Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de novembro de 2020

Prêmio colhido da Horta


Prêmios, ainda mais "Grammy Latino", podem ser questionados em sua função hegemônica, preferências estéticas e lógica comercial. A divisão de categorias e os resultados refletem sobretudo uma percepção gringa, desde a medula da indústria cultural estadunidense, sobre as culturas latino-americanas. De modo muito ostensivo fica evidente a separação entre o Brasil e o resto dos países do continente, que, claro, não surgiu com o Grammy, e não pode ser simplesmente ignorada, embora seja possível identificar bem melhor as aproximações do que fazem em Miami. A despeito também dos méritos que grandes gerações, como a que reúne Toninho Horta, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, João Bosco, Elza Soares, tem, é também digno de protesto que essa [lista de indicados e premiados brasileiros] e outras premiações ignorem por completo o que as mais recentes produzem, especialmente quando se trata de compositores e intérpretes que não sejam consideradas pop.

Com tudo isso, tais prêmios são por vezes canais que estendem a um público mais amplo a circulação de trabalhos genuínos, feitos por gente talentosa. E nesse sentido o prêmio de melhor disco de música popular brasileira conferido a "Belo Horizonte", de Toninho Horta, acompanhado da infalível Orquestra Fantasma, está mais que em boas mãos. Como resume esta matéria, "“Belo Horizonte” nasceu de uma ideia do filho de Horta. “Um dia, meu filho chegou e me disse: ‘Pai, já que Milton Nascimento tem um disco chamado “Minas” e outro “Gerais”, por que você não faz o “Belo” e o “Horizonte”?’, conta. Do insight, veio o álbum duplo, que traz no primeiro volume músicas famosas interpretadas em parceria com grandes nomes como João Bosco - "Aqui, ó" (Horta/Brant) com ele ficou sensacional, tudo a ver com ele mesmo -  e Joyce Moreno. 



Já no segundo, canções inéditas e totalmente instrumentais". Abaixo o áudio-vídeo da parte Horizonte, e aqui  para ouvir todo o álbum. 


É literalmente o prêmio colhido da Horta, e Toninho é foda até na hora de receber e comemorar - sempre dando exemplo em matéria de humildade, generosidade, reconhecimento do trabalho coletivo, de uma forma muito autêntica e contagiante [aqui]. Tremendo orgulho desse belorizontino, mineiro, brasileiro, grande músico do mundo!

15 de novembro de 2020

Atuação acadêmica à distância




Nestes tempos de restrições impostas pela pandemia, tem ocorrido uma intensa atividade acadêmica e de divulgação científica nas redes. Muito mais importante que colocar essas coisas no Lattes, é a oportunidade de compartilhá-las com o maior número de pessoas. A internet é um canal importante para isso. Compartilho aqui dois encontros online que tive o prazer de participar, a convite. Vale conferir as falas e os ótimos debates que pudemos travar ao final das apresentações, contemplando inclusive participação do bom público que acompanhou.

Tive o grande prazer de dividir essa excelente mesa com Berenice Corti e Evandro Higa, nas 4a. Jornada de Investigação em Música Latino-Americana, promovida pela Unila desde Foz do Iguaçu, que nas figuras de seus professores Felipe Jose e Bia Cyrino agradeço novamente pelo convite e pelo esforço extra (grato, ainda, ao colega Lucas!) de adequar o conteúdo às exigências de veiculação do You Tube - em particular o da minha fala que trazia muitos exemplos musicais inseridos em vídeos veiculados pelo próprio YT, e paradoxalmente precisaram ser em sua maioria editados.

Intitulei minha fala "Cordilheira de sonhos numa esquina do mundo": América Latina no som imaginário do Clube da Esquina, e este foi o resumo do que digo em minha participação na mesa:

"A partir de conceitos de culturas híbridas, transculturação, cultura popular e moderna tradição pensados em chave latino-americana por autores como García Canclini, Martín-Barbero, Ángel Rama, Antônio Cândido e Renato Ortiz, proponho um trajeto investigativo para pensar uma cartografia sonora imaginária da América Latina na obra discográfica de Milton Nascimento e de seus companheiros do coletivo Clube da Esquina, registrada especialmente entre as décadas de 1960-80. Tal itinerário representa uma possibilidade para entender as possibilidades de trânsito entre culturas, artistas e públicos neste espaço continental, inclusive para além dos marcos temporais traçados, considerando a vitalidade de tal obra e seus criadores. " 



No evento "Encontros com o Patrimônio", promovido pela Casa Fiat de Cultura, em BH, participei de uma conversa bacana sobre Santa Tereza e o Clube da Esquina, junto com a historiadora e educadora da Casa, Ana Carolina Ministério, e o ilustríssimo Telo Borges. Na minha fala Patrimônio cultural, lugares e sentidos: a esquina do Clube, apresentei uma síntese das pesquisas que venho conduzindo na UFMG, atualmente encampadas no grupo de estudos Som e Museologia (SOMMUS) que coordeno. Quem quiser ir mais fundo pode começa conferindo o podcast Patrimônio urbano e música popular, aqui mesmo no blog.


 





5 de novembro de 2020

A crítica musical e as tentativas de enquadramento estético

 

Importantíssimo desde sempre o trabalho da Marcus Pereira para o patrimônio musical brasileiro. Acabei me deleitando também com a matéria do Walter Silva sobre Milton, cuja obra é objeto de estudo pra mim há muitos anos. Silva, conhecido como "Pica-Pau", tem longa história como disque-jóquei e radialista [para saber mais, aqui]. 
Sua crítica virulenta me parece uma tentativa tardia e fracassada de enquadrar esteticamente Milton Nascimento, reprisando a eterna ladainha conservadora que prefere o passado a priori e uma idealização rústica, artisticamente limitadora e essencialista, perdendo totalmente de vista os traços subsequentes de originalidade e ousadia que Milton revelou e explorou exponencialmente em sua carreira discográfica na década de 1970. Felizmente esse tipo de "saudosismo" fabricante de estereótipos não o vitimou em nada, e houve críticos em bom número para contrapor uma percepção mais acurada do que ele e seus parceiros de Clube da Esquina estavam fazendo, muito longe de ser postiço e artificial. O artigo denota sobretudo a dificuldade de seu autor em realizar uma audição compreensiva e abrangente sobre a criação de um artista, preferindo apegar-se a um tipo de "fotografia" narcísica baseada no momento em que lhe conheceu e aprovou. Como tem crítico que faz isso, até hoje. Agora, como documento que se presta à análise historiográfica, é uma pequena joia, instantâneo que revela algo sobre a prática da crítica musical na grande imprensa brasileira em meados dos anos 1970, e também sobre a recepção da obra de Milton, ali em vias de alcançar tanto a sua consolidação estética quanto um público bem mais amplo, no momento em que era considerado "o maior talento dos dias de hoje", como Walter Silva repercute, ainda que com tom lamentoso. Pena que ele não estava ouvindo direito.