Assisti hoje, dentro da excelente mostra de cinema nacional recente realizada no Cine Humberto Mauro, ao documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", dirigido por Marcelo Gomes [entrevista], certamente mais reconhecido por Cinema, aspirinas e urubus. A narrativa crua - mas não nua, exatamente - de Toritama, cidade de 40 mil habitantes no agreste pernambucano responsável por 20% da produção nacional de jeans, emanando da boca de seus protagonistas, ainda que pontuada por uma narração em off que vai descrevendo um retrato contrastante dessa 'china com um carnaval no meio' com aquela cidade pacata de interior de que o cineasta se lembra de ter visitado com o pai. O título, pinçado da canção de Chico que por sua vez foi trilha original para o filme de Cacá Diegues,Quando o carnaval chegar, de 1972 [aqui para ver o filme e aqui para o trecho com a canção]. O diretor também lança mão de outras citações e procedimento metanarrativos, como por exemplo interromper o fluxo da narrativa e dirigir-se ao espectador para discutir a sua própria construção, demonstrando como a alteração do som (quase todo o tempo um uso brilhante da banda sonora tomada pelo recorrente e ensurdecedor barulho de máquinas de costura e outros aparelhos usados nas facções, fabriquetas de fundo de quintal que dominam a paisagem urbana de Toritama - uma das traduções do tupi poderia ser "terra da felicidade"), ou do ângulo da filmagem. Não tenho um domínio do repertório de documentários brasileiros sobre a questão do trabalho, mas claro que foi inevitável uma lembrança de Ilha das flores, porém me parece que "Estou me guardando" teve o cuidado de ser menos didático, jornalístico ou panfletário, nos deixando cada vez mais atônitos ante a convicção empreendedorista da grande maioria dos moradores que narram diferentes versões do "toritaman way of life", que é sobretudo marcado pelo imediatismo total - daí o lance provocativo com o título e a canção - totalmente afinado com uma perspectiva ultraliberal. Tal realismo, sem tutela da fala dos trabalhadores autônomos que se tornaram escravos de sua própria versão agreste de meritocracia, pontuado aqui e ali com as tiradas e criatividade de um povo que faz do improviso seu modo de viver e expressar, torna "Estou me guardando" um retrato ainda mais acurado do Brasil de hoje que Bacurau. E muito menos palatável.
Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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21 de dezembro de 2019
5 de maio de 2019
1a. c/ a 7a.: John & Yoko: above us only sky - Só o céu por testemunha
Acabei de assistir o documentário John & Yoko: above us only sky - Só o céu por testemunha. À primeira vista, pode até parecer redundante levando-se em conta a infindável massa de material audiovisual que já foi produzida, começando pelo próprio filme Imagine que acompanhou a produção do álbum homônimo, passando por outros "making offs" e documentários de cunho biográfico que inevitavelmente abordam o mesmo assunto. Com tudo isso, a produção em pauta aqui tenta trazer novos materiais de arquivo e depoimentos que possam representar algum ganho, mesmo para os beatlemaníacos mais bem abastecidos que se encontram por aí. E, ao menos em parte, alcance esse objetivo, com entrevistas mais recentes e bom aproveitamento de uma grande massa documental que foi gerada à época. Destaque para os testemunhos de músicos como Klauss Voormann e Alan White, do ativista e escritor Tariq Ali, de Julian Lennon e de engenheiro de som, fotógrafos e outras pessoas que estavam atuando nos bastidores e entorno do processo de gravação. Considerando as produções anteriores, não me pareceu que esta traz grandes novidades sobre os aspectos criativos do ponto de vista musical mesmo.
Como historiador e principalmente, como alguém atento à produção da memória social, vou ressaltar alguns aspectos que subjazem às recorrentes retomadas de 'objetos' e 'enredos' no cenário da indústria cultural contemporânea. Um misto de falta de assunto, renitente nostalgia e racionalidade mercadológica se combinam na persistência em polir reiteradamente um mesmo diamante. Se não se resume a isso, inegavelmente a indústria cultural tem na sua lógica um apreço pela redundância, tanto na forma quanto no conteúdo. E essa engrenagem funciona até mesmo para extrair mais alguns quilates de ouro até de um trabalho que de alguma forma almeja outro registro, como era o de Lennon e Yoko.
