Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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2 de janeiro de 2025

Bolacha completa: Cativo, ábum de Clayton Prósperi



Estou devendo há um tempão uma resenha desse trabalho impecável do meu parceiro e amigo Clayton Prósperi. Penso que entre as muitas conotações do título Cativo, a primeira que me ocorre é aquela de um vínculo férreo, mineral, do mesmo modo que dizemos “cadeira cativa”. Com ele, está reservado o lugar do Clayton neste vasto estádio da MPB, não na condição de mero espectador, continuador de seja o que for, e sim de criador com toda autoridade, maduro, de canções belíssimas e arranjos esmerados que receberam um registro de primeira categoria.

Cativados, no sentido hiperbólico de aprisionados, ficam os nossos ouvidos, conquistados pela inegável força desse repertório autoral que os convida a tudo. Ritmos hipnóticos, letras poéticas, harmonias ousadas, melodias voadoras. Tudo isso embalado numa produção impecável, acompanhado por gente que é do ramo, feito Tutuca, Ismael Tiso, Enéias Xavier e Teco Cardoso, entre outros. Encontramos um vasto panorama de invenção na música popular, que vai dos arranjos vocais aos solos de guitarra, das pausas sugestivas a energéticos pulsos de baixo, das faunas timbrísticas a alternâncias rítmicas que demonstram quão alargada e proficiente é a concepção de Cativo. É como se fôssemos alçados ao alto das montanhas do Sul de Minas e de lá divisássemos o mundo. Se a in/fluência da música e poesia mineira mais universal que há se apresenta, nas picadas abertas por monstros sagrados como Milton (onipresente), Toninho Horta (que toca em uma faixa) ou Drummond, também se apresenta o Prósperi com sua própria voz e caminhos, com suas teclas audazes que percutem não as cordas do piano, mas nossas fibras, neurônios, artérias.

Sim, habemos baladas, como a faixa título e Conta, ou Samba em sete, um compasso lunar, digamos assim, trova em toada como De Mar e de Drummond, hibridações que navegam por águas impressionistas até eventualmente as costas da península Ibérica, feito o par Vinheta da quietude/Inquietação (esta última em parceria com Edson Penha), ou a sutil brasilidade jobinianamente sincopada de Hora senhora. E claro, aquela mistura subversiva de fronteiras em que se pode reconhecer as pegadas dos sons imaginários de um certo Clube que ocupou a Esquina mais aberta do planeta, ouvida em Caminhante (com Talis Júlio) e Feira da fé, por exemplo.

Por fim, muito apropriado que a arte do álbum traga o traço extremamente humano da nossa querida Loló Weissman. É tudo, enfim, muito próprio e apropriado. E indisfarçável é a minha alegria em ter o Clayton como parceiro, com a sensação de que muitas canções ainda vamos botar nos trilhos dessa terra. Assim, pela Prosperidade da música popular brasileira, ouça. Se possível, de fone.




5 de maio de 2021

Bolacha completa - John Lennon/Plastic Ono Band edição de luxo

Acabou de sair uma caixa com a edição de luxo do primeiro disco de John Lennon em carreira solo - claro, com sua parceira de vida e música Yoko Ono, co-produzindo, e tocando, como está no título, com a Plastic Ono Band - o que representa, neste caso, uma banda que incluiu Ringo Starr, Klaus Voormann no baixo, Billy Preston nas teclas, uns pianos complementares do legendário produtor Phil Spector. Instado por mim e por outros internautas, meu caríssimo amigo Vlad Magalhães, músico profundo entendedor da obra de Lennon e dos Beatles, presença consagrada nas melhores formações de bandas ou em apresentações solo de tributo à obra dos quatro cavaleiros do Após-calipso, registrou sua apreciação do impressionante montante de mais de 7 horas de áudio. Ele gentilmente cedeu o texto, que disponibilizo aqui no Blog disparando foguetes. Ao Vlad meus cumprimentos e agradecimentos por esse minucioso relato, porque eis aí o mapa da mina. Além de tudo ele reuniu um extrato dos "melhores momentos" numa playlist aberta do Spotfy, que seguirá no corpo da postagem. Quando eu puder, pretendo traçar algumas linhas sobre o disco original, mas isso pode esperar.

Por agora, deleitem-se. 

