Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de janeiro de 2016

O sentido de Djavan

Aproveitando o ensejo do aniversário de Djavan, recordei-me de sua participação no ótimo programa O som do vinil, conduzido por Charles Gavin. Num dos momentos mais comentados, ao ser perguntado, Djavan adentra na polêmica criada por "alguns críticos" (sendo de fato Arthur Xexéo, colunista do jornal O Globo, o alvo principal que ele cita nominalmente) ao considerar versos de sua canção Açaí (do disco Luz, 1982) como expressão máxima de nonsense. Ele então desfia sua interpretação, bastante direta até, desarmando por completo a leitura "nonsense". Acho que nem precisaria. Só mesmo numa perspectiva muito tacanha do que pode ser a construção do sentido a partir da combinação alquímica da palavra e do som se poderia querer que apenas se constituísse na forma de um discurso óbvio e unívoco. A espetada disparado por Djavan ao final do trecho é mais que bem dada. 




Mas claro, o programa (parte 1; parte 2) não se resume a isso e como de costume dedica-se a enfocar um determinado momento da carreira do artista, gravitando em torno de um álbum considerado especialmente significativo em sua obra, como no caso é o "Luz", que traz canções consagradas de seu repertório como a própria Açaí, Sina, Samurai, e coisas lindas como Banho de rio. Enfim, vale ouvir o disco todo e também ler a entrevista. Separei aqui um trecho em que ele mapeia um pouco de sua formação musical, dos músicos que lhe influenciaram, o que sempre desperta meu interesse como pesquisador, que é entender (ou ao menos tentar) a forma como esse colecionamento de referências é de alguma forma amalgamado em criações que também tem traços muito distintivos, mas guardam os efeitos desse contato, de uma apreensão e um processamento de tudo isso:


Você ali no ambiente do nordeste, com toda a música nordestina, que é espetacular e faz parte da formação de todos nós. Mas você enveredou por outro caminho, não foi nem o samba, nem a música nordestina. Fala um pouco dessa formação que veio dar no seu som, na sua música.
Eu tenho a música nordestina como cama, digamos assim; é a minha base fundamental. É tanto que, se eu falo de influência, eu coloco Luiz Gonzaga numa ponta e os Beatles na outra, porque foram os dois sons que me formataram. É claro que dentro disso tudo, há jazz, bossa nova, bolero, baião. Eu sempre tive uma curiosidade muito grande sobre a diversidade. Para mim a grande graça era essa, eu jamais seria um especialista feliz porque eu sempre busquei a diversidade. Isso que sempre foi o motivo. Como se faz uma salsa, como que é a valsa, como que é o jazz. Eu sempre tive essa curiosidade e a minha geração tinha como valor uma formação voltada pra diversificação.

Sua geração enfatiza exatamente a diversidade, o Tropicalismo é exatamente isso.
Exato. Graças a Deus eu pude nascer no Nordeste e conviver com um homem como o Luiz Gonzaga, quer dizer, com a obra dele. Porque o Luiz Gonzaga, eu o considero simplesmente um dos artistas mais importantes do Brasil em todos os tempos. Ele era um melodista fabuloso, um harmonizador intuitivo, extremamente instigante e um cantor extraordinário. Letrista também, e teve grandes letristas ao seu redor a vida inteira. Ele trouxe a realidade do Brasil, sobretudo do Norte e Nordeste, para o mundo de uma maneira belíssima, criativíssima. Eu pude conviver com essa obra no momento em que eu estava me formando, com aquela curiosidade de menino músico, querendo ver como as coisas aconteciam, e tive o Luiz Gonzaga. Depois os Beatles; eles foram pra mim um revelação extraordinária, porque eu os conheci exatamente na época em que eu estava envolvido com a dissonância da Bossa Nova. A Bossa Nova lidava com os acordes dissonantes e tudo, era o grande trunfo do movimento, uma coisa que teve ligação com o jazz. Os Beatles vieram pra ensinar ao mundo a usar o acorde perfeito, que não era uma coisa muito aceita pelas pessoas que estavam vislumbrando esse universo da dissonância. E eles fizeram isso com uma propriedade incrível, com muito talento. Aquilo pra mim foi uma explosão de novidade; eu considero os Beatles e o Luiz Gonzaga os meus grandes influenciadores, embora eu tenha ouvido de tudo. Eu tive uma ligação com o jazz sempre muito grande. Eu ouvi todos os grandes do jazz durante muito tempo da minha vida. O meu contato com jazz aconteceu muito cedo porque eu tinha um amigo que gostava de mim porque eu cantava, e o pai dele era um médico, rico, morava numa casa bacana, tinha uma vida muito boa e ele tinha em casa uma discoteca fabulosa, de onde se encontrava de tudo; jazz, música latina, música africana. Ele tinha música africana em Maceió naquela época!

