Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

29 de março de 2020

Quare(A)ntena



Enquanto estamos encarando essa famigerada quarentena, especialmente apreensivos no Brasil em razão do comportamento criminoso, irresponsável e equivocado de algumas das principais figuras governamentais nacionais, inclusive o próprio presidente, aqueles que atuam na seara musical e cultural estão duplamente desafiados: de um lado, lidar com as tremendas preocupações e dificuldades materiais que esta crise de saúde pública promove e lhes alcança forte e imediatamente, pelo impedimento necessário das aglomerações com o justo objetivo de reduzir a velocidade de contágio e a escalada de casos graves, que lhes inviabiliza realizar apresentações ao vivo e outras atividades essenciais de sua profissão; de outro, responder ao chamado por sua contribuição artística e cultural, um bem indispensável em qualquer circunstância mas particularmente urgente de alcançar num momento em que uma parte considerável da população mundial está reclusa. Em nosso caso esses desafios se tornam ainda mais agudos e dramáticos, pelo fato de não termos no país políticas adequadas para garantir a sustentabilidade dessas atividades profissionais para além daquele recorte imposto pelo mercado e sua lógica cultural industrial massificada própria. Aqui e ali constatamos algumas iniciativas, como lançamentos de editais para projetos de apresentações online, das janelas, ou auxílios econômicos mínimos que o Congresso procura aprovar e que em alguma medida mitigam essas dificuldades.
Não sou produtor, não sou uma pessoa da área de marketing, nada disso. Sou pesquisador e também compositor. Tenho por isso parceir@s e amig@s que abraçaram a música como profissão, dela tiram seu sustento e dela fazem uma razão de viver. Pensei assim em criar essa postagem "painel" de programação de apresentações online e mais coisas que for o caso de agregar. Este não é um blog comercial e sim pessoal, e eu o atualizo sozinho. Sendo assim assumo a princípio como editor que esta seleção (ou se formos empregar um conceito bastante em moda, esta curadoria) baseia-se essencialmente nos meus vínculos artísticos e de amizade. Na medida do possível e desejável, através de comentários ou de compartilhamentos pela página oficial do blog no Facebook, outros trabalhos podem vir a ser incorporados.
A ideia, ao menos agora, é que concentrando tudo nessa postagem, as lives e vídeos que estiverem fazendo agora circularão de uma vez só, para o público que cada um consegue alcançar. A postagem tem duas seções. A primeira funciona como um Arquivo, ou seja, incorpora na página aquilo que já aconteceu, que de repente alguém não viu ou quer rever. Como vários desses meios atuais de difusão são tremendamente efêmeros, esta função enseja um pouco a aplicação prática das pesquisas que faço sobre patrimônio cultural e música popular. A segunda é uma seção de Anúncios, em que vou recebendo e atualizando a programação futura com seus respectivos links ou contatos.
Por fim, a seção de comentário do blog Massa Crítica Música Popular fica sempre aberta e quem quiser pode deixar críticas, comentários, sugestões e links com sugestões para lives e outras atividades que quiser recomendar. Por agora é isso e fiquem o máximo e melhor possível de Quare(A)ntena.


Arquivo:

Da série "Co-vídeos" do meu parceiro Maurício Ribeiro, atualmente pousado em Valência, Espanha. Com Vinícius Augustus, em Belo Horizonte, Brasil; Joana Radicchi, em Lisboa, Portugal; e Edson Fernando, em Bhopal, Índia; a música é "Ventania no cerrado", que dá título ao disco homônimo. (19/04/2020)




Do meu parceiro Benji Kaplan, de NY: "Canção da esperança" "Song of hope" (30/03/2020)





Show live do Parceiro Makely Ka: Rio Aberto - Instrumental de Violas em Quarentena







Lives do meu parceiro Artur Araújo no facebook:

LIVE autorais e versões - 29/04/2020



Live Belchior I - 15/04/2020 



Live Temática Clube da Esquina



Live solidária (03/04/2020)



Belchior Live parte II - 22/04/2020



Lives do meu parceiro Pablo Castro no facebook:

Pablo Castro canta Lô Borges (25/04/2020)