"Atendendo a pedidos" aí vão minhas impressões sobre PLASTIC ONO BAND (THE ULTIMATE COLLECTION)
 Por Vladimir Magalhães 
DISC 1
é o disco oficial + 3 singles lançados na época, remasterizados. Sem grandes surpresas, diferente das novas mixagens dos Beatles que alteraram bastante vários elementos (nem sempre pra melhor). Esse foi bem mais fiel à mixagem original, claro, com mais definição na voz e nos instrumentos, como se tivessem dado uma lustrada em tudo, trazendo os graves para o século XXI.
Destaques: MOTHER - sem ruído do vinil usado na gravação do sino
Vocais de ISOLATION, REMEMBER e GOD bem mais na cara do que na mixagem original. Arrepiantes.
DISC 2
Última versão das músicas antes das versões oficiais, em suas formas definidas, com alguns pequenos detalhes que foram minimalisticamente lapidados no final
Destaques:
WORKING CLASS HERO - take 1
REMEMBER - parece ter sido a que Ringo e Klaus tiveram mais dificuldade de encontrar a melhor levada, que afinal conseguiram. Também sua introdução e final parecem ter sido conseguidos aos 48 do segundo tempo.
LOVE - levada de violão nitidamente inspirada em Yesterday
DISC 3
Destaques:
MOTHER - arrepiante vocal isolado
COLD TURKEY - sem o vocal, guitarra solo com mais feedback, num dos solos mais subestimados do rock'n'roll
Destaque negativo
REMEMBER: um efeito muito irritante (talvez uma jaw-harp). parecendo uma mola ou uma bola de desenho animado, felizmente não saiu na versão final
DISC 4
mixagens cruas das versões finais, exceto I FOUND OUT que tem uma parte a mais, cortada depois
Destaques:
GOD: a voz rouca sem o "slap echo"
GIVE PEACE A CHANCE: versão estendida
DISC 5
O mais interessante, com ensaios e conversas
Destaques:
Trechos de LOVE e LOOK AT ME com baixo e bateria
Hilária introdução de GOD
Tocante comentário de John a respeito de MY MUMMY'S DEAD
John dando instruções para a galera em GIVE PEACE A CHANCE fazendo dueto e respondendo a si mesmo no overdub
INSTANT KARMA - o ensaio mais arrepiante, com a participação de George Harrison na guitarra, que acabou sendo excluída na versão oficial.
DISC 6
demos caseiras e de estúdio
Destaques:
LOVE - harmonia diferente na parte B, demo caseira, com tremolo
WELL WELL WELL - demo caseira acústica, sem a gritaria
INSTANT KARMA - com a guitarra de Harrison e Alan White definindo as rodadas de bateria
DISC 7
jams, covers, demos, a maioria feita de forma bem avacalhada
AIN'T THAT A SHAME - no final John brinca falando "Cookie!", imitando um "monstro" do seriado infantil Vila Sésamo (na versão oficial do disco ele fala isso no solo de Hold On, mas só agora fui descobrir esse detalhe que eu nunca entendia rsrs parece que ele assistia bastante pois fala isso em outras demos desse disco)
LOST JOHN canção de Lonnie Donegan, que popularizou o skiffle na Inglaterra em meados da década de 50, levando milhares de garotos a comprarem violões, entre eles os jovens Beatles. John fica repetindo a primeira estrofe e o refrão, parece que esquentando a voz para gravar.
I DON'T WANT TO BE A SOLDIER MAMA, I DON'T WANNA DIE música sairia no disco seguinte, Imagine
DISC 8
mixagens cruas de out-takes
Destaque:
MOTHER - com violão em vez de piano, parece ter sido a mais gravada para o disco, esse é o take 91!
Criei uma playlist no Spotify chamada "POBTUC Destaques" (do disco 2 ao 8 ) caso alguém queira conferir, uma boa introdução de 1:30h para quem não quiser encarar as 7:30h de material rsrs 
 
 
 
Quem não for assim tão beatlemaniaco vá direto ao disco 1 e procure saber o que está sendo cantado nesse disco histórico, filosófico e minimalista.
Último comentário: podiam ter dividido o disco 7 em 2, aí seriam 9 discos ao todo - Lennon aprovaria com entusiasmo rsrs
I just gotta tell you goodbye!


2 de julho de 2020

Bolacha Completa - Djun (2012), de Mateus Bahiense

DJUN (2012) – disco de cabeceira que me acompanha a uns bons 7 ou 8 anos, sempre renovando o astral do ambiente sonoro com seus ritmos cadenciados e timbres mui bien selecionados – trazendo cores e sabores african@s, american@s, brasileir@s.

De fato, não é comum encontrar álbuns inteiros dedicados à percussão, mesmo falando somente de música instrumental. Em Minas Gerais, no Brasil e mesmo mundo afora, esse tipo de proposta é algo raro e, por isso mesmo, tem um sabor especial – daquelas ervas e temperos que nem todo mundo conhece e muitas vezes é difícil encontrar. Pois aí está: um achado. DJUN é um trabalho ímpar, sob vários pontos de vista.