Precisamos saber olhar para esse acúmulo, entendendo que diferentes intenções e camadas de lembranças e contextos vão se sedimentando, se acomodando ao tempo, às mudanças de quem detém direitos e meios, e ao próprio público. De fato, cabe a reflexão que o historiador Jacques LeGoff propos através do conceito de documento/monumento. Se escolhermos como fio condutor de nossa análise de "Só o céu por testemunha" a abordagem sobre a canção título, vamos ver como existe a intenção de consagrar a recente atribuição de crédito de autoria de Yoko [aqui uma matéria que explicita, inclusive, algumas razões legais por trás dessa questão]. O argumento usado no ganho de causa é repetido exaustivamente, com aparições do livro Grapefruit [aqui] e do trecho de áudio da entrevista em que John alega que não teria dado à companheira o crédito devido anteriormente. Essa querela poderia ir mais longe, e sobre ela já me posicionei, aqui vou apenas resumir que: a) inspiração não é o bastante para caracterizar crédito autoral; b) Lennon não tomou nenhuma providência legal no tempo em que deu a declaração. Não sou dos cismados que resolvem transformar Yoko Ono em vilã, e reconheço que tem seus méritos como artista, ainda que o próprio documentário sirva também para relativizá-los quanto a questão propriamente musical e mostrar bem como ela tinha um bom entendimento dos códigos que regiam a lógica dos happenings vanguardistas da virado dos anos 1960-70s. O espectador vai reparar como ela adora colocar a palavra "conceitual" no meio de tudo. O britânico canal 4, que encomendou a produção, parece querer encerrar de vez qualquer rusga com a japonesa, e faz isso tão ostensivamente que alguns depoimentos até servem a um projetinho da Yoko de fazer o mundo achar que o John foi meio boneco de ventríloquo dela.
Seria possível fazer um longo inventário das arestas aparadas ao longo do documentário, deixando evidente a intenção de tirar fora quase toda inconstância, inquietude e temperamento forte que marcam a personalidade de Lennon. Para os conhecedores da figura isso fica evidente, para a audiência que tirar daí sua primeira impressão ele parecerá bem mais manso, gentil. O exemplo mais forte deve ser a preocupação em polir sua imagem de pai no que diz respeito a Julian, mostrando cenas de brincadeira de menino, de atenção e combinando com o testemunho mais acomodado e resolvido do filho no presente, que só muito indiretamente remete à dificuldade do relacionamento dos dois, que já foi mais do que exposta em muitas outras ocasiões. É natural que Julian agora, mais maduro, queira dar à imagem de John como seu pai uma versão mais solar que sombria, e o que cabe à crítica é justamente detectar essa forma de enredo e sua consequência para a construção da memória social. O mesmo se dá quando o documentário trata da troca de farpas entre Lennon e McCartney , ilustrada na canção How do you sleep? A briga, naquele contexto intestina entre os dois parceiros, é transformada por depoimentos pinçados a dedo em uma rusga passageiras de "irmãos".
Enfim, com um pouco mais de atenção vale ver o documentário sob a ótica dessa crítica da construção social da memória, o que certamente não tira o interesse e o prazer de acompanhar a feitura do disco e mais um recorte que mostra outro ângulo do casal Lennon & Ono, cuja parceria artística merece mesmo mais alguns capítulos. Imagine, canção do século segundo a Associação Nacional dos editores musicais dos EUA, continua atual.
Como historiador e principalmente, como alguém atento à produção da memória social, vou ressaltar alguns aspectos que subjazem às recorrentes retomadas de 'objetos' e 'enredos' no cenário da indústria cultural contemporânea. Um misto de falta de assunto, renitente nostalgia e racionalidade mercadológica se combinam na persistência em polir reiteradamente um mesmo diamante. Se não se resume a isso, inegavelmente a indústria cultural tem na sua lógica um apreço pela redundância, tanto na forma quanto no conteúdo. E essa engrenagem funciona até mesmo para extrair mais alguns quilates de ouro até de um trabalho que de alguma forma almeja outro registro, como era o de Lennon e Yoko.