19 de janeiro de 2016

COISAS VÃS

Puxar pelo fio a memória da composição de uma canção feita há mais de 10 anos, como me disponho a fazer aqui, pode ser uma tarefa ingrata. Pode ser que anotações, esboços, e até mesmo registros em áudio a que se possa recorrer, eventualmente não estejam bem referenciados, datados e organizados. Eu mesmo não tinha ideia de que poderia vir a gostar desse exercício de arqueologia das minhas próprias letras, portanto rasurava sem dó, perdia, manchava, rasgava, amassava e até jogava fora todo tipo de estudo preliminar que hoje poderiam ser verdadeiros fósseis, ou papiros, a auxiliar a tarefa. No caso de "Coisas Vãs" até que não tenho do que me queixar, tenho aqui comigo alguns esboços escritos na velha agenda ano 2 mil que ainda me serve de caderno, mais duas versões diferentes da final em arquivos txt - acho que essa mania de gravar nesse formato não perdi porque lembra vagamente papel datilografado - e ainda uma antiga gravação em MP3 datada de 2005. É provável que as primeiras versões da canção datem de 2003, 2004. Mas não pretendo entupir esse relato de exemplificações sobre mudanças de versos, palavras aqui e ali. Vou apenas me servir disso na medida em que me permita contar um pouco sobre a feitura da letra. De início, direi antes de mais nada que foi muito trabalhosa. Vejo aqui versões enormes, com muitas ideias e partes descartadas. Lembro que estava num período de muito esforço profissional, viajando toda semana para dar aula no interior e ainda trabalhando no museu histórico de Belo Horizonte. Nessa época, com certa relutância, pedi ao Pablo pra gravar no meu computador, com auxílio daquele microfone mais simples mesmo, as canções que estávamos fazendo, porque não conseguia manter com ele um ritmo de trabalho cara a cara, como até a época da gravação do disco A Outra Cidade estávamos acostumados. Me rendi a uma forma de trabalho que me incomodava então, mas que hoje venho usando com naturalidade e assim tenho feito com diferentes parceiros nos últimos anos - histórias que certamente terei oportunidade de contar noutras postagens. 
A melodia me sugeria, a princípio, um sabor ibérico, especialmente no A. Reparem que ela tem uma forma curiosa, A-B-A-B-A-B, mas, a não ser o trecho 'coisas vãs', nada se repete ao longo da letra. A música me levou a pensar, provavelmente pela cadência, em viagem. Junto do título, no primeiro rascunho que encontrei, está escrito 'canção do exílio n° 25'. Julguei ter visto em algum lugar Sabiá (Tom Jobim/Chico Buarque) sub-entitulada 'canção do exílio n° 2' (não consegui me certificar disso agora) e dei uma brincada com isso. Depois sumiu. Mas tava ali a semente, o tema do exílio casado com a necessidade do desprendimento. Daí talvez tenha emergido a aproximação com o nomadismo, que por sua vez foi puxando um pouco assuntos como religião e nacionalismo - o que ficou consolidado no 2° A, "Anda, tuaregue...". 


Não posso deixar de mencionar que nas dobras mais antigas da minha memória está gravado o fascínio pelo deserto e por uma perspectiva da história e da cultura árabes que escorre da obra de Malba Tahan, que meu pai me ensinou a admirar quando eu era bem pequeno. Havia ainda a sombra do 11 de setembro de 2001, de alguma forma se apresentando como evento que capturava o drama e as contradições políticas naquele momento. A versão original guarda alguma pista disso, citando nominalmente Bush (dele sobrou o jogo com a palavra 'desembucho') e Saddhan. Felizmente a letra caminhou para uma reflexão mais ampla, deixando para trás esses traços que poderiam levar para a direção do "comentário", deixando-a mais datada. 

Havia também um Freud e a óbvia 'divã', devidamente riscados do mapa, mas restaram aqui e ali algumas referência às relações familiares e privadas, especialmente em analogia à dimensão social mais ampla que estava propondo. Desprendida ela própria de seu contexto imediato, foi caminhando como reflexão que se constituía a partir de um diálogo imaginário, em que o "eu" lírico debate com alguém que tem opiniões divergentes das suas, alguém aferrado a verdades religiosas e políticas. E nesse sentido, aludir ao nomadismo dentro do universo árabe-saariano parece um bom contra-argumento ante tanto senso comum associando islamismo e fundamentalismo, por exemplo. Como historiador eu sou obrigado a mencionar o exemplo clássico da tolerância religiosa durante a ocupação árabe da península ibérica. Enfim, decididamente o trabalho maior foi de ir decantando, separando o que era o grão de areia ponderado daquela enxurrada inicial. E aí, nas últimas ajeitadas, acatei algumas sugestões do Pablo, que é uma coisa que eu acho muito natural em parceria, especialmente quando o parceiro também faz letras, e muitas vezes acato sem nem titubear porque quem está cantando tem outro feeling da coisa, e também precisa se sentir convicto daquilo que canta. No final, tudo conspirou por uma canção que, creio eu, não é vã.

Enorme a expectativa de vê-la gravada, mas por agora vai esse belo registro ao vivo, com fotografia e edição de nosso caríssimo amigo Virgílio de Barros. 