Um grupo de músicos – uma roda de Djembê – liderados pelo grande amigo @mateus_bah parceiro já de longa data – apresenta neste disco um belo repertório de ritmos (dunumbé, djansa, balakulanjan, koukou, fankani, soli, n’goron) dançantes (por vezes hipnóticos) e texturas bem traçadas pelo diálogo/suporte dos presentes. E por falar em instrumentos... na maior parte das faixas predominam tambores – os potentes Djembês – tecendo uma contínua teia de estruturas rítmicas sobre as quais se sobrepõem motivos, comentários e solos. Além dos tambores, temos aqui também espaço privilegiado para um meta-instrumento, nobre filho da linhagem afro-brasileira: o Berimbau (aqui em versões diversas: gunga, médio e ‘viola’). Coral de Berimbaus, Orquestra de Tambores, o que mais tá faltando nessa caldeirada? O line-up se atualiza com a bateria firme e enxuta do Mateus Bahiense, instrumento de geração bem mais recente na diáspora afro-americana, e modernizando ainda mais a proposta, o líder do grupo também toca um instrumento digital/midi – o wavedrum – mostrando que ter raízes não significa negar outras ramificações e frutos!

Quem fecha a tampa dessa panela tão rica de sabores é um instrumento singular maravilhoso – e definitivamente africano – a KORA, uma harpa de 21 cordas, muito presente em todo oeste do continente negro, Guiné, Burkina Faso, Mali e Senegal. O músico senegalês Zal Idrissa Sissokho @zalsissokho – toca a luminosa Kora em apenas uma faixa do disco mas – na minha opinião – arremata com chave de ouro a bela proposta do álbum, nos levando às alturas mágicas de seu som modal, potencializando a raiz rítmica contagiante da base viva do grupo.

DJUN – mais uma gema preciosa das Minas Gerais – é mais um daqueles trabalhos musicais de qualidade que nem sempre aparecem na superfície do acesso midiático. Pra encontrar esse tipo de música é necessário farejar, sondar, cavar, para então desfrutar dessa variedade tão ímpar da nossa rica cultura musical. Vida longa à roda de tambores, motor vivo da nossa africanidade musical! Por falar em motor, acho que esse disco é perfeito pra ouvir no carro, trazendo fôlego e ritmo pro trânsito urbano ou – melhor – embalando paisagens e imagens poéticas na estrada da viagem Brasil/Mundo afora...

Por Felipe José


19 de abril de 2020

Bolacha completa - Terra, vento, caminho (1977), de Dércio Marques

Fico muito contente em inaugurar uma nova fase da coluna "Bolacha completa", trazendo como colunista convidado meu caríssimo e admirado Felipe José, compositor, multi-instrumentista e professor do curso de Música da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). Quem quiser pode sacar melhor o trabalho e o currículo dessa grande figura. Estamos ainda desenhando uma proposta, mas podem esperar coisa boa a caminho, como séries temáticas dentro da coluna. Por agora fiquem com a postagem de estreia, que foi a motivação para esse convite. Vamos longe!


-- V --


Um disco de música forte e misteriosa, do mineiro (de Uberlândia) filho de Uruguaio, cabra forte e lamentavelmente muito pouco conhecido: Dércio Marques. Nesse álbum, o primeiro da carreira de #derciomarques - lançado em 1977 - aparecem canções de #atahualpayupanqui e também de #elomarfigueiramelo, além de canções autorais. Gosto muito dos arranjos e da força dessa música que não sei nomear... um misto de canção simples com música devocional pagã e mineiridade clássica (leia-se #sacroprofana). Uma beleza pra guardar direitinho no peito de gente humana.
Tive a sorte desse disco aparecer na minha mão um certo dia desavisadamente num sebo em São João del Rei, me me deleitei com um teor musical de tipo enigmático pra mim. Depois vim a saber, pela minha amiga @deatrancoso_oficial - também figura forte enigmática - que o tal Dércio era ligado à natureza e aos vegetais, e dei ainda mais valor à esse disco que conjuga coisas simples e poderosas: TERRA, VENTO, CAMINHO. De lá pra cá o escuto a tempos esparsos, sem me deter demasiado, mas sempre, a cada encontro, tenho uma sensação de força profunda, coisa de raiz de árvore grande. #minasgerais #musicamineira #musicabrasileira #violao #songs #latinoamerica #sertao #brasil #brasilprofundo #musicaboa #voz #ohminasgerais

Por Felipe José 

 