Precisamos saber olhar para esse acúmulo, entendendo que diferentes intenções e camadas de lembranças e contextos vão se sedimentando, se acomodando ao tempo, às mudanças de quem detém direitos e meios, e ao próprio público. De fato, cabe a reflexão que o historiador Jacques LeGoff propos através do conceito de documento/monumento. Se escolhermos como fio condutor de nossa análise de "Só o céu por testemunha" a abordagem sobre a canção título, vamos ver como existe a intenção de consagrar a recente atribuição de crédito de autoria de Yoko [aqui uma matéria que explicita, inclusive, algumas razões legais por trás dessa questão]. O argumento usado no ganho de causa é repetido exaustivamente, com aparições do livro Grapefruit [aqui] e do trecho de áudio da entrevista em que John alega que não teria dado à companheira o crédito devido anteriormente. Essa querela poderia ir mais longe, e sobre ela já me posicionei, aqui vou apenas resumir que: a) inspiração não é o bastante para caracterizar crédito autoral; b) Lennon não tomou nenhuma providência legal no tempo em que deu a declaração. Não sou dos cismados que resolvem transformar Yoko Ono em vilã, e reconheço que tem seus méritos como artista, ainda que o próprio documentário sirva também para relativizá-los quanto a questão propriamente musical e mostrar bem como ela tinha um bom entendimento dos códigos que regiam a lógica dos happenings vanguardistas da virado dos anos 1960-70s. O espectador vai reparar como ela adora colocar a palavra "conceitual" no meio de tudo. O britânico canal 4, que encomendou a produção, parece querer encerrar de vez qualquer rusga com a japonesa, e faz isso tão ostensivamente que alguns depoimentos até servem a um projetinho da Yoko de fazer o mundo achar que o John foi meio boneco de ventríloquo dela.
Seria possível fazer um longo inventário das arestas aparadas ao longo do documentário, deixando evidente a intenção de tirar fora quase toda inconstância, inquietude e temperamento forte que marcam a personalidade de Lennon. Para os conhecedores da figura isso fica evidente, para a audiência que tirar daí sua primeira impressão ele parecerá bem mais manso, gentil. O exemplo mais forte deve ser a preocupação em polir sua imagem de pai no que diz respeito a Julian, mostrando cenas de brincadeira de menino, de atenção e combinando com o testemunho mais acomodado e resolvido do filho no presente, que só muito indiretamente remete à dificuldade do relacionamento dos dois, que já foi mais do que exposta em muitas outras ocasiões. É natural que Julian agora, mais maduro, queira dar à imagem de John como seu pai uma versão mais solar que sombria, e o que cabe à crítica é justamente detectar essa forma de enredo e sua consequência para a construção da memória social. O mesmo se dá quando o documentário trata da troca de farpas entre Lennon e McCartney , ilustrada na canção How do you sleep? A briga, naquele contexto intestina entre os dois parceiros, é transformada por depoimentos pinçados a dedo em uma rusga passageiras de "irmãos".
Enfim, com um pouco mais de atenção vale ver o documentário sob a ótica dessa crítica da construção social da memória, o que certamente não tira o interesse e o prazer de acompanhar a feitura do disco e mais um recorte que mostra outro ângulo do casal Lennon & Ono, cuja parceria artística merece mesmo mais alguns capítulos. Imagine, canção do século segundo a Associação Nacional dos editores musicais dos EUA, continua atual.
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31 de janeiro de 2018
1a. c/ 7a. A arte carnavalizada de Glauco Rodrigues
Assisti com muito interesse ao documentário "Glauco do Brasil", sobre a vida e obra do artista brasileiro Glauco Rodrigues. Permanece ainda relativamente inexplorada academicamente falando a relação entre a música popular e as artes plásticas, especialmente se excetuarmos o caso da Tropicália. Fiquei particularmente ligado no depoimento do João Bosco remontando às artes das capas de Caça à raposa, Galos de Briga e Comissão de Frente. Em sua fala ele chama atenção para a afinidade do trabalho do artista com o repertório que vinha construindo, especialmente em parceria com Aldir Blanc, a partir do conceito de carnavalização.

Achei relevante esse apontamento para contrapor essa opção estética (na música popular e nas artes visuais) ao atual posicionamento sectário que vem sendo expresso através do entendimento raso do conceito de 'apropriação cultural'. Há uma relação entre essa diferença de concepções sobre a Cultura e a conjuntura social e política em que se apresentam. Nos anos 1960-70 havia a tentativa de imaginar um país e de gestar um projeto nacional, e nesse intuito recorria-se invariavelmente a alguma forma de mescla para embasar-se. A política e o debate cultural atuais tem gravitado em torno de outras formas de construção das identidades, por vezes supra e por vezes infra nacionais. Ocorre que muitas vezes essas formas reivindicam um grau extremo de pureza e separação, distanciando-se da possibilidade de traçar destinos comuns e visões de mundo compartilhadas. Me parece urgente retomar o fio da meada da brasilidade a partir das propostas estéticas e política desenhadas a partir do reconhecimento da hibridação cultural como nosso traço distintivo.
