uma lustrada em tudo, trazendo os graves para o século XXI.
Destaques: MOTHER - sem ruído do vinil usado na gravação do sino
Vocais de ISOLATION, REMEMBER e GOD bem mais na cara do que na mixagem original. Arrepiantes.
DISC 2
Última versão das músicas antes das versões oficiais, em suas formas definidas, com alguns pequenos detalhes que foram minimalisticamente lapidados no final
Destaques:
WORKING CLASS HERO - take 1
REMEMBER - parece ter sido a que Ringo e Klaus tiveram mais dificuldade de encontrar a melhor levada, que afinal conseguiram. Também sua introdução e final parecem ter sido conseguidos aos 48 do segundo tempo.
LOVE - levada de violão nitidamente inspirada em Yesterday
DISC 3
Destaques:
MOTHER - arrepiante vocal isolado
COLD TURKEY - sem o vocal, guitarra solo com mais feedback, num dos solos mais subestimados do rock'n'roll
Destaque negativo
REMEMBER: um efeito muito irritante (talvez uma jaw-harp). parecendo uma mola ou uma bola de desenho animado, felizmente não saiu na versão final
DISC 4
mixagens cruas das versões finais, exceto I FOUND OUT que tem uma parte a mais, cortada depois
Destaques:
GOD: a voz rouca sem o "slap echo"
GIVE PEACE A CHANCE: versão estendida
DISC 5
O mais interessante, com ensaios e conversas
Destaques:
Trechos de LOVE e LOOK AT ME com baixo e bateria
Hilária introdução de GOD
Tocante comentário de John a respeito de MY MUMMY'S DEAD
John dando instruções para a galera em GIVE PEACE A CHANCE fazendo dueto e respondendo a si mesmo no overdub
INSTANT KARMA - o ensaio mais arrepiante, com a participação de George Harrison na guitarra, que acabou sendo excluída na versão oficial.
DISC 6
demos caseiras e de estúdio
Destaques:
LOVE - harmonia diferente na parte B, demo caseira, com tremolo
WELL WELL WELL - demo caseira acústica, sem a gritaria
INSTANT KARMA - com a guitarra de Harrison e Alan White definindo as rodadas de bateria
DISC 7
jams, covers, demos, a maioria feita de forma bem avacalhada
AIN'T THAT A SHAME - no final John brinca falando "Cookie!", imitando um "monstro" do seriado infantil Vila Sésamo (na versão oficial do disco ele fala isso no solo de Hold On, mas só agora fui descobrir esse detalhe que eu nunca entendia rsrs parece que ele assistia bastante pois fala isso em outras demos desse disco)
LOST JOHN canção de Lonnie Donegan, que popularizou o skiffle na Inglaterra em meados da década de 50, levando milhares de garotos a comprarem violões, entre eles os jovens Beatles. John fica repetindo a primeira estrofe e o refrão, parece que esquentando a voz para gravar.
I DON'T WANT TO BE A SOLDIER MAMA, I DON'T WANNA DIE música sairia no disco seguinte, Imagine
DISC 8
mixagens cruas de out-takes
Destaque:
MOTHER - com violão em vez de piano, parece ter sido a mais gravada para o disco, esse é o take 91!
Criei uma playlist no Spotify chamada "POBTUC Destaques" (do disco 2 ao 8 ) caso alguém queira conferir, uma boa introdução de 1:30h para quem não quiser encarar as 7:30h de material rsrs 
 
 
 
Quem não for assim tão beatlemaniaco vá direto ao disco 1 e procure saber o que está sendo cantado nesse disco histórico, filosófico e minimalista.
Último comentário: podiam ter dividido o disco 7 em 2, aí seriam 9 discos ao todo - Lennon aprovaria com entusiasmo rsrs
I just gotta tell you goodbye!