21 de março de 2018

Bolacha Completa - Minas (1975)

Esse disco fundamental para a história da música brasileira não poderia nunca faltar na coluna Bolacha Completa. Calhou do meu parceiro Pablo Castro escrever o texto que segue e, com o imenso poder de síntese que afinal é mister do cantautor, ainda mais no caso dos bons, como ele, resolver a charada, o enigma da esfinge como certa feita o crítico Renato Moraes denominou Milton. Segue:







"O espetacular disco Minas é o melhor de sua carreira. Vozerios ancestrais assombram o território telúrico daquele vinil. Desde os meninos cantando nanananananana até o coro meio informal que estava Conversando no Bar, depois de um Beijo Partido. A maior das maravilhas de Ponta de Areia, lembrando o que já foi. Uma cidade que é moderna e sonha seus metais traz no lombo , no seu ombro carregando a lona suja do grande circo humano. A costela que vai se quebrar, o mistério que vai se mostrar, coração partido, pena , que pena, que coisa bonita. a palavra que nunca foi dita. Caminho de ferro, velho maquinista com seu boné, mandaram arrancar. Grande é grande a tua coragem , o teu amor. O ouro da mina virou veneno, e aquela criança ali sentada. Dizia o cego ao seu filho.
O nível do adensamento enigmático das palavras e dos sons desse disco ainda me deixam muito impressionado. Um disco que tem cor, sabor e cheiro. Vai pra além do arco das canções, pra além de cada acorde, pra além da elegância, pra além da fluência melódica, pra além das progressões harmônicas. A voz de Bituca vem do alto da mais alta montanha.
Música total e absolutamente imortal.
Milton Nascimento ... mais Nelson Ângelo, Toninho Horta, Beto Guedes, Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas, Novelli, Paulinho Braga. Obrigado eternamente. Ronaldo Bastos, Márcio Borges e Fernando Brant. " Pablo Castro




Para o leitor completar a audição com mais imersão sobre o disco, faço algumas indicações de leitura e incluo links e materiais:

Lista as 30 mais geniais, em que o Pablo aborda várias das canções do disco.

Texto O ouro da mina virou veneno, em que abordo a canção Simples.


Texto Saudade dos aviões, em que homenageio Fernando Brant e trato da canção Saudade dos aviões da Panair (conversando no bar).

Episódio do programa O som do vinil, de Charles Gavin, em que o disco da vez é justamente Minas.

20 de março de 2018

Bolacha completa - Elis (1966)

Ouvi no almoço ao disco "Elis" que a pimentinha gravou em 1966. Baita disco, perfeito da seleção de repertório à performance dela e de quem tocou no disco, além dos arranjos do Chiquinho de Moraes, etc. É notável que Elis fez ali um retrato muito completo do cenário da MPB naquele momento, gravando Gil, Caetano, Chico, Milton, Edu (incluindo duas parcerias com Torquato), irmãos Vale , Francis Hime (com Vinícius), mais um tributo à velha guarda com Carinhoso dos grandes Pixinguinha e João de Barro. Se de um lado essa fotografia ajuda a compreender o impacto posterior da explosão tropicalista , abrindo novas frentes para a criação na música brasileira, de outro  também abre os ouvidos para a evidências de que ela na prática não foi toda a ruptura que alardeou no discurso, e que outros caminhos inovadores que já estavam sendo igualmente abertos acabariam por criar um centro de gravidade que foi mais denso que qualquer movimento de vanguarda em particular, o que ajuda a explicar como a Tropicália acabou reabsorvida pela galáxia MPB nos anos 1970. 

É uma questão que venho trabalhando faz tempo mas ainda estou refinando meus argumentos. Quando publiquei “Vou cantar para ver se vai valer”: a configuração da categoria MPB no repertório das intérpretes (1964-1967) [um resumo do artigo aqui no blog] [acesso ao texto completo] expus algumas observações desde uma parte da minha tese, baseando-me no estudo dos repertórios e gravações de discos de intérpretes como Nara Leão, Flora Purim e claro, Elis. Tem um trechinho que toca justamente neste disco aqui, e insiro abaixo:

Vale lembrar que Edu ainda dividiria um disco com Maria Bethânia pelo selo Elenco em 1966, trazendo, entre outras canções, Candeias , que Gal gravaria em seu disco de estreia, Veleiro e Pra dizer adeus (ambas com Torquato Neto) que Elis gravaria no mesmo ano em seu LP seguinte, Elis. Neste mesmo disco, a cantora gravou composições de Caetano e Gil. Exatamente as duas primeiras - Roda (G.Gil/ João Augusto) e Samba em paz (C. Veloso) exaltam o povo e posicionam-se favoravelmente a uma transformação social da qual o próprio samba - como expressão síntese do “popular” – é protagonista. Diz a canção de Caetano: “O samba vai vencer/ quando o povo perceber/ que é o dono da jogada”. Em tom de desafio, Roda cobra engajamento e preconiza a justiça social: “(...) Quero ver quem vai ficar/ quero ver quem vai sair (...) Se lá embaixo há igualdade/ Aqui em cima há de haver (...)”.

