Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

25 de janeiro de 2023

MACHADO ELÉTRICO


Mais uma das minhas parcerias com Daniel Guimarães. Essa foi a que mereceu mais revisões e reinvenções na letra. Quem se lança na tarefa de botar palavras na música que outra pessoa compôs tem que estar disposto à tarefa, que pode ser tanto um passeio de pedalinho quanto uma circunavegação do Cabo das Tormentas. No geral não será nem tão ameno nem tão dramático. Enquanto escrevo este texto vou recapitulando as conversas que fui tendo com o Daniel via mensagem no facebook - já devo ter dito em algum dos relatos anteriores que a distância condicionou essa forma de interagirmos. O fato é que eu esteva muito nessa onda de brasilidade, ali por meados de 2020. Com a verve de historiador falando alto, comecei com uns versos que pareciam adaptação de livro didático ou versão de samba enredo, diante de uma melodia sinuosa, que me sugeria o mar e uma narrativa forte, densa, solene. 

Pindorama, litoral 
Veio a nau da Guiné de Bissau
Sesmaria, pau brasil
chão dividiu
gente arredou

Só o primeiro verso resistiu rsrsr. Mas naquele momento segui naquela toada, fiz outra estrofe e depois o B (este manteve ao final a mesma redação) que de alguma forma sugeria uma reflexão sobre a passagem do tempo, e expressava também a vontade de ver mais um momento de crise do país ser superado de alguma forma. Daí cravar ao final: o futuro vai passar. Do ponto de vista das figuras brasileiras que eu evocava, o futuro delas era o nosso presente, que também deixa de ser, em meio a essa imagem alegórica e sincrética refletida num objeto simbólico pertencente a uma divindade afro-brasileira, o que me fora instigado pelo título da "demo", que já era Machado elétrico.
Satisfeito naquele ponto, enviei ao parceiro o resultado. No retorno, com toda a delicadeza e muita sensibilidade, ele foi destrinchando pra mim a motivação por traz do que compusera, homenagem a um querido amigo e parceiro musical dele que havia deixado essa nossa precária existência. Além de comovido eu me senti incumbido da tarefa de me acercar minimamente, através do relato dele, de algumas músicas gravadas, da pessoa do homenageado. Entre as nossas conversas fui procurando um jeito de conciliar o impulso original do que eu escrevera com essa nova perspectiva. Fico feliz de constatar, revendo essas mensagens, que fizemos tudo com muito respeito mútuo e paciência. Esse é o fundamento de qualquer parceria, porque querendo ou não estamos nesse barco expostos a tudo. Não é mole a vida do compositor, em especial a do cantautor que interpreta suas próprias canções, muitas vezes colocando pra fora o que tem de mais íntimo esperando que isso faça sentido pra outras pessoas. Busquei, assim, capturar dentro de um mesmo universo imagético o limiar entre a vida e a morte, a praia e o mar, o passado e o futuro, enfim, a mudança que é algo que experimentamos como indivíduos e como sociedade. Acho que o resultado final foi digno do desafio, e a canção como um todo ficou muito bonita, como é possível conferir nessa versão voz e violão:


Machado elétrico (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Pindorama, litoral
Vento risca nas dunas de sal
Corta a voz do cantador
Céu carregou
Vem temporal

Junta contas no cordão
Sente areia escorrendo da mão
Sol e sombra na feição
Espuma nos pés
Desafia o ar

Guerreiro tupinambá
Ergue a vista sobre o mar
Vê a lua brilhar
No machado de Xangô
Entre sangue e resplendor
O futuro vai passar

20 de janeiro de 2023

Novelli, viva ele

Sopra velas hoje o grande baixista e compositor Novelli Barros e Silva [bio no Dicionário Cravo Albin; discografia em Discos do Brasil]. Não bastasse a folha corrida impressionante tocando com a fina flor da música popular brasileira, abrilhantando todo um leque de gravações, ele também enfileira composições primorosas que talvez haja quem já tenha ouvido muito e não se toque que são parte de um cancioneiro de responsa. 

Fiz essa postagem matando saudade do blog e de alguma forma recapturando emoções de primeiras audições de coisas como as gêmeas Minas e Minas Geraes, Pelas ruas do Recife e Linha de montagem. Mas há muito, muito mais a explorar na obra desse pernambucano que também tem cadeira cativa na esquina do Clube e nos nossos corações, corações, corações...Viva ele!





Uma parcela do cancioneiro de Novelli foi belamente registrada nesse disco da cantora Bárbara Casini em comunhão com Toninho Horta. 


De lambuja essa entrevista concedida por ele ao canal do Tropicália Discos: