Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

13 de fevereiro de 2019

AO VENCEDOR, AS LARANJAS


Comemorei ontem a formatura  em Economia do meu filho mais velho, e também o nascimento de mais esse rebento, minha nova marchinha em parceria com Pablo Castro, já devidamente inscrita para o nosso adorado concurso "Mestre Jonas". É obviamente "inspirada" por tudo isso daí, mas seu paraninfo, por dizer assim, é Machado de Assis, e o professor homenageado é Chico Buarque. Eu fiz a letra no início de janeiro, em meio à primeira enxurrada de absurdices do atual governo e a antevisão do que seria a sucessão de experiências cotidianos do que chamo de empirismo trágico - que talvez eu pudesse batizar com um nome mais pegajoso e chamativo, como "síndrome de São Tomé". Não sou mais que um "marchista" ocasional, mas considero a tarefa divertida e desopilante, de modos que nesse período do ano, nem sempre a tempo e contento da inscrição para o concurso, me ponho a rabiscar alguma coisa. 
Ocorre que eu estava lendo Quincas Borba, de Machado, e ao pensar na consagrada frase usada por seu personagem título, "ao vencedor, as batatas", espécie de máxima que compõe sua sátira do darwinismo social, me ocorreu a adaptação à cor em voga no atual noticiário brasileiro. Ao mesmo tempo andava rondando meus ouvidos desde o final do ano passado a trilha de Calabar, e enquanto eu tateava as rimas para laranja eu sentia subentendida alguma melodia sincopada que me lembrava vagamente "Boi voador não pode" [aqui para quem quiser saber mais do assunto que motiva essa pequena joia do Chico]. Dele mesmo ainda surrupiei, com todo respeito e reverência, o larápio rastaquera de "A foto da capa", e o título de um de seus livros, por sua vez emprestado de uma consagrada expressão da sabedoria popular. Em busca de uma atmosfera propositadamente antiquada, empreguei muitos vocábulos e fraseados em desuso que, se funcionam para criar a sensação retrógrada que remete ironicamente ao reacionarismo corrente, deixam a letra meio inacessível, com jeito pedante, o que paradoxalmente dificulta sua popularização, anseio próprio do espírito das marchinhas. Mas não me deixei apoquentar por esse dilema, fui em frente contando que as situações aludidas na letra, tragicômicas e notórias, compensem essa eventual dificuldade.
O Pablo então assumiu a tarefa de fazer a música, geralmente mais trabalhosa do que a de se letrar uma melodia pronta. Para complicar, à medida que vai acumulando as marchinhas que faz (que já dão para um disco, certamente) lhe aperta a necessidade de não se repetir. Como já é de costume e pelo nosso entrosamento, enquanto ainda tateava acordes e notas ele me demandou umas mexidas na letra e um pouco mais de texto. Nesse caso, a despeito de uma pequena hesitação inicial, saíram rápido as soluções e eu modifiquei o refrão inserindo o tema da faca, o que me fez deslocar outras ideias que acabaram integrando a estrofe nova "do boi" em que consegui espremer muita coisa que ajudou a tornar o inventário de crimes e sandices que nos assolam mais abrangente. No labor de dar às palavras o som, meu parceiro fez algumas sugestões, em geral reiterando rimas internas que eu já tinha bolado - entrando aí o "artista", o "canalha", o "usado" - ajustando a letra à melodia que desenvolveu. Gostei, porque eu já tinha eleito a rima interna como uma prioridade formal e isso ficou reforçado. Finalmente, não me moveu qualquer expectativa quando a êxito no concurso, apenas o prazer de compor. Mas já que entramos, vamos botar na roda, e peço às leitoras e leitores uma colaboração para espalhar a marchinha por aí.


Ao vencedor, as laranjas (Luiz Henrique Garcia/ Pablo Castro)

Ao vencedor as laranjas ,
já estás a ver o que arranjas , manjas
Passa na faca o que queiras,
profere tuas mentiras (x2)


Eis a história de um larápio rastaquera
Quem me dera fosse mera anedota
Uma nota na conta do motorista,
olha a lorota, haja lorota desse mito vigarista


A ministra viu Jesus na goiabeira,
eu me pergunto era o Gabeira quando ainda era artista?
Um presidente que já foi paraquedista
caiu no colo do conluio de golpistas


Ao vencedor...

O tal direito que era meu o boi bebeu
A Terra é plana desde que Ol-la-vou eu
Ó céus, na República mais do que velha
Um pastor canalha amealha um milhão de ovelhas


Bolsa de merda e farda cheirando a mofo,
Falta tino, falta estofo pra essa gente tão servil
Não se lamente pelo leite derramado
Dê um pinico usado pro milico ao lado


Ao vencedor...(x2)