São canções marcantes das quais vale lembrar porque muitas vezes esse engajamento político no mesmo esquema de tantas canções ais quais depois a Tropicália se opôs costumam ser negligenciadas nas apreciações sobre as obras e trajetórias dos compositores. Mas para mim a canção que se sobressai em termos de inovação musical e poética é Lunik 9 de Gil, com suas várias partes e um discurso embaralhando o técnico/acadêmico, o filosófico, o noticiário de jornal,  e o tradicional comentário das ruas que foi depois se tornando uma das marcas registradas da autoria híbrida de Gil.


Lunik 9 
Poetas, seresteiros, namorados, correi 
É chegada a hora de escrever e cantar 
Talvez as derradeiras noites de luar 

Momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da ciência viva 
Afirmação do homem normal, gradativa sobre o universo natural 
Sei lá que mais 
Ah, sim! Os místicos também profetizando em tudo o fim do mundo 
E em tudo o início dos tempos do além 
Em cada consciência, em todos os confins 
Da nova guerra ouvem-se os clarins 

Guerra diferente das tradicionais, guerra de astronautas nos espaços siderais 
E tudo isso em meio às discussões, 
muitos palpites, mil opiniões 
Um fato só já existe que ninguém pode negar, 
7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já! 

E lá se foi o homem conquistar os mundos lá se foi 
Lá se foi buscando a esperança que aqui já se foi 
Nos jornais, manchetes, sensação, reportagens, fotos, conclusão: 

A lua foi alcançada afinal, muito bem, confesso que estou contente também 
A mim me resta disso tudo uma tristeza só 
Talvez não tenha mais luar pra clarear minha canção 
O que será do verso sem luar? 

O que será do mar, da flor, do violão? 

Tenho pensado tanto, mas nem sei 

Poetas, seresteiros, namorados, correi 
É chegada a hora de escrever e cantar 
Talvez as derradeiras noites de luar

Para ouvir o álbum completo: aqui.


27 de dezembro de 2017

Eldorado Subterrâneo da Canção - Ponteiros

Meu parceiro Pablo Castro, assíduo escrevinhador dessa página, depois de longo hiato volta com a série "Eldorado", agora trazendo também análises de bolachas completas, remetendo assim a outra seção consagrada aqui do blog. 


Vou aproveitar a última semana do ano e fazer algo que tinha me prometido: escutar atentamente os discos lançados em 2017, e falar um pouco sobre alguns deles.
Começando pelo magnífico disco de estréia da compositora, pianista e cantora Pamelli Marafon , chamado Ponteiros. Uma obra inusitada que apresenta uma criadora inquieta, possuidora do ofício de musicista com notável domínio do piano, dos arranjos , das harmonias intrincadas e inventivas, e de melodias às vezes simples, às vezes cromáticas, mas sempre cuidadosas. Percebe-se em Pamelli a filiação àquele inominado gênero de cancionistas, que , embora munidos até os dentes de idéias puramente musicais, conseguem achar o fio condutor da letra como norte tanto para a melodia quanto para a harmonia.

Pamelli tem uma assinatura tanto como letrista quanto como compositora, e a relação dos dois vetores é muito consistente, com a invenção formal como tônica das 10 faixas, 9 canções e um choro instrumental altamente intrincado que prova a veia de arquiteta musical da paulistana que vive em Minas.

"Viver é se perder no emaranhado de você no sincopado de um desejo arbitrário" , como diz a performática " Eu Tenho Problemas com Regras" , alternando um roquinho 6/8 com um baião que, na aceleração da melodia, faz com que a conclusão de uma reflexão que tende ao lirismo se resolva numa condensação de sentido que figura, de algum modo , como resposta às indagações de inadequação do seu eu lírico.


Tango da Lua seja talvez a canção mais redonda, mais "convencional", com melodia envolvente, e sessões mais ortodoxas de A, B, introdução, coda, etc. " Onda de azar mais sete vida / por seis vidas procurei você / nem na sete encontrei
dou risada na oitava sendo a mais feliz escrava do meu reino coração" diz a letra que projeta um sonho lúdico um sentimento romântico, tão raro hoje entre cantautoras : "num atalho do caminho lá pra irará / tinha o bosque solidão e você o anjo amigo que roubou minha alma e coração meu canto meu sonhar
fez da vida um samba bom e me deu anel de vidro pra sonhar" .


