Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

4 de julho de 2021

VALSA DO NÃO LUGAR

Mais uma para essa coleção de relatos sobre a feitura das letras de canção que tenho feito pela vida. Essa é relativamente recente, composta salvo engano em 2018. Meu parceiro Pablo Castro me deu essa bela valsa e apenas um verso sugerido, "haverá um não lugar". Se o pano de fundo emocional era o amor perdido, a sugestão temática remetia ao universo das utopias. Era literalmente uma encomenda. Aconteceu de por volta dos dias em que recebi a gravação fui assistir a um show (não tenho certeza absoluta mas acho que foi de Luisa Lacerda e Giovanni Iasi, que aliás foi fino) na simpática Idea Casa de Cultura, teatrinho intimista numa casa tombada em que funciona na entrada uma pequena livraria. Pois ali me peguei a folhear, um pouco antes do espetáculo, História das terras e lugares lendários, erudita compilação do grande Umberto Eco, com textos comentados combinados a mapas e ilustrações belíssimas desse campo particular da invenção humana. Passeando entre Atlândida, Lemúria, Shangri-lá e o País da Cocanha, encontrei o mapa da mina, por assim dizer. Para mim funciona muito assim e depois que encontro o rumo já sei mais ou menos os caminhos a trilhar. Rapidamente fui listando os lugares utópicos ou fantásticos e decidindo como encaixá-los na melodia, imaginando um "eu lírico" como um arqueólogo ou desbravador daquelas grandes obras do romance de aventura do XIX que marcaram minha formação de leitor, como o professor Lidenbrock de Verne, o Challenger de Arthur Conan Doyle ou Alan Quatermain de Haggard. Ótima oportunidade também de brincar um pouco com o "academês", trazendo um vocabulário pouco afeito ao repertório típico do que seria suposto para uma canção de amor, mas totalmente aplicável neste caso. Aproveitei pra revezar sons abertos e fechados, acentos agudos e circunflexos, dando uma enriquecida nas rimas. Joguei também um pouco com os suportes, as diferentes fontes de informação - alfarrábios, códices, iluminuras, manuscritos - que esse investigador poderia consultar em busca de resolver o mistério, de achar o lugar perfeito para viver com sua fugidia amada. Me lembrei da atmosfera de Futuros amantes, do Chico - só que ali é só debaixo d'água, e eu imaginei mais uma viagem pelo globo, até chegar à Amazônia, para dar uma tonalidade brasileira e colocar ali o uirapuru - esses nomes indígenas tremendamente musicais são irresistíveis - combinando com a melodia sinuosa e esvoaçante dessa terceira parte. E finalmente cheguei ao bordão final, preparado com uma pequena variação, em que aproveitei para ser, digamos, mais óbvio, usando explicitamente Utopia e Ilha - que não poderiam ficar de fora - deixando o eco da busca inconclusa como som síntese da esperança utópica de reencontrar o amor perdido. Considero essa uma das melhores letras que fiz nos últimos anos e ela veio num período em que eu estava precisando acertar a mão, por assim dizer. Se for pra fazer uma valsa romântica, de preferência que seja uma letra cheia de lugares incomuns.
 

Valsa do não lugar

(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)

Consultei os alfarrábios,
doutos manuscritos,
contos em chinês

Os recônditos tratados
de proscritos sábios
parcos rodapés

Shangri-lá seria aos pés do Himalaia
Xanadu perdida atrás de uma montanha
As minas do rei Salomão
cidade ao sol

Na Amazônia o uirapuru me guiaria
Rumo a terras que você não sonharia
longe
dessa ilusão
civilizada

Sigo em busca de utopias
Pra gente morar
Haverá um não lugar
Haverá um não lugar

Procurei nos pergaminhos
Nas iluminuras
cultos dos nagôs

As menções mais obscuras
Códices antigos
leis de faraós

A Lemúria desapareceu no tempo
Lilipute não passou de outro delírio
Atlântida submergiu
Mistério mór

Na Amazônia...

Sigo em busca de uma ilha
Pra gente se amar
Haverá um não lugar
Haverá um não lugar