Pablo Castro autorais I - 24/04/2020



Pablo Castro canta Chico Buarque II (20/04/2020)




Pablo Castro canta Tom Jobim III (20/04/2020) 




Pablo Castro canta Tom Jobim II (18/04/2020)




 
Pablo Castro canta Tom Jobim (16/04/2020)



Pablo Castro canta Milton Nascimento II (15/04/2020)




Pablo Castro canta Milton Nascimento I (13/04/2020) 






Pablo Castro canta Genesis na formação clássica (11/04/2020)





Pablo Castro canta Paul McCartney (09/04/2020)




Pablo Castro canta João Bosco (2a. parte) (09/04/2020)





Pablo Castro canta Djavan (06/04/2020)




Pablo Castro canta John Lennon (04/04/2020)







Pablo Castro canta Gil (02/04/2020)





Pablo Castro toca Clube da Esquina - II (01/04/2020)





Pablo Castro toca Clube da Esquina - I (31/03/2020)





Songbook Chico Buarque (30/03/20)




Álbum All things must pass - George Harrison (28/03/2020)



Songbook Beto Guedes (26 e 27/03/2020)








Songbook Edu Lobo (25/03/2020)



Songbook João Bosco (24/03/2020)



Repertório João Gilberto (23/03/2020)



Thiakov Davidovich  Aulas-live sobre a guitarra dos Beatles

 Base e solo simultâneas II (28/04/2020)



Base e solo simultâneas (16/04/2020)





Parte I (01/04/2020)



Parte II (02/04/2020)





Anúncios: 



Artur Araújo
Hoje faço minha primeira live às 17h no @festivaldasaladecasa. Vai ser um barato poder compartilhar minhas canções com vcs e bater um papo sobre música nesse domingão. Nos vemos lá! 












Makely Ka
Próxima sexta-feira, dia 3 de abril, faço uma transmissão ao vivo do show “Rio Aberto”, instrumental de viola (...) a partir das 20h simultaneamente em todas as redes e plataformas que utilizo (YouTube, Facebook e Instagram). Mais informações aqui.




Artur Araújo
Nessa quarta farei a próxima live com releituras de canções (boa parte não tão conhecidas), das quais me apropriei como intérprete. A live será na minha página do instagram @arturaraujooficial. Aproveito também pra anunciar que nessa sexta (3/04) às 17h, farei uma aqui no face mesclando autorais e releituras. 








Thiakov


Hoje à noite (01/04) vou fazer o repeteco da live/aula sobre as guitarras dos Beatles - frases, solos e bases. Dessa vez vai ser aqui no Face.











Canais:
Campanha: a ideia é ajudarmos uns aos outros a alcançar 1000 inscritos no YouTube para monetizar nossos canais (significa que o YouTube irá começar a te pagar por cada visualização).
Se inscreva no meu canal abaixo e deixe o link do seu próprio canal no YouTube nos comentários abaixo e te seguirei de volta!




Dan Oliveira  - Música Aos Montes

 















Leandro César - Leandro César
















Daniel Guimarães - Daniel Guimarães













Raul Mariano - Raul Mariano


















Irene Bertachini - Irene Bertachini  























Maurício Ribeiro - Maurício Ribeiro

Aula de canção: Murder most foul, o sermão laico da montanha de Bob Dylan

A canção é solene, a melodia é meio soturna, mas reflexiva mais que doída, o andamento é lento. Dylan faz uma espécie de sermão laico da montanha, testemunho e testamento em trova de sua geração a partir da crônica da morte de Kennedy que se desenrola como um verdadeiro sobrevoo pela paisagem histórica de seu país em 1963, rendendo nesse percurso uma homenagem monumental ao repertório de canções que ele coleciona como uma amostragem abrangente e candente do som de seu tempo, uma espécie de radiografia musical geracional. Imagino que em seu país cale muito mais fundo que no resto do mundo, mas também nos toca de algum modo: 

"Business is business, and it's a murder most foul"
Negócio é negócio, e é o assassinato mais imundo.

Falou tudo (e mais um pouco, já que são 17 minutos de gravação)!




