Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

23 de janeiro de 2020

O estridente silêncio

Vem repercutindo em alguma medida o texto publicado por Anderson França em coluna da Folha de São Paulo [completo, aqui] em que ele despeja críticas ao silêncio dos que denomina de modo meio desajeitado de "a turma da cultura de massa" da "classe artística" quanto ao famigerado pronunciamento nazista do ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro. A espinafrada que ele deu nessa gente é válida, mas entretenimento é uma coisa e arte é outra, vamos combinar. Claro que ele é apenas um articulista e não tem obrigação de dominar densos conceitos de sociologia da cultura para tecer seus comentários, mas a indistinção que expressa, de modo acrítico, seja quando não discrimina o que seja uma coisa e outra, seja quando igualmente não se dá conta de como sua demanda central é contraditória e finalmente falaciosa. Ora, se ele e nós leitores sabemos perfeitamente que para alcançar o Olimpo do sucesso massificado da indústria cultural é preciso grande conformidade ao "sistema", cobrar deles a tal 'postura' nada mais é do que um recurso retórico. Nesse ponto vale a provocação, até porque ele dá nome aos bois e vacas - mas reparem que pouco fala das "fazendas". Mas pior, ele realmente acredita e exemplifica bizarramente citando majoritariamente artistas gringos - é indisfarçável sua ambiguidade quanto ao país a cuja realidade ele precisa "respirar fundo" para voltar - que supostamente seriam o exemplo de engajamento político que ele gostaria de ver por aqui. O cara deveria pesquisar sobre a Beyoncé e sua fábrica de roupas exploradora de trabalho escravo... é um americanizado deslumbrado (oh, viva o país onde tempo é dinheiro$), que nem está vivendo no Brasil, ironicamente... hoje em dia dão colunas pra qualquer um mais ou menos articulado, mesmo que não seja bem informado. Eu já tinha lido uma ou outra coisa do Anderson e guardado incômodo quanto ao identitarismo deslumbrado de seus textos, e atualmente a grande mídia faz de tudo para incorporar essa postura ideológica à sua carteira de produtos, enquanto constata desesperada a fuga de anunciantes e multidões de leitores a galope no lombo da mula fascista a que ela própria deu capim. Aliás, tenho sérias dúvidas de que a coluna alcance alguém além da bolha (quem lê Folha hoje em dia?) de quem já está cansado de saber o que "pensam" os disseminadores de agrotoxicidade convertida em sinais audiovisuais. O mesmo vale para isto que escrevo neste castigado blog. 
Agora, para ser preciso mesmo, essa galera se posiciona sim, a favor disso que está aí, com diferentes graus de compromisso e contundência. Normalmente pela roupagem do marketing. Hoje diminuiu só porque não tem mais showmício. Senão estariam quase todos no palanque da reaçada. E aí é que está, um bom momento da crítica dele é a constatação de que o Brasil exposto nas redes sociais dos grandes do entretenimento não tem pobres. É certeiro acusá-los de defender tácita ou explicitamente os governantes que oprimem aqueles que são a fonte última de sua riqueza. Mas uma leitura atenta revela que há premissas equivocadas e que merecem ser descortinadas.
Eu até poderia ir linha a linha mas vou tentar ser sintético. Em seu raciocínio opera uma assepsia da nossa História social e cultural, aprendida com esmero nos manuais do identitarismo estadunidense. Desse modo ele separa sem nenhum esforço ou ponderação os ditos artistas de seu público e de suas origens sociais, e num passe de mágica e sem dialética alguma, essas pessoas estão totalmente excluídas da equação cultural da qual fazem parte. É essa fábrica incessante de guetos retóricos que permite ao autor acusá-las de parasitas das criações populares. Esse purismo é pueril ou canalha? Difícil saber. Uma das aplicações vergonhosas dessa versão deturpada do conceito de "lugar de fala" que anda por aí é que o dono da voz só o concede a quem lhe apetece. Ora, então um sertanejo de sei lá qual geração não pode ter tido pais ou avós que lidaram com a terra diuturnamente, e lhe ensinaram a cantar? Pra ele a herança não pode ser reivindicada? Adianto que estou provocando para demonstrar a incoerência mas não concordo com essa besteira de apropriação cultural, cultura é algo dinâmico e nômade, requerer propriedade dela, é, finalmente, um contrassenso.  Os funkeiros (curiosamente poupados salvo menção desviada de Anitta) não cresceram e fizeram seu nome nas favelas pra começar? Que diabo é isso de falar em público neo-branco (???) quando ao mesmo tempo se sabe que as maiorias no Brasil não são brancas, e que ele mesmo diz que esse pessoal é sustentado pela massa. Decida-se! Esse eugenismo narrativo mais confunde que explica, perde sempre de vista que não somos os Estados Unidos - engraçado como o sonho americano tem várias versões de acordo com o cliente, pois tem um cantinho de sereia cheio de vibrato para os "ativistas identitários" também. 
Há um nexo nada casual entre o modelo piramidal de ascensão propugnado seja na falácia meritocrática, seja no modelo de recompensa neopentecostal. O espetáculo de opulência dos selfmades (e self-makers) que converte afluência (não necessariamente concreta) em ostentação expressa totalmente esse modelo do “delírio brasileiro”, insustentável para a grande maioria mas hegemonicamente afirmado através de figuras como jogadores de futebol, astros de TV ou influenciadores digitais. E aqui a porca torce o rabo onde o identitarismo confunde o êxito dos eleitos dentro dessa lógica acomodada ao consumo e à exploração do trabalho tipicamente capitalistas com o ganho de um “lugar” e a demonstração de uma “resistência”.
O França, portanto, teve a vista nublada pela fumaça de gelo seco do palco do Jay-Z. Perdeu de vista que nessa ótica globalizada, o apagamento do pobre das contas dos bem sucedidos vindos de baixo é uma performance que diz muito sobre o Brasil que existe e é desigual. E finalmente de que o alvo final de um cutucada até boa nessa turma é essa lógica, ou não será - quase - nada.