Achei relevante esse apontamento para contrapor essa opção estética (na música popular e nas artes visuais) ao atual posicionamento sectário que vem sendo expresso através do entendimento raso do conceito de 'apropriação cultural'. Há uma relação entre essa diferença de concepções sobre a Cultura e a conjuntura social e política em que se apresentam. Nos anos 1960-70 havia a tentativa de imaginar um país e de gestar um projeto nacional, e nesse intuito recorria-se invariavelmente a alguma forma de mescla para embasar-se. A política e o debate cultural atuais tem gravitado em torno de outras formas de construção das identidades, por vezes supra e por vezes infra nacionais. Ocorre que muitas vezes essas formas reivindicam um grau extremo de pureza e separação, distanciando-se da possibilidade de traçar destinos comuns e visões de mundo compartilhadas. Me parece urgente retomar o fio da meada da brasilidade a partir das propostas estéticas e política desenhadas a partir do reconhecimento da hibridação cultural como nosso traço distintivo.
Da apresentação oficial no You Tube:
"Glauco do Brasil é um documentário de 90 minutos, que retrata a vida e a obra do pintor Glauco Rodrigues. Gaúcho de Bagé, Rio Grande do Sul, Brasil, Glauco é considerado por teóricos, críticos e artistas nacionais e internacionais um dos principais pintores da Pop Art na América Latina. A trajetória de Glauco Rodrigues é retratada através de uma série de entrevistas, depoimentos, imagens de arquivo e captação de novas imagens dos cenários no qual Glauco Rodrigues vivenciou e se inspirou. O documentário possui entrevistas com artistas e intelectuais como: Nicolas Bourriaud, Ferreira Gullar, Gilberto Chateaubriand, João Bosco, Luis Fernando Veríssimo, Camilla Amado, Frederico Morais, entre outros."
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30 de novembro de 2016
1a c/ 7a - Elis, o filme
Ontem fui assistir Elis, o filme [trailer], numa espécie de transversal do tempo que durou menos de duas horas. A primeira constatação é que a vida de Elis não cabe num filme, ainda mais tão curto. Cinebiografia é um tremendo desafio. Senti que o roteiro teve muitos, muitos problemas. O mesmo para a direção. Pra mim, inclusive, o filme devia chamar-se Elis & Eles, pois é, em suma, a tentativa - com erros e acertos - de ler a trajetória da Pimentinha nos encontros e desencontros dela com eles. O forte do filme, que o salva de ser ruim, no limite, é a ótima atuação de Andréia Horta. Ela se preparou bem, adquiriu os trejeitos, o riso, o choro, mandou bem o texto - que aliás, é bom, tirando seus melhores momentos de trechos de entrevistas que Elis efetivamente concedeu. Uma atuação convincente, mas talvez pelo fato dela não ter uma trajetória forte no cinema, de não a termos visto em outros papéis na telona, mais difícil de saber o quanto é qualidade de seu trabalho de atriz e quanto é a carga inerente da persona forte de Elis que ela simplesmente emula. Quanto à história em si, para quem conhece e/ou pesquisa o assunto, o filme deixa a desejar. Faltou pesquisa - o que é grave considerando que há boas biografias, encabeçadas por Furacão Elis e Elis Regina - Nada será como antes. Talvez tenha faltado construir melhor a narrativa mesmo. Nesse sentido reporto-me à resenha de Danilo Areosa [completa, aqui]:
Esta construção de cenas de forma arbitrária sem qualquer preocupação em estabelecer uma conexão de finalidade narrativa entre uma sequência e outra indica uma postura amadora por parte de Prata, digna daqueles trabalhos acadêmicos onde a pessoa cópia e cola os parágrafos sem se preocupar se com a lógica do texto.Do ponto do retrato social e político, Elis consegue ser mais radical na sua caricatura até porque evita a polêmica ou mergulhar o dedo na ferida. As sequências voltadas para a ditadura militar são rasas e se resumem há poucos minutos em tela – a cena que Elis retorna para casa depois de interrogatório e percebe que o berço do filho encontra-se vazio beira a encenação da tensão novelesca. A crítica ao poder das gravadoras musicais também é sintetizada em um único momento – uma entrevista da cantora marcada por frases de efeito – e o próprio abuso de drogas por parte dela é bem discreto evitando manchar a imagem canonizada de Elis.