Murder Most Foul Bob Dylan
Twas a dark day in Dallas, November '63
A day that will live on in infamy
President Kennedy was a-ridin' high
Good day to be livin' and a good day to die
Being led to the slaughter like a sacrificial lamb
He said, "Wait a minute, boys, you know who I am? "
"Of course we do. We know who you are. "
Then they blew off his head while he was still in the car
Shot down like a dog in broad daylight
Was a matter of timing and the timing was right
You got unpaid debts; we've come to collect
We're gonna kill you with hatred; without any respect
We'll mock you and shock you and we'll put it in your face
We've already got someone here to take your place

The day they blew out the brains of the king
Thousands were watching; no one saw a thing
It happened so quickly, so quick, by surprise
Right there in front of everyone's eyes
Greatest magic trick ever under the sun
Perfectly executed, skillfully done
Wolfman, oh wolfman, oh wolfman howl
Rub-a-dub-dub, it's a murder most foul

Hush, little children. You'll understand
The Beatles are comin'; they're gonna hold your hand
Slide down the banister, go get your coat
Ferry 'cross the Mersey and go for the throat
There's three bums comin' all dressed in rags
Pick up the pieces and lower the flags
I'm going to Woodstock; it's the Aquarian Age
Then I'll go to Altamont and sit near the stage
Put your head out the window; let the good times roll
There's a party going on behind the Grassy Knoll

Stack up the bricks, pour the cement
Don't say Dallas don't love you, Mr. President
Put your foot in the tank and step on the gas
Try to make it to the triple underpass
Blackface singer, whiteface clown
Better not show your faces after the sun goes down
Up in the red light district, they've got cop on the beat
Living in a nightmare on Elm Street

When you're down in Deep Ellum, put your money in your shoe
Don't ask what your country can do for you
Cash on the ballot, money to burn
Dealey Plaza, make left-hand turn
I'm going down to the crossroads; gonna flag a ride
The place where faith, hope, and charity died
Shoot him while he runs, boy. Shoot him while you can
See if you can shoot the invisible man
Goodbye, Charlie. Goodbye, Uncle Sam
Frankly, Miss Scarlett, I don't give a damn

What is the truth, and where did it go?
Ask Oswald and Ruby; they oughta know
"Shut your mouth, " said the wise old owl
Business is business, and it's a murder most foul

Tommy, can you hear me? I'm the Acid Queen
I'm riding in a long, black limousine
Riding in the backseat next to my wife
Heading straight on in to the afterlife
I'm leaning to the left; got my head in her lap
Hold on, I've been led into some kind of a trap
Where we ask no quarter, and no quarter do we give
We're right down the street from the street where you live
They mutilated his body, and they took out his brain
What more could they do? They piled on the pain
But his soul's not there where it was supposed to be at
For the last fifty years they've been searchin' for that

Freedom, oh freedom. Freedom cover me
I hate to tell you, mister, but only dead men are free
Send me some lovin'; tell me no lies
Throw the gun in the gutter and walk on by
Wake up, little Susie; let's go for a drive
Cross the Trinity River; let's keep hope alive
Turn the radio on; don't touch the dials
Parkland hospital, only six more miles

You got me dizzy, Miss Lizzy. You filled me with lead
That magic bullet of yours has gone to my head
I'm just a patsy like Patsy Cline
Never shot anyone from in front or behind
I've blood in my eye, got blood in my ear
I'm never gonna make it to the new frontier
Zapruder's film I seen night before
Seen it 33 times, maybe more
It's vile and deceitful. It's cruel and it's mean
Ugliest thing that you ever have seen
They killed him once and they killed him twice
Killed him like a human sacrifice

The day that they killed him, someone said to me, "Son
The age of the Antichrist has only begun. "
Air Force One coming in through the gate
Johnson sworn in at 2: 38
Let me know when you decide to thrown in the towel
It is what it is, and it's murder most foul

What's new, pussycat? What'd I say?
I said the soul of a nation been torn away
And it's beginning to go into a slow decay
And that it's 36 hours past Judgment Day