20 de janeiro de 2020

AREMBEPE

Tenho a felicidade de ser premiado com melodias maravilhosas por parceiros que, cada qual com seu estilo, seu traço, conseguem aliar inspiração e esmero, tornando a minha vida relativamente fácil na hora de escrever a letra.
O Artur é do Ceará - ainda que, como mineiro adotivo que se tornou deve compreender bastante bem o que nós dessa terra de montanhas sentimos diante das imensidões azuis - e a sugestão na levada, no sabor da melodia, na delicada cama harmônica na qual nossos ouvidos deitam como se numa rede, tudo me sugeriu um tema praieiro, caymmiano, e eu lembrei de uma viagem em família à terra onde nasceu a Clarita Gonzaga (que bateu essa foto minha com nossos filhos), e de algumas histórias que ela já me contara sobre esse point da hippice brasileira e internacional: Arembepe. À medida em que as palavras óbvias que deveriam atender à necessidade de descrição de um cenário, remetendo a tudo que a imaginação e a própria estadia em terras baianas me gravara à memória, foi inevitável sugerir o título e dele extrair uma visualidade que remete reverentemente a um repertório imenso que povoou a música popular brasileira com exemplares de rara beleza, e não hesito em dizer, um recurso que nada tem de original, que é emular o deslocamento ondulante da música através de imagens que remetem a movimento ou repouso, o vento sopra, o coração para, a linha fisga, e finalmente os olhos do ouvinte devem, de algum modo, acompanhar os do "eu lírico" da canção enquanto eles observam a paisagem - no fundo, enquanto ele rememora aquilo que viu. Acabou ficando assim, só sugerido, meio enterrado na areia, um elemento cinemático, que nas primeiras versões era explicitado por uma referência pontual ao sobrenome de um cineasta que eu fora levado a acreditar que passara por Arembepe, que seria Bernardo Bertolucci, mas algumas reticências me levaram a descobrir que havia sido Roman Polanski. Desafortunadamente, a sílaba a menos e a ineficiência de outras soluções acabou derrubando essa pitoresca nota, substituída por sugestão do parceiro por "tua presença" - resta aí uma citação do baiano Caetano. 
Normalmente eu não costumo ser explícito e direto quanto a situações pessoais que inevitavelmente fazem parte dos ingredientes dentro do caldeirão no qual se cozinha uma letra de canção. Não sou de falar de mim nesses termos, digamos assim. Mas sei que certamente, mesmo naquelas canções em que aparentemente impera toda uma objetividade, uma opção por narrativa descritiva e tremendamente distanciada de minha própria existência e experiência individual, haverá traços inescapáveis - de repente, inconscientes - dessa particularidade, mesmo que eu intente escondê-los. Com certeza muitas das canções mais marcantes nos repertórios que guardamos conosco são essas em que o "eu lírico" se confunde ao intérprete, e ainda mais amalgamadamente ao cantautor, quando este está literalmente expondo suas vísceras em público. No instituto da parceria sobra ainda a possibilidade, da qual já provei, de ter que temperar as palavras de modo a capturar em seu sabor essa organicidade sem ter vivido nada daquilo, se conseguimos por forte entrosamento e empatia escrever aquilo que o parceiro queria dizer por si.
Dessa vez, portanto, não tive escapatória e minha vida pessoal escorreu para dentro da letra. Fiquei com um retrato registrado em canção de um momento muito feliz em família, uma viagem que planejáramos fazer por muitos anos, e finalmente realizada numa oportunidade propícia. O tempo - ah, esse brinquedo que os dedos do historiador que sou não largam - encarrega-se agora de emoldurar a fotografia daqueles dias inesquecíveis, enquanto a passagem de 2019 marcou também o encerramento do ciclo de um longo relacionamento, com serenidade e cuidado pelo que de mais bonito fizemos, representado sobretudo nos nossos rebentos que estão crescidos e prontos para dar seus próprios passos nas areias da vida.




Arembepe (Artur Araújo/Luiz Henrique Garcia)

O vento sopra de leve
Entre as palmeiras descreve
o meu coração
para
suspenso ali
para
realça
a linha que
fisga dentro do meu peito

sigo a embarcação
sempre
rebentação
tempo

tempo
leve pr’Arembepe meu bem
guarde na lembrança esse céu
onde o sonho foi
silêncio e sol
luz que tua presença captou