Episódios chave, como a passeata contra a guitarra elétrica, viraram alvo de referência casual, e situações irrelevantes, como o disco produzido por Nelson Motta, que deve ser um dos mais fracos da discografia dela, merecem destaque. Aliás, Nelson Motta vamos botar na conta da produção Globo Filmes, enquanto gente como Edu Lobo , Chico Buarque, Gil, Caetano, Milton, João Bosco e Aldir, Tom Jobim, entre outros, sequer surgem e/ou são meramente mencionados. O engajamento político de Elis é dosado. Sua participação na luta pela Anistia fica subentendida ao entrevero com Henfil ser resolvido por gravar O bêbado e a equilibrista. A trilha , como tinha que ser, é ótima, ainda que se possa cobrar algumas faltas (Casa no campo, Romaria, Maria, Maria, Vou deitar e rolar, são algumas que me ocorrem. Aliás, nenhuma do Bituca e nenhuma do Gil, se eu não estou enganado). Enfim, quem conhece a história, que vá avisado. Em resumo, vale pela atuação de Andréia, vale para ouvir a voz única de Elis ressoando na sala de cinema, e, para quem não conhece, para ter uma ideia, ainda que tênue, de quem foi a maior cantora do Brasil.
Acabei revendo essa entrevista, que teve vários trechos pinçados para o texto do filme. Vale muito a pena assistir:
Acabei revendo essa entrevista, que teve vários trechos pinçados para o texto do filme. Vale muito a pena assistir:
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19 de setembro de 2016
1a c/ a 7a - A trilha de "Aquarius", patrimônio, memória cultural e música popular
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Resolvi então acrescentar mais alguma coisa aos meus comentários iniciais, escolhendo um ângulo que incorpora minhas reflexões de pesquisa. Mas cumpre mencionar de partida que consultei alguns textos para me balizar e recapitular alguma coisa, basicamente a matéria mais enxuta de Tiago Dias no uol; o comentário curto mas atento de Sílvio Osias no Jornal da Paraíba, e a crítica bem feita de Paulo da Costa e Silva na Piauí.
Todos concordam que a música desempenha um papel fundamental no filme. O primeiro detalhe a se notar é a opção por usar uma trilha preexistente, pois aí já está dada a premissa para o que quero discutir, que é o acervo musical como patrimônio cultural. Na escolha da trilha entram diferentes determinantes, da eficácia comunicacional que música terá para a cena e o fio narrativo da história, a construção convincente de uma paisagem sonora retratada, a tradução do estado emocional de uma personagem, e até mesmo questões de ordem técnica, como na inserção de "Another One Bites the Dust", no começo do filme, cujo baixo proeminente ajuda a testar o sistema de som das salas de cinema, pois "É perfeita para ver se está no volume certo", diz Mendonça Filho, confesso fã de Queen, segundo relatado na matéria de Dias. A comparação na forma de usar a trilha preexistente, proposta por Osias, entre o diretor e cineastas como Tarantino e Scorsese, me parece acertada. E acrescento um detalhe que me foi apontado pelo músico Artur Araújo, tanto em Aquarius quanto em O Som ao Redor, do uso do som externo dentro da cena (uma leitura sobre o assunto, texto de Hermes Leal). No caso de Aquarius, entendo que se completa com um jogo astuto em que o som da trilha "entra" e "sai" da cena, ou seja, num momento ouve-se a música captada a partir de seus emissores (o toca-fitas do carro, o toca-discos de Clara, a televisão, o piano e as vozes de quem canta ) pela microfonação ambiente mesmo, como se quem assiste também estivesse inserido no quadro, e por vezes ele passa, até abruptamente, a ser reproduzido com qualidade de gravação direto na banda sonora, ou seja, tocando para quem assiste, como que reafirmando essa outra posição de assistir ao filme, de fora do quadro.
Ouve-se portanto a música a partir de dois pontos básicos de escuta. Um, o dos personagens, na própria tessitura da história deles que se desenrola; outro, o nosso, ou seja, o do nosso presente e do que as músicas representam quando retiradas do que podemos imaginar como um arquivo, um grande armário de discos, fitas, cds, como o de Clara no filme - talvez um pouco arriscado, mas me arvoro a concluir que todo o apartamento dela é como uma alegoria de um tempo e uma sociabilidade em desaparecimento. Como coloca o Paulo C. Silva:
Gil, Roberto Carlos, Bethânia entoam o reservatório de um conjunto de valores e de um tipo de sensibilidade que serão condensados em Clara (Sônia de Braga), que de algum modo incorpora a textura afetiva, emocional, política e humana de certa classe média dos anos 1970. É uma textura indissociável dos elementos materiais que compõem seu habitat: samambaia, cômodas, livros nas estantes, posters de filmes e quadros (Kubrick, Miró) e, sobretudo, vitrola e discos, personagens fundamentais no filme – são objetos que definem de modo preciso a subjetividade da personagem, trazem visibilidade a seus valores, prioridades, sua relação com o tempo.