Wolfman Jack, speaking in tongues
He's going on and on at the top of his lungs
Play me a song, Mr. Wolfman Jack
Play it for me in my long Cadillac
Play me that "Only the Good Die Young"
Take me to the place Tom Dooley was hung
Play St. James Infirmary and the Court of King James
If you want to remember, you better write down the names
Play Etta James, too. Play "I'd Rather Go Blind"
Play it for the man with the telepathic mind
Play John Lee Hooker. Play "Scratch My Back. "
Play it for that strip club owner named Jack
Guitar Slim going down slow
Play it for me and for Marilyn Monroe

Play "Please Don't Let Me Be Misunderstood"
Play it for the First Lady, she ain't feeling any good
Play Don Henley, play Glenn Frey
Take it to the limit and let it go by
Play it for Karl Wirsum, too
Looking far, far away at Down Gallow Avenue
Play tragedy, play "Twilight Time"
Take me back to Tulsa to the scene of the crime
Play another one and "Another One Bites the Dust"
Play "The Old Rugged Cross" and "In God We Trust"
Ride the pink horse down the long, lonesome road
Stand there and wait for his head to explode
Play "Mystery Train" for Mr. Mystery
The man who fell down dead like a rootless tree
Play it for the Reverend; play it for the Pastor
Play it for the dog that got no master
Play Oscar Peterson. Play Stan Getz
Play "Blue Sky"; play Dickey Betts
Play Art Pepper, Thelonious Monk
Charlie Parker and all that junk
All that junk and "All That Jazz"
Play something for the Birdman of Alcatraz
Play Buster Keaton, play Harold Lloyd
Play Bugsy Siegel, play Pretty Boy Floyd
Play the numbers, play the odds
Play "Cry Me A River" for the Lord of the gods
Play Number 9, play Number 6
Play it for Lindsey and Stevie Nicks
Play Nat King Cole, play "Nature Boy"
Play "Down In The Boondocks" for Terry Malloy
Play "It Happened One Night" and "One Night of Sin"
There's 12 Million souls that are listening in
Play "Merchant of Venice", play "Merchants of Death"
Play "Stella by Starlight" for Lady Macbeth

Don't worry, Mr. President. Help's on the way
Your brothers are coming; there'll be hell to pay
Brothers? What brothers? What's this about hell?
Tell them, "We're waiting. Keep coming. " We'll get them as well

Love Field is where his plane touched down
But it never did get back up off the ground
Was a hard act to follow, second to none
They killed him on the altar of the rising sun
Play "Misty" for me and "That Old Devil Moon"
Play "Anything Goes" and "Memphis in June"
Play "Lonely At the Top" and "Lonely Are the Brave"
Play it for Houdini spinning around his grave
Play Jelly Roll Morton, play "Lucille"
Play "Deep In a Dream", and play "Driving Wheel"
Play "Moonlight Sonata" in F-sharp
And "A Key to the Highway" for the king on the harp
Play "Marching Through Georgia" and "Dumbarton's Drums"
Play darkness and death will come when it comes
Play "Love Me Or Leave Me" by the great Bud Powell
Play "The Blood-stained Banner", play "Murder Most Foul

24 de março de 2020

Meu pequeno momento Raymond Williams com George Harrison


Meu caríssimo amigo Guilherme Lentz, um homem de Letras, e de Beatles, postou agorinha essa canção da fase solo de Harrison, Cockamamie Business. A letra é ótima. Deu na telha de tentar entender essa gíria. 



Diz o "sr. google" que veio de decalcomanie, portanto um empréstimo do francês. Sigo em frente para sacar que o negócio tem a ver com o uso do decalque como técnica pelos surrealistas. Procede. O mais provável é que do francês para o inglês, especialmente o das camadas populares, a palavra decalcomanie se modificou.E ainda tem um detalhe estatístico (o google deve estar usando os textos escritos digitalizados como base pra isso, imagino): o auge do emprego de "decalcomania" é nos anos 1950s (gráfico 1), e a curva ascendente do uso de "cockamamie" (com o sentido de implausível, ou como nós usamos às vezes "surreal") começa justo nos anos 1950 (gráfico 2).