Coisas Vãs (P. Castro/L. Garcia)

Venha, não se agarre
nunca se atenha
saia, não se aferre
nem se detenha
o tolo se embrenha
em coisas vãs

Pensa que é deus
a dar sermão
me acusa de pagão
ouço no silêncio exterior
o som do grão de areia a ponderar
a distância interna de um olhar

Anda, tuaregue
vai sem destino
Mova, beduíno
terras renegue
todo hino é senha
de coisas vãs

Acha que é mãe
pátria gentil
mas outra te pariu
escuta o meu motivo anterior
o som do vão da porta a se fechar
consciência de abandonar

Solte, não se amarre
ou se contenha
livre, não se enterre
nada retenha
a fé cega é lenha
de coisas vãs

Você quer pai,
filho que és
eu vivo dos meus pés
desembucho o pulso do tambor
tum-tum do mundo todo a convidar
violência de nos libertar

12 de janeiro de 2016

1a. c/ a 7a. Mistérios do samba

Assisti ontem a um trecho desse documentário com a velha guarda da Portela, bem produzido, e com uma condução muito respeitosa, digna. Enquanto levantava repertório para um disco, Marisa Monte vai cantando com Paulinho da Viola, conversando com os compositores de quadra, famílias de sambistas, pastoras.  E encontrando as fitas k7, letras manuscritas, arquivos guardados por familiares e pelos próprios autores, e a gente vai vendo a emoção genuína de encontrar aquilo, lembrar os sambas...Enfim, delicadeza demais. 


Uma sinopse:

"Na ocasião do trabalho de pesquisa de campo realizado por Marisa Monte nos idos de 1998 junto aos sambistas da Portela no bairro de Oswaldo Cruz, zona norte do Rio de Janeiro (RJ), para o repertório de seu CD "Tudo Azul", a cantora percebeu que algo mais estava ali, naquele lugar, além dos cancioneiros inéditos os quais pretendia resgatar. Assim, ela chamou os diretores Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor para registrarem esses encontros, com a intenção futura de gerar um filme que retratasse não apenas os bastidores de sua empreitada musical, mas algo muito mais precioso." (do canal youtube anderson inspiração)



Enquanto eu navegava procurando o vídeo, acabei lembrando do documentário sobre Paulinho da Viola que resenhei aqui, e vale muito assistir.

6 de janeiro de 2016

A gestação de Roxanne

Um dos assuntos mais fascinantes quando se trata da canção popular é o que podemos chamar de sua gestação, o tempo que leva desde sua composição inicial, esboços, até que finalmente ganhe a forma com que vem a público. Embora isso possa se dar de diversas maneiras, aquela que se tornou mais emblemática com o estabelecimento da indústria fonográfica foi a gravação. Não confundamos aqui a composição pronta e a primeira gravação comercial, definitivamente não são a mesma coisa. Mas, provavelmente, para boa parte da música popular produzida no contexto da fonografia (concentrado portanto no século XX), será a gravação que ficará reconhecida socialmente como registro mestre de uma determinada canção.
Revela-se seu estado fetal, portanto, a quem tem acesso à gravações prévias, rascunhos, ou até mesmo depoimentos dos compositores, num vislumbre de uma espécie de ultrassom. Mas com uma diferença: já sabemos de antemão que forma a criatura irá tomar. Como pesquisador de música popular teria que escrever outro texto para falar das inúmeras possibilidades de investigação que tal acesso permite. Posso dizer que tive a oportunidade de explorá-las a fundo no artigo que publiquei na Revista Estudos Históricos sobre Penny Lane e Strawberry Fields Forever [aqui]. Como compositor, trata-se de inesgotável fonte de aprendizado e inspiração. Às vezes tudo que uma canção precisa para tomar a forma devida pode estar numa mudança de andamento, ou simplesmente no entendimento do gênero musical em que a canção deve se acomodar [e por isso provavelmente uma das formas mais corriqueiras de se fazer versões seja justamente alterando seu gênero]. Como apreciador, posso dizer que ouvir os ecos do passado de uma canção, digamos assim, pode ser particularmente emocionante.

Toda essa conversa começou quando revi o trecho do documentário Can't Stand Losing You (ficha completa), essencialmente baseado no depoimento do guitarrista Andy Summers sobre a história da banda The Police, que integrou juntamente com Stewart Copeland e Sting. Aqui Andy rememora a criação de uma das mais emblemáticas canções gravadas pelo grupo, Roxanne, que nasceu, como ele relata, como uma canção de ninar para o bebê que sua esposa esperava, esboçada por Sting ao violão na forma de uma bossa. A mudança para a batida do reggae veio, segundo Andy, do fato de que ante "a intensidade da cena punk, dar uma de brasileiros seria suicídio". Quem sabe no futuro isso venha a render um artigo, mas por agora limito-me a saborear, mais uma vez, esses chutinhos na barriga de uma canção neném pra lá de interessante.