Preciso. Daí caber perfeitamente o recurso ao conceito de memória cultural, tal como empregam os pesquisadores alemães Aleida e Jan Assmann. Numa síntese, "A memória cultural é constituída, assim, por heranças simbólicas materializadas em textos, ritos, monumentos, celebrações, objetos, escrituras sagradas e outros suportes mnemônicos que funcionam como gatilhos para acionar significados associados ao que passou". Ou seja, no universo da cultura material a que somos apresentados no apartamento de Clara, está um estoque de recursos mnemônicos que podem promover a criação de nexos entre passado e presente. É um filme sobre o tempo, sua passagem, o desgaste das coisas, dos corpos, das relações humanas. Sobre aquilo que se perde e aquilo que se luta para preservar, mesmo contra um fluxo aparentemente irresistível, do progresso, da idade e do dinheiro - o que se traduz essencialmente no embate em torno do prédio Aquarius. O diretor, didaticamente, nos treina nesse mecanismo no primeiro trecho do filme, decorrido no passado, na celebração do aniversário da tia Lúcia, no momento em que seu olhar sobre o armário da sala lhe remete mentalmente a tórridas experiências sexuais de sua juventude. Todo o contato físico com os discos, o verdadeiro ritual de colocá-los e alguns comentários bem posicionados - o disco do Ave Sangria: "40 anos e toca perfeito"! - de forma a adquirirmos a certeza de que tudo aquilo traduz um modo de vida e valores que definem a identidade da personagem, como de fato usamos a rememoração de modo a retirar do que está disponível nesse "reservatório" aquilo que melhor nos traduz como indivíduos e como membros de grupos sociais, coletividades regionais ou nacionais, entre outros. Ante a imposição de imperativos econômicos e tecnológicos, objetos de outro tempo se ressignificam, o que fica patente na cena que disparou em minha a ideia desse texto, quando Clara tira de dentro de seu exemplar do Double Fantasy de Lennon e Yoko um recorte de jornal de poucos dias antes da morte dele, e desencadeia uma digressão que demonstra a singularidade daquele disco, que seria improvável para um arquivo de MP3.
Ainda que Clara expresse o cosmopolitismo próprio de seu meio, O nacional importa bastante nesse caso,ao mesmo tempo o que ela escolhe pra colocar na vitrola via de regra o que seria o espectro de canções que classificamos por MPB, em geral da década de 1970, incluindo aí a escolha nada óbvia de O Quintal do Vizinho do repertório de Roberto Carlos. As escolhas da trilha são ecléticas até certo ponto, mas é sobretudo esse recorte do patrimônio musical brasileiro, da perspectiva da geração de classe média que foi jovem na passagem dos 1970s aos 1980s , que se sobressai. Muitas pistas jogadas sobre esse tema do nacional, da interpretação do Brasil, começando por ser Sônia Braga a atriz que faz a protagonista, um dos maiores ícones do cinema brasileiro, que deu vida a alguns dos papéis femininos mais centrais da nossa cinematografia, mas reside nos EUA, mestiça que fala inglês, fazendo uma crítica musical que se chama Clara. Esse Brasil é contado na música, naquilo que lhe aproxima e lhe distancia. Sílvio Osias atenta para cena da praia, Clara com o sobrinho e a namorada, tentando explicar a tradução da desigualdade no espaço urbano recifense, no caminho de Boa Viagem até Brasília Teimosa onde irão ao aniversário da empregada doméstica (que claro, ao longo do filme desencadeia o bom e velho tema da herança escravocrata, que Kleber já abordara tão bem em O Som ao Redor) , que em seguida se metamorfoseia nas escolhas de repertório que caracterizam os espaços sociais pelos quais os personagens transitam, Alcione na aniversário, Villa-Lobos na casa de Clara, por exemplo.