Aproveito para recomendar esse útil e inspirador - como todos - livro de Williams, Palavras-chave. Devia ser 1998, pois já havia iniciado o mestrado e tinha ido à Unicamp entre outras coisas procurar para copiar alguns livros que não havia na biblioteca da Fafich da UFMG, um deles era o Keywords do Raymond Williams, e acabei encontrando também a edição inglesa do Costumes in common do Thompson, que não estava nos planos mas acabei xerocando um capítulo. O Palavras-chave é basicamente um dicionário de ciências humanas e sociais, recortando no léxico aquilo que seu autor, estudioso marxista da história da literatura e da cultura britânicas, chamava de vocabulário em "cultura e sociedade".

6 de março de 2020

Dependência cultural, ainda

Meu parceiro Pablo Castro, costumeiro colunista convidado neste blog, produziu nos últimos dias dois textos com sua habitual contundência e bastante conhecimento de causa, sobre as relações desiguais na dinâmica do intercâmbio cultural através de meios massivos e a política de fomento à Cultura no Brasil. Embora o estopim de tais reflexões tenha sido a recente publicação do edital provido pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura em Belo Horizonte, optei por reunir os textos subsequentes à primeira postagem que ele fez, por serem mais abrangentes e menos dependentes dessa contextualização específica. Aponto ainda que o tema é de relevância maior num momento em que o atual governo federal, em seu ímpeto destrutivo, procura de todos os modos aparelhar e dirigir o fomento à cultura no Brasil de acordo com os interesses de grupos de extremistas religiosos e conservadores, fora ocupar-se dos costumeiros desvios criminosos, pretendendo, para tal fim, extinguir fundos públicos, inclusive alguns dos mais importantes no fomento à Cultura [aqui].
Cumpre frisar que aqui temos a proposta de um debate crítico que abrange o passado, o presente e o futuro da criação cultural, em especial a devotada à música popular, em nossa cidade, estado e país. É bom que ele não seja feito em termos estritamente acadêmicos, e igualmente não seja feito no registro do senso comum. No lugar de editor, é lógico que eu posso salientar que guardo aqui e ali minhas discordâncias ou que recorreria a outros termos e conceitos. Mas tirando uma ou outra ponderação que farei ao final, em notas numeradas (retomando algumas observações que já fiz nos comentários das postagens originais destes textos do Pablo no facebook), concordo com a espinha dorsal do que está dito a seguir.


O Que É Dependência Cultural e Por Que Seu Combate Deveria Ser Prioridade Máxima do Investimento em Cultura num País Periférico ? 