Aliás, a escrita de Pamelli não poupa a expressão "minha alma", ícone do lirismo que parece ter sido varrido para debaixo do tapete de nosso espírito do tempo. Assim ela fala de Minas Gerais, onde, "não sei por que é tão bonito / sobe desce o morro esse chão deu tanto ouro / sobe desce a vida na ladeira da rotina trabalhar" , e muito sinceramente declara que "canção é o que liberta a minha alma / todo dia é dia de labuta e poesia
faz rima de dor com alegria pra poder continuar".


A canção Água, que fecha o álbum, me lembra do conceito de "Think About Your Troubles", de Harry Nilsson, que fala do ciclo alimentar; Pamelli fecha o ciclo da água sem poupar seus usos mais sujos, se distanciando de qualquer possível idealização purista da mãe água. O refrão, que podia ser cantado mais vezes, reza : " água lava a sujeira do lugar / mas quem que vai lavar água do mar? " .

A sonoridade do disco tende à canção de câmara, tão profícua no que chamo de Eldorado Subterrâneo da Canção Mineira, especialmente no trabalho de nomes como Rafael Martini, Rafael Macedo, Alexandre Andrés, com a preferência pelas madeiras, flautas, clarinetes, também acordeons, sempre com o piano de Pamelli para dar o fio, e com as cordas preciosas do parceiro e arranjador Tabajara Belo, que arrebenta nos violões, guitarras e bandolins e arranjos. A bateria e a percussão são escassas no disco, privilegiando os sutis mosaicos das alturas.

Acho lindo mesmo que uma cantora e compositora arrojada como Pamelli exista assim, meio que silenciosamente no Brasil, fazendo um disco como esse meio que sem ser notado. Porque o que ela revela é uma grande inventividade justamente no âmago do que tem sido sistematicamente boicotado na cultura musical do Brasil: autenticidade e sinceridade nas letras, criatividade na música, fruto de um mergulho profundo nesse limbo que é fazer canção com esse grau de artesania, em português. O piano dela fala muito , e não a deixa mentir ! 

Nota do Editor:
O disco pode ser ouvido pelo Spotfy [ouça aqui]
Posto aqui também vídeos com algumas das canções que figuram no disco,
com outras roupagens. 






29 de setembro de 2017

Bolacha completa - Refavela (1977) - Gilberto Gil

Aproveitando o ensejo do show de reapresentação do álbum Refavela de Gilberto Gil, por ocasião dos 40 anos de sua gravação, insiro aqui a entrevista que meu parceiro Pablo Castro concedeu à Rede Minas comentando o discos como um todo e suas canções.


É uma ambição antiga produzir conteúdo em vídeo para este blog, o que por enquanto tem se mostrado inviável, mas essa carona veio muito a calhar. 








Como sempre a sessão Bolacha Completa traz o link para a audição do disco, informando que não detém direitos nem hospeda conteúdos, ficando totalmente à disposição para atender qualquer determinação dos respectivos proprietários.

11 de julho de 2016

Bolacha completa especial - A música século XX de Jocy

No final de 2015 saiu essa matéria no blog do IMS  (que vem fazendo um belo trabalho de preservação e divulgação de nossa memória musical), muito comentada entre vários amigos cantautores da cena belorizontina. Um disco inusitado, ímpar, e que escapara a ouvidos conhecedores e atentos. Eu mesmo não ouvira falar dele. E ouvir as músicas, disponíveis via soundcloud, só aumenta o espanto. Decidi fazer essa postagem apenas com o intuito reter algo daquele espanto, pois o texto de André Kangussu [completo, aqui] cumpre a incumbência de modo tão completo que no momento não consigo pensar em nada para acrescentar. Destaco alguns trechos:

"Aos 23, idade em que lançou o disco, Jocy já era uma pianista celebrada, tendo sido solista na Orquestra Sinfônica Brasileira e se apresentado na Europa e nos Estados Unidos, sempre sob a regência de seu então marido, o maestro Eleazar de Carvalho. Sua formação nada tinha a ver com música popular, e o álbum foi sua única obra nesse campo. Suas composições futuras seriam todas eruditas e de alto teor experimental.(...)

A música século XX se posiciona de modo ambíguo em relação à bossa: ora se conforma a ela, ora a toma como um estilo a ser revisto, parodiado e deformado. (...)