2 de janeiro de 2021

SUPERNOVA SG532

Tremenda satisfação começar o ano com um lançamento na praça. Ou melhor, com uma canção no ar. E uma inédita de um parceiro com quem já estou compondo há uns anos, mas ainda estávamos mais naquele modo do consumo interno, naquela coisa mais nossa mesmo. Tenho muitas canções nesse estágio, com vários parceiros, e não me aflijo. Umas virão à tona no momento certo, outras serão essas pequenas preciosidades que guardamos só pra nós, ou eventualmente para pessoas muito próximas. Isso para mim é absolutamente necessário, a parceria demanda esse espaço exclusivo para que a criação possa acontecer.  Há o entrosamento que os parceiros vão desenvolvendo, descobrindo afinidades e preferências, aprendendo como dar incentivo, trocar ideias e negociar seus entendimentos particulares, como falar sim, não ou talvez um para o outro,  crescendo nessa aproximação simbiótica. Compor pode ser penoso ou prazeroso, fatalmente ambos, e é preciso confiança mútua, reconhecimento das qualidades e defeitos de cada um, mas sobretudo muita vontade de ver uma canção pronta ao final. O Rafael Senra é um multiartista, que transita da música aos quadrinhos, se arrisca em canais de You Tube, que também atua na área acadêmica como professor e pesquisador. Aliás ano passado (que maravilha referir-me a 2020 assim) escrevemos juntos um capítulo para um livro sobre distopias, bem a propósito dos dias que vamos vivendo. É sempre um prazer trabalhar com ele, pela criatividade e energia contagiante. Compartilhamos referências musicais importantes, como Clube da Esquina, Beatles e rock progressivo.
 
Aí chegamos propriamente ao assunto da postagem. Recebi dele a gravação com a melodia e um instrumental básico, exibindo já esse clima etéreo, essa inevitável sugestão do mote espacial, provisoriamente intitulada - por razões por demais óbvias - de "Tema Supertramp". De imediato, como ando fazendo, busquei algo previamente escrito que pudesse servir como estágio inicial do foguete. Encontrei um rascunho com o nome "Estratosférica". Tem sempre um misto de aventura e perigo ao brincarmos com as palavras maiores e ainda por cima proparoxítonas, pra fazer letras, ainda mais com uma proposta assim, em que a canção é o centro de gravidade mas existem longos braços instrumentais estendidos como uma galáxia sonora. Fiz um primeiro rascunho, sugerindo uma estrofe a mais, mas ela entrou em rota de colisão com um cinturão de asteroides além de Marte. Ficaram só seis versos para dar o recado! E teria que ser uma coisa muito icônica, e claro que é inevitável pensar no recorrente apelo ao "meteoro", que alude à extinção dos dinossauros e à nossa possível. Porém o que a música sugeria era algo mais suave, mesmo que a escala fosse grandiosa. Fui burilando com um pouco mais de tempo, e no início de 2020, depois de ler Pedra no céu, primeiro romance do escritor Isaac Asimov, um dos mestres da ficção científica, troquei "calota polar" pelo título do livro na primeira estrofe. Funcionou bem melhor, ainda que a pedra a que Asimov se refira seja o planeta Terra mesmo, e não um meteoro. Há poucos dias, enquanto lia O pêndulo de Foucault de Umberto Eco, li um trecho em que a narrativa fala do Parsifal (o cavaleiro arturiano Percival) e dá a entender que "esse graal guardado pelos templários é definido como uma pedra caída do céu: lapis exillis. Não se sabe se significa pedra do céu (ex coelis) ou que vem do exílio (...) alguém sugeriu que poderia ser um meteorito". A criação também pode ser favorecida por esses acasos... se é que essas coisas são apenas coincidências...
Como a primeira estrofe remetia muito ao campo visual, pensei na segunda como sendo referente ao som. Havia então essa rima curiosa com "América", uma palavra de tantas conotações... os ouvintes sempre podem pensar em várias... mas para mim ecoaram duas citações inesperadamente coincidentes, a famosa transmissão radiofônica (um termo que num dado momento cogitei mas acabou saindo da estrofe) de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, realiza por Orson Welles em 1983 que deixou muita gente em pânico nos Estados Unidos, e a letra de Fernando Brant para Canção da América, originalmente lançada em inglês como Unencounter no disco Jorney to dawn de Milton Nascimento gravado nos EUA. Provocativamente eu coloquei "toda América", para referir ao continente todo, e claro, quis fazer uma homenagem ao Bituca ali, o dono da impávida voz, a majestade do som. A ideia era criar junto uma imagem de beleza e impacto. 
Resta falar do título. Creio que o Rafael sugeriu esse Supernova, derivando de Supertramp e acentuando o aspecto astronômico da canção. Alguns provavelmente pensarão numa certa canção da banda Oasis, e também para nos certificarmos que não haveria confusão foi surgindo essa ideia de uma coisa pseudo tecnológica, com siglas e números que são ideias muito exploradas na literatura e no cinema de ficção científica - evoco de cara THX 1138, de George Lucas, e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, que Truffaut levou ao cinema. Virou curtição, Rafael adotou o SG dos nossos sobrenomes (por coincidência remete a uma guitarra Gibson) e propôs 532 a partir de uma superstição pessoal "cabalística", ainda que eu me recorde vagamente de termos brincado de fundir números de nossos endereços residenciais, mas a memória prega suas peças. Acho válido pra deixar a coisa assim, bem idiossincrática. É o tal negócio, cada parceria permite que a gente explore um lado da nossa personalidade. Em geral sou muito zeloso do aspecto da brasilidade no que faço, mas aqui me permiti ser particularmente universal.