Oriundo de décadas passadas, e praticamente varrido da universidade brasileira depois dos anos 70, o conceito de Dependência Cultural se refere à subordinação sistemática de uma cultura nacional ou local à Cultura Metropolitana, seja ela nacional ou mundial . É o correlato na Cultura da questão da dependência econômica macro-societal [1] .
Indícios de Dependência Cultural são a falta de sinergia artística em dada cena cultural, a fragmentação das obras e dos artistas, a profunda padronização, a partir de padrões externos, de suas formas culturais, a desvalorização simbólica das expressões locais e/ou nacionais , tornadas marginais diante dos padrões da Indústria Cultural , a ausência de perspectiva histórica na avaliação e na oferta de Cultura nacional e/ou local, a falta de presença midiática da produção cultural local e/ou nacional, e, por fim, a absoluta inviabilidade prática de autores de viver de sua produção artística [2].
Nesse ponto, é bom observar que o conceito de dependência cultural não se refere a um "atraso", mas sim a uma relação de subordinação sistemática das expressões culturais de um recorte local ou nacional com relação aos centros irradiadores de cultura - leia-se Indústria Cultural.
Se tomarmos esses indícios como algo a ser levado em conta num diagnóstico sério de uma determinada cena local , em país subdesenvolvido e dependente, as secretarias de Cultura de um estado como Minas Gerais e uma capital como Belo Horizonte deveriam se dedicar , de maneira prioritária, a combater essa dependência.
Hoje, em Belo Horizonte, na área de música popular, historicamente responsável pelos maiores feitos em termos de distinção de identidade do estado e da capital, consubstanciados sobretudo no mundialmente consagrado Clube da Esquina, apenas um número ínfimo de artistas mineiros poderiam se apresentar no palco mais clássico da cidade, o Palácio das Artes, com um número de pessoas interessadas. Desde o Clube da Esquina, tivemos o surgimento de um grande número de cantores e compositores de alto nível, reconhecidos em searas específicas em outros lugares do país e do mundo ; mesmo assim, nenhum deles consegue se apresentar no maior palco da cidade. Posso citar aqui , de cabeça : Celso Adolfo, Tadeu Franco, Paulinho Pedra Azul, Sérgio Santos, Titane, Marina Machado, Alda Rezende, Kristoff Silva, etc. , etc, etc. Alguns desses excelentes artistas largaram a carreira, outros a levaram na base do esforço pessoal, mas com dificuldades absolutamente extraordinárias de manter o ímpeto de construir uma obra.
É incontornável concluir que essa falta de continuidade histórica da música popular mineira não se deve a algum defeito desses artistas, mas se deve a uma razão estrutural : somos o estado do Sudeste, e talvez do Brasil, mais prejudicado e inviabilizado culturalmente pelo domínio avassalador do chamado eixo Rio-São Paulo, estabelecido sobretudo pelos militares pelo surgimento da rede nacional de Televisão , que destruiu nossa TV local, com programação exclusiva feita aqui, a antiga TV Itacolomi [o MIS-BH realizou exposição sobre o tema]. 
A despeito de ser o estado com a maior lei de incentivo à Cultura do Brasil, Minas segue sendo um túmulo de talentos. Pudera : todo o ecossistema de Cultura , desde os editais do Estado e do Município, até o rol dos produtores locais de shows e concertos, são condicionados a priorizar, de todas as maneiras possíveis, os artistas cariocas, paulistas, pernambucanos, baianos, pra não falar nos "internacionais", em detrimento dos artistas locais. Ser daqui desvaloriza um artista como um defeito de nascença.
Vejo artistas medianos da dita cena "independente do país" virem aqui várias vezes por ano e receberem cachês 10 vezes maiores do que artistas locais com maior qualidade, originalidade e experiência. Isso nos editais públicos, não apenas em eventos privados.[3]
Uma cidade sem artistas saudáveis, que tenham condições mínimas de acessar a veiculação de seus trabalhos e a formação de um público, é uma cidade sem identidade. O que se depreende até mesmo na exuberância do Carnaval redivivo de BH : somos um carnaval cover, em que os nossos grandes talentos são levados a se tornarem antes de mais nada repetidores de obras consagradas, como que já conformados da impotência de fazer com que novas canções possam de alguma forma ser conhecidas do público local.
Com isso, os editais pautados em conceitos identitários e empacotados de fora, que não se preocupam com a identidade coletiva de um lugar, mas com as identidades fragmentadas a priori em termos de cor, raça, gênero , o que se alcança na verdade é uma acentuação da dependência e do subdesenvolvimento cultural e uma homogeneização ainda maior , nadando a favor da corrente da dominação da Indústria Cultural, tanto a nacional, configurada no eixo RJ-SP, quanto na mundial .


Por Que Políticas Públicas Multiculturalistas São Um Atraso Num País Sincrético ?