A forma como a trilha tem repercutido, sendo citada e mesmo referenciada em outros contextos, sinaliza justamente esse valor cultural, essa disposição para ser ressignificada que especialmente a canção popular apresenta. Se toda a história, e especialmente seu desfecho, representa uma tomada de posição em enfrentamento ao descarte, à sumária destruição do que remete ao passado, à decrepitude do corpo e o desprezo para com os velhos, a música é um verdadeiro contraveneno, representando a celebração da vida, dos laços, da experiência. Num momento que guardei como bastante emblemático, ela decide enfrentar a festa de arromba promovida para demovê-la de permanecer em seu apartamento não chamando a polícia, mas botando no talo mais um petardo do Queen, Fat Bottomed Girls. Contra tantas ameaças, literalmente nadando no mar de tubarões, Clara resiste e assume (recebendo talvez apoios inesperados e não recebendo alguns esperados) essa posição de enfrentamento e resiste, ainda que provisoriamente, à voragem dos cupins. Penso que reconhecer a importância do patrimônio cultural, especialmente aquele associado à música popular, representa exatamente isso: nossa disposição em não sermos devorados.
Todos concordam que a música desempenha um papel fundamental no filme. O primeiro detalhe a se notar é a opção por usar uma trilha preexistente, pois aí já está dada a premissa para o que quero discutir, que é o acervo musical como patrimônio cultural. Na escolha da trilha entram diferentes determinantes, da eficácia comunicacional que música terá para a cena e o fio narrativo da história, a construção convincente de uma paisagem sonora retratada, a tradução do estado emocional de uma personagem, e até mesmo questões de ordem técnica, como na inserção de "Another One Bites the Dust", no começo do filme, cujo baixo proeminente ajuda a testar o sistema de som das salas de cinema, pois "É perfeita para ver se está no volume certo", diz Mendonça Filho, confesso fã de Queen, segundo relatado na matéria de Dias. A comparação na forma de usar a trilha preexistente, proposta por Osias, entre o diretor e cineastas como Tarantino e Scorsese, me parece acertada. E acrescento um detalhe que me foi apontado pelo músico Artur Araújo, tanto em Aquarius quanto em O Som ao Redor, do uso do som externo dentro da cena (uma leitura sobre o assunto, texto de Hermes Leal). No caso de Aquarius, entendo que se completa com um jogo astuto em que o som da trilha "entra" e "sai" da cena, ou seja, num momento ouve-se a música captada a partir de seus emissores (o toca-fitas do carro, o toca-discos de Clara, a televisão, o piano e as vozes de quem canta ) pela microfonação ambiente mesmo, como se quem assiste também estivesse inserido no quadro, e por vezes ele passa, até abruptamente, a ser reproduzido com qualidade de gravação direto na banda sonora, ou seja, tocando para quem assiste, como que reafirmando essa outra posição de assistir ao filme, de fora do quadro.
Ouve-se portanto a música a partir de dois pontos básicos de escuta. Um, o dos personagens, na própria tessitura da história deles que se desenrola; outro, o nosso, ou seja, o do nosso presente e do que as músicas representam quando retiradas do que podemos imaginar como um arquivo, um grande armário de discos, fitas, cds, como o de Clara no filme - talvez um pouco arriscado, mas me arvoro a concluir que todo o apartamento dela é como uma alegoria de um tempo e uma sociabilidade em desaparecimento. Como coloca o Paulo C. Silva:
Gil, Roberto Carlos, Bethânia entoam o reservatório de um conjunto de valores e de um tipo de sensibilidade que serão condensados em Clara (Sônia de Braga), que de algum modo incorpora a textura afetiva, emocional, política e humana de certa classe média dos anos 1970. É uma textura indissociável dos elementos materiais que compõem seu habitat: samambaia, cômodas, livros nas estantes, posters de filmes e quadros (Kubrick, Miró) e, sobretudo, vitrola e discos, personagens fundamentais no filme – são objetos que definem de modo preciso a subjetividade da personagem, trazem visibilidade a seus valores, prioridades, sua relação com o tempo.