P.S. 05/01 - texto de meu parceiro Rafael Senra.

Após ler o excelente depoimento do meu querido parceiro Luiz Henrique (escrito por ele ainda no calor do lançamento, com impressionante riqueza de detalhes do processo), pensei em também escrever algo, mas puxando mais para o lado da criação da melodia.

Essa canção foi feita em um período de férias: eu já morava em Macapá, tinha tido meu primeiro semestre como professor da Universidade Federal do Amapá, e estava descansando na casa dos meus pais, em Congonhas (MG). Levei meu notebook e minha placa de áudio para lá, e, em determinado dia, deu vontade de tentar gravar um tema mais progressivo, longo, com diferentes passagens instrumentais.

A base da canção foi composta enquanto eu gravava, e não antes. Eu elaborava uma melodia ou um riff, e as primeiras execuções desse arranjo já eram feitas enquanto eu dava o “rec”. Fui compondo mais focado no teclado, deixando alguns espaços na canção para que depois fossem inseridas guitarras.

Essa base foi criada e gravada muito rápido. Não sei precisar o tempo, mas lembro que a fiz bem mais rápido do que a maioria das canções que já compus. É engraçado, porque se trata de uma faixa longa, com várias passagens instrumentais, e dá a impressão de ter sido algo elaborado e muito burilado; mas, não, em termos de composição, foi muito rápido. Foi um anti-Dorival Caymmi, conhecido por demorar anos e anos para compor frases e melodias aparentemente simples. Mas é que o simples dá trabalho. Lembro-me também do guitarrista do Dream Theater dizer, em uma entrevista, que o que eles fazem não é difícil: que difícil mesmo é fazer uma canção como o U2, que soe relevante com poucos acordes e 4 minutos...

Pois bem. A criação estava fluindo muito, até que, no dia 25 de janeiro de 2019, li a notícia do estouro de uma barragem em Brumadinho. Como Congonhas fica bem perto dali, entrei em pânico. Eu li a notícia em um site pequeno, sem muitos detalhes, escrita cerca de dez minutos após o ocorrido. Fui o primeiro a divulga-la para vários amigos, sem saber da proporção que aquilo realmente alcançaria. Lembro bem de mim, com o teclado musical diante de mim, ainda elaborando alguns dos arranjos, e de repente me vendo distraído com a inesperada notícia, procurando desesperado por mais notícias sobre o ocorrido.

Isso foi em uma sexta feira. No fim do dia, soube que uma grande amiga estava nessa empresa da Vale, e consequentemente o fim de semana foi de puro pânico. Eu e diversos amigos do nosso círculo estávamos devastados. Minha tábua de salvação foi dar tudo de mim na elaboração desse tema musical. Me dedicar à gravação dessa canção foi importante naquele momento, foi uma maneira de não me afundar nos sentimentos cruéis e pesados que só cresciam naquele momento.

Após ter gravado as guitarras, tentei escrever uma letra, tentando expressar a dor sentida pela tragédia de Brumadinho. Não fazia muito tempo que eu tinha ido ao Inhotim pela primeira vez, e me pareceu horrível ver uma região tão bonita ser devastada dessa maneira. Mas a maior dor era pela perda dessa amiga que lá estava, que eu conhecia há anos e era esposa de um verdadeiro irmão de vida. Meu sentimento era real, era duro de lidar, e não consegui traduzi-lo em palavras.