Ao analisar a forma como os ditames multiculturalistas foram introduzidos nas políticas públicas de Cultura no Brasil, fica patente que o subproduto dessa imposição é um ataque ao sincretismo e à permeabilidade cultural que se deu na cultura nacional em séculos de miscigenação e misturas culturais que fizeram do país o exemplo mais original , reconhecido por vários argutos observadores estrangeiros, de sincretismo cultural do planeta.
Resumidamente, a teoria multicultural parte do pressuposto que existem grupos culturais totalmente estanques, separados e apartados da sociedade oficial . Enquanto esse ponto de partida faz todo o sentido em países como a França, a Inglaterra , a Indonésia, a Bolívia, o Paraguai, a Alemanha e os Estados Unidos, no Brasil ele configura um retrocesso de séculos [4] . Mas mesmo nesses países, a ideologia multiculturalista , ou seja, os preceitos advindos de uma visão de culturas apartadas e impenetráveis, embora pareça progressista, na prática também aprofunda o apartamento cultural de populações que poderiam se integrar em vista de, no mínimo, lutar pelos seus interesses objetivos de classe.
Por outro lado, a imposição dessas políticas no âmbito da Cultura no Brasil é um retrocesso de séculos. Para isso, basta olhar para a nossa cultura e perguntar : Pixinguinha fazia música negra, ou música brasileira, resultado da combinação de uma harmonia européia com ritmos africanos ? O Clube da Esquina, liderado por um negro adotado por família branca, é música negra ou música branca ? Caetano Veloso faz música branca e Gilberto Gil faz música negra ? A Bossa nova era branca mesmo quando todos os seuis criadores citem um músico negro, Johnny Alf, como seu precursor ?
Mesmo na metrópole cultural do planeta, os Beatles, o maior fenômeno de vendagens da história, um quarteto inglês, fazia música branca ou música negra ? O jazz, talvez o maior fenômeno criativo de música no século XX, é música negra ou música branca ? Resposta, nenhum dos dois.
Toda a cultura humana do planeta nasce de processos sucessivos de hibridizações, sejam eles por imposições, mesclas, trocas, empréstimos e apropriações. Negar isso é negar a própria natureza da cultura humana.
Nada disso significa que não há opressões por trás desses processos, reconhecer a mistura não é advogar uma pretensa harmonia ou simetria onde ela não há . Por outro lado, afirmar o caráter híbrido das culturas humanas é crucial para perseguir o objetivo dessa harmonia. Afinal de contas, não é um mundo mais harmônico que queremos construir, nós da esquerda ? Defender a priori qualquer forma de purismo é rumar na direção oposta.
Mais do que isso, a ideia de combater as desigualdades na ponta, no âmbito das expressões estético-culturais, e não na raiz, na verdade não só não reduz as desigualdades, como também aponta para a perpetuação dessa separação , ao contrário do que se diz pretender atingir.
Quando um edital de cultura coloca como critério de pontuação geral a promoção de purismos politicamente orientados ele trata a cultura como um invólucro vazio que só pode ser tratado como um cabo de guerra, não como uma esfera criativa que possa resultar em originalidades. É precisamente por isso que esse tipo de política gerará sempre uma maior homogeneização, não o contrário.
Sobretudo a naturalização dessa ideologia multiculturalista num país original, diverso , multifacetado e miscigenado como o Brasil, é um evidente retrocesso.
Por fim, analisar números e dados numa política de Cultura só faz sentido como pano de fundo para um cena cultural, onde haja sinergia, mútuas influências e cooperações artísticas, além de uma ideia de história cultural . Cultura não existe sem história, arte não existe sem história , e burocratas de órgãos de Cultura têm obrigação de conhecer essa história. Eles não estão lidando apenas com dinheiro.
Por Pablo Castro


Notas do editor:
[1] A consagração do conceito de globalização e o subsequente debate em torno de sua acepção propriamente cultural levaram à adoção de outros termos para tentar compreender o fluxo assimétrico das trocas culturais. Assim faço questão de frisar que os estudos acadêmicos dos anos 1980 em diante nunca desconheceram os desequilíbrios nas trocas culturais em diferentes recortes espaciais e temporais, foram simplesmente obrigados a estudá-las em novos termos para dar conta dessa outra dinâmica. Como já escrevi sobre isso em minha Tese e neste artigo dela derivado publicado na excelente revista argentina El Oído Pensante, “Só ponho bebop no meu samba...”: trocas culturais e formação de compositores na formulação da MPB nas décadas de 1960 - 70, convido o leitor a aprofundar-se por aqui

[2] Remeto a postagem anterior, Artistas da fome e o valor da bolacha

[3] Eu só gostaria de acrescentar que essa estrutura, que do jeito que está já soterra talentos, inclusive muitos que nascem e/ou vivem no epicentro do eixo mas são marginais até mesmo ali e em relação até ao que se denomina "cena alternativa".  

[4] Na verdade essa teoria não faz sentido em lugar nenhum. Cultura é troca. É mistura. Aquilo que se nos apresenta como particular de um dado grupo, em um dado momento, já pertenceu a outros, mudou de forma, deslocou-se no tempo e no espaço. Multiculturalismo é um tipo de conformismo da Cultura, com fundo falso.