Preciso. Daí caber perfeitamente o recurso ao conceito de memória cultural, tal como empregam os pesquisadores alemães Aleida e Jan Assmann. Numa síntese, "A memória cultural é constituída, assim, por heranças simbólicas materializadas em textos, ritos, monumentos, celebrações, objetos, escrituras sagradas e outros suportes mnemônicos que funcionam como gatilhos para acionar significados associados ao que passou". Ou seja, no universo da cultura material a que somos apresentados no apartamento de Clara, está um estoque de recursos mnemônicos que podem promover a criação de nexos entre passado e presente. É um filme sobre o tempo, sua passagem, o desgaste das coisas, dos corpos, das relações humanas. Sobre aquilo que se perde e aquilo que se luta para preservar, mesmo contra um fluxo aparentemente irresistível, do progresso, da idade e do dinheiro - o que se traduz essencialmente no embate em torno do prédio Aquarius. O diretor, didaticamente, nos treina nesse mecanismo no primeiro trecho do filme, decorrido no passado, na celebração do aniversário da tia Lúcia, no momento em que seu olhar sobre o armário da sala lhe remete mentalmente a tórridas experiências sexuais de sua juventude. Todo o contato físico com os discos, o verdadeiro ritual de colocá-los e alguns comentários bem posicionados - o disco do Ave Sangria: "40 anos e toca perfeito"! - de forma a adquirirmos a certeza de que tudo aquilo traduz um modo de vida e valores que definem a identidade da personagem, como de fato usamos a rememoração de modo a retirar do que está disponível nesse "reservatório" aquilo que melhor nos traduz como indivíduos e como membros de grupos sociais, coletividades regionais ou nacionais, entre outros. Ante a imposição de imperativos econômicos e tecnológicos, objetos de outro tempo se ressignificam, o que fica patente na cena que disparou em minha a ideia desse texto, quando Clara tira de dentro de seu exemplar do Double Fantasy de Lennon e Yoko um recorte de jornal de poucos dias antes da morte dele, e desencadeia uma digressão que demonstra a singularidade daquele disco, que seria improvável para um arquivo de MP3.
Ainda que Clara expresse o cosmopolitismo próprio de seu meio, O nacional importa bastante nesse caso,ao mesmo tempo o que ela escolhe pra colocar na vitrola via de regra o que seria o espectro de canções que classificamos por MPB, em geral da década de 1970, incluindo aí a escolha nada óbvia de O Quintal do Vizinho do repertório de Roberto Carlos. As escolhas da trilha são ecléticas até certo ponto, mas é sobretudo esse recorte do patrimônio musical brasileiro, da perspectiva da geração de classe média que foi jovem na passagem dos 1970s aos 1980s , que se sobressai. Muitas pistas jogadas sobre esse tema do nacional, da interpretação do Brasil, começando por ser Sônia Braga a atriz que faz a protagonista, um dos maiores ícones do cinema brasileiro, que deu vida a alguns dos papéis femininos mais centrais da nossa cinematografia, mas reside nos EUA, mestiça que fala inglês, fazendo uma crítica musical que se chama Clara. Esse Brasil é contado na música, naquilo que lhe aproxima e lhe distancia. Sílvio Osias atenta para cena da praia, Clara com o sobrinho e a namorada, tentando explicar a tradução da desigualdade no espaço urbano recifense, no caminho de Boa Viagem até Brasília Teimosa onde irão ao aniversário da empregada doméstica (que claro, ao longo do filme desencadeia o bom e velho tema da herança escravocrata, que Kleber já abordara tão bem em O Som ao Redor) , que em seguida se metamorfoseia nas escolhas de repertório que caracterizam os espaços sociais pelos quais os personagens transitam, Alcione na aniversário, Villa-Lobos na casa de Clara, por exemplo.
A forma como a trilha tem repercutido, sendo citada e mesmo referenciada em outros contextos, sinaliza justamente esse valor cultural, essa disposição para ser ressignificada que especialmente a canção popular apresenta. Se toda a história, e especialmente seu desfecho, representa uma tomada de posição em enfrentamento ao descarte, à sumária destruição do que remete ao passado, à decrepitude do corpo e o desprezo para com os velhos, a música é um verdadeiro contraveneno, representando a celebração da vida, dos laços, da experiência. Num momento que guardei como bastante emblemático, ela decide enfrentar a festa de arromba promovida para demovê-la de permanecer em seu apartamento não chamando a polícia, mas botando no talo mais um petardo do Queen, Fat Bottomed Girls. Contra tantas ameaças, literalmente nadando no mar de tubarões, Clara resiste e assume (recebendo talvez apoios inesperados e não recebendo alguns esperados) essa posição de enfrentamento e resiste, ainda que provisoriamente, à voragem dos cupins. Penso que reconhecer a importância do patrimônio cultural, especialmente aquele associado à música popular, representa exatamente isso: nossa disposição em não sermos devorados.
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