Enviei a melodia para meu parceiro Luiz Henrique Garcia, e comentei muito brevemente sobre a intenção de orientar a letra nessa direção de ser uma espécie de “ritual de cura” do ocorrido. Mas a sugestão não era nada estimulante, ou pelo menos notei que Luiz também não encontrou nesse mote nenhum tipo de inspiração*. Letras de música são algo difícil: muitas vezes, você tem uma ideia interessante, mas a música não aceita a sua ideia. Me parece que toda letra de música que busque a relevância precisa nascer de um “acordo” com a melodia. É preciso que a canção aceite as palavras. De certa maneira, creio que um letrista é em parte criador e em parte tradutor. Ele precisa, em algum nível, traduzir o que a própria melodia já está dizendo (ou gostaria de dizer).

Luiz então se arriscou em uma direção diferente da que eu tinha previamente sugerido. Ao longo dos meses, lentamente, algumas mudanças foram sendo feitas. As vezes, eu perguntava a ele se uma palavra poderia ou não ser substituída, e ele ia pensando em possibilidades diferentes, e aí batíamos o martelo juntos. Trabalhar com o Luiz tem muito desse tipo de diálogo, em alguns momentos. Eu tento não interferir no que ele escreve, mas aprecio a delicadeza com a qual ele submete a letra a meu escrutínio, e se abre para uma eventual necessidade de reescrever ou não alguma coisa.

Continuei mexendo na gravação dessa música ao longo de vários meses. Tentei tocar a melodia geral com som de piano, em vez do som de wurlitzer original. Eu tinha usado originalmente um timbre bem a la “Supertramp”, daí o nome da guia, como Luiz mencionou. Mas não ficou legal com som de piano, daí retomei o timbre original.  

Quando decidi gravar um disco em Macapá, no Estúdio Zarolho, mostrei para o produtor Alan Flexa a versão caseira que fiz. Ele achou que soava bastante como 14 Bis, o que me deixou bastante feliz. Quando mostrei para Alan, já estávamos no processo de gravação de outras músicas, e eu diariamente ia em seu estúdio para gravarmos tudo lá: guitarra, baixo, bateria, vocais (apenas os teclados que gravei em casa eram mantidos).

Mas, no caso dessa, Alan sugeriu que eu mantivesse a guitarra gravada em casa. Ele achou que, mesmo sendo uma guitarra feita para uma guia, ela soava ótima, e o solo de guitarra não precisaria ser regravado. Ele achava que eu tinha conseguido algo que soava tipo 14 Bis mesmo, como no solo de músicas tipo “Espelho das Águas”. No início do texto, disse que a base da canção foi feita rapidamente, mas esse solo de guitarra deu trabalho para compor. Eu queria que fosse algo memorável, e me dediquei muito para cria-lo. A gravação dele foi mesmo feita em casa, e há algo na performance que fiz que me parece bem apaixonada. Fazia sentido mantê-la.

A bateria da original era uma base em MIDI bem quadradona. Chamamos Forlan Gomes para gravar uma bateria de verdade. Como de costume, ele ouviu a versão demo poucas vezes antes de gravar. A única coisa que deu trabalho foi, já no fim do solo, em um momento que eu pedi a ele para bater no prato de ataque junto com uma nota específica do solo que achei importante ressaltar também na bateria. Isso demandou vários takes para dar certo. Mas, no geral, Forlan gravou algo com a suavidade e a fluidez que eu queria, o resultado ficou fantástico. Depois só precisei voltar ao estúdio para gravar os baixos e as vozes.



Nota do editor:
* De fato acho tremendamente difícil para o letrista capturar o sentimento do parceiro quando envolve uma coisa de teor muito pessoal do qual aquele não tomou parte. Já consegui em raras ocasiões, mas por mais entrosamento, conversa e empatia, há distâncias que podem ser intransponíveis. Quando é assim eu prefiro me afastar dessa linha e propor outra leitura. É claro que o parceiro precisa se identificar com ela, também.  





Supernova SG532 (Música de Rafael Senra e letra de Luiz Henrique Garcia)

Estratosférica luz 

Estandarte do sol

Uma pedra no céu explodiu

 

Por toda América ouvi

Majestade do som

A impávida voz que espalhou