Ao comentar o escasso reconhecimento de sua obra, Jocy aponta o desprestígio que enfrentavam e ainda enfrentam as compositoras mulheres, em quem, diz, só se reconhece a utilidade de musa ou de intérprete. A esse propósito, ela conta em seu livro Diálogo com cartas (SESI, 2014), recente vencedor do prêmio Jabuti, que sua peça Apague meu spotlight, de 1961, "representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil", mas que foi "ignorada até hoje por grande parte dos compositores 'eletroacústicos' brasileiros". Segue dizendo que é mais comum encontrar referências no exterior de sua participação entre os pioneiros de multimídia nos Estados Unidos do que nos "compêndios de música contemporânea brasileira assinados pela inteligência acadêmica masculina do país".
A década de 1960 foi decisiva em nossa música. É tentador imaginar a carreira que Jocy teria construído em diálogo com os músicos dessa geração se houvesse prosseguido com a canção popular.
Sobrou-nos, de qualquer modo, um disco. É preciso propor que ele seja reconhecido não só pelo seu diálogo com a bossa nova ou pelo seu caráter de exceção e curiosidade histórica, mas como um álbum de música popular pleno."


20 de fevereiro de 2016

Bolacha completa - O canto dos escravos (1982) Clementina de Jesus, Tia Doca, Geraldo Filme

Em um desses volteios casuais pelas plagas eletrônicas, acabei topando com a reprodução desse disco completo no You Tube, provavelmente tendo como matriz o CD da obra, que foi lançado, pelo que pude apurar, em 2003, pelo Estúdio Eldorado (gravadora que veio a converter-se em selo discográfico). O universo dos cantos de trabalho, tão vasto quanto o próprio planeta terra e sua história, não cabe nessa postagem. É tão somente uma primeira incursão, à espera das próximas. Como encontrei boas resenhas e material farto, optei por reproduzir os trechos mais relevantes, inserindo links para os leitores que desejarem continuar a leitura nas fontes originais. 

Texto de Mauro Dias, em Agenda do Samba-Choro [completo]

Um dos títulos mais importantes e corajosos da fonografia brasileira acaba de chegar, 21 anos depois do lançamento em elepê, ao formato digital. Trata-se de O Canto dos Escravos (dentro da série Memória  Eldorado), coleção de 14 cantos da série recolhida por Aires da Mata Machado Filho no fim dos anos 20 do século passado, em São João da Chapada, município de Diamantina, Minas Gerais. Interpretando os cantos, Tia Doca, pastora da Velha Guarda da Portela, Geraldo Filme, um dos nomes fundamentais do samba paulistano, e Clementina de Jesus, a rainha negra da voz, como a definiram Moacyr Luz e Aldir Blanc.(...)
Marcus Pereira era um publicitário amante da música que criou o selo para dar brindes aos seus clientes, nos fins de ano. Aos poucos, abandou a rendosa publicidade, na qual era muito bem-sucedido, e ficou só com a gravadora, que viveu sempre grandes dificuldades financeiras. (...) Os que se juntaram a ele tomaram o exemplo e, posteriormente, em outrosselos, deram, de alguma forma, prosseguimento ao seu trabalho,eventualmente, ampliando-lhe o universo. A Eldorado tinha e tem, sim, orientação comercial, mas com extremo cuidado na seleção de seus títulos (Cartola, Nelson Sargento, Geraldo Filme, Adoniran Barbosa fizeram suas estréias em disco por ela), e sua iniciativa mais ousada terá sido esse O Canto dos Escravos, que há muitos anos estava fora de catálogo e era objeto de disputa entre colecionadores, estudiosos e amantes da cultura brasileira.

(...) Vissungos - Tais cantos são chamados vissungos, palavra que vem do umbundo ovisungo (cantiga, cântico), conforme ensina Nei Lopes em seu Dicionário Banto do Brasil. Já era plano de Aires da Mata Machado recolher os vissungos e reunir o vocabulário e a gramática da língua dos negros benguelas. Teve pouco êxito na primeira investida; na segunda, ele e seu colaborador Araújo Sobrinho ouviram de um Seu Tameirão 200 palavras e algumas cantigas; adiante, surgiram outros cantadores que sabiam letra, música e tradução.

(...) O disco, de uma beleza crua, não tem instrumentos harmônicos. Acompanham os três cantores a percussão de troncos, xequerês, enxadas, cabaças, atabaques, agogôs, ganzás, caxixis e afoxés tocados por Djalma Corrêa, Papete e Don Bira. Os intérpretes são figuras de sabida importância na divulgação esustentação da cultura brasileira de origem africana. Geraldo Filme, grande compositor, cantor de vozeirão profundo, foi, na definição de Osvaldinho da Cuíca, o grande articulador, a "cabeça pensante" do samba paulistano. Tia Doca, nascida Jilçaria Cruz Costa, manteve por décadas um pagode dominical que ajudou a manter vivo o samba de raiz carioca; sua participação no disco foi sugerida por Clementina de Jesus, que foi
revelada ao mundo aos 64 anos, depois de ouvida, num botequim da Lapa, centro do Rio, por Hermínio Bello de Carvalho. 

Trechos de entrevista de Marcus Pereira, citados no jornal Hora do Povo [completo]

Para Marcus Vinícius de Andrade, “a importância do disco está no fato dele ser o primeiro registro sonoro da música do tempo da escravidão. Apesar de ser um país essencialmente negro, o Brasil nunca tratou bem a sua história musical, daí pouco se conhecer sobre os antepassados do samba, do jongo, do maxixe e de outros gêneros musicais que os negros nos legaram”. (...) “Quando produzi o disco, minha intenção foi exatamente tentar buscar essa arqueologia sonora. Para isso, entre outras coisas, na medida do possível, tentei reconstituir em estúdio o clima dos antigos batuques das senzalas e terreiros e também isso conferiu importância ao disco” (...) “O canto dos Escravos foi a última gravação de Clementina e fico feliz em ver que ela se despediu em grande estilo, com um disco que hoje é referência obrigatória na discografia brasileira”, afirma Marcus Vinícius. Marcus Vinícius conta que, pelo fato de Clementina já estar muito velhinha na época, a feitura do disco foi “uma espécie de gravação pelo avesso, pois começou com a voz solo final”. Ele conta que inventou um sistema para poder gravá-la, já que ela já não conseguia decorar mais e via com dificuldade: “mandei escrever o texto dos vissungos em cartazes com letras bem grandes. Em seguida, ela ensaiava um determinado trecho com o Papete e, em seguida, nós gravávamos - só a voz dela e o atabaque. Depois peguei todos os trechos gravados por ela, fiz a edição de cada música dentro do respectivo andamento e só a partir daí comecei a colocar os outros instrumentos”. 
Texto de Aires da Mata Machado, reproduzido no encarte do disco em 1982 e digitado no canal de You Tube de Fred Hubner

Tomei notas apressadas, que vim depois a rejeitar. E, nas curtas estadas naquele aprazível e tranquilo arraial, nunca deixei de observar alguma coisa sobre os tais cantos de trabalho, cuja importância foi crescendo em meu conceito, à medida que fui adquirindo conhecimentos novos.

Entendi, posteriormente, de realizar, de vez, o velho plano de recolher os "vissungos", como lhes chamam, reunindo ainda o vocabulário e a gramática da "língua de banguela", certamente transformada em nosso meio.

Quase nada consegui na primeira investida. Lá ficava, porém, o meu colaborador, Araújo Sobrinho, com instruções minhas.

Voltando, mais tarde, encontrei novidades: um vocabulário de duzentas palavras, colhidas na boca de "seu" Tameirão, algumas cantigas e a notícia do falecimento do nosso prestimoso amigo.

Fiquei pelos cabelos, imaginando que tudo estava perdido. Mas não tardaram em aparecer outros conhecedores. E, depois de peripécias que não vêm ao caso, conseguimos, com um outro cantador, letra, música e tradução, ou antes "fundamento", como eles dizem.

Não sei se seremos felizes com as notas e reflexões. O certo, porém, é que só o material, que tivemos a sorte de desencavar em nossa mineração, bastaria para justificar o aparecimento de um livro.

À colheita do material seguiu-se o exame da bibliografia sobre o assunto. Compulsando livros de linguistas e etnógrafos, tivemos ensejo de estabelecer confrontos e reforçar hipóteses. Muitas vezes, vimos a autenticidade dos modestos achados e a plausibilidade das reflexões confirmadas pelas contribuições dos eminentes estudiosos que antes de nós lavraram o terreno. Com isso pudemos evitar, quanto possível, generalizações apressadas, cotejos fantasiosos e afirmações apriorísticas. Se o não conseguimos, não foi por falta de necessária diligência.

AIRES DA MATA MACHADO FILHO

O texto acima foi publicado como introdução do livro "O Negro e o garimpo em Minas Gerais (Editora José Olímpio), de Aires da Mata Machado Filho, sendo aqui reproduzido com a permissão do autor, que igualmente autorizou o Estúdio Eldorado a realizar a gravação de quatorze das sessenta e cinco partituras registradas naquela obra.