Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

31 de agosto de 2012

De onde jorra a inspiração?


De onde jorra a inspiração? Inusitados são os caminhos da criação. Em trecho de entrevista à BBC em 1975 George Harrison explica a motivação para compor "This guitar (can't keep from crying)", uma espécie de gêmea bivitelina da marcante "While my guitar gently weeps". Muito franco como de costume, ele argumenta que "poderia ser só uma desculpa pra tocar guitarra" mas basicamente que, ao se dar conta do sucesso da 1a., pensou "porque não fazer outra?" 

 


George também resolveu parir uma canção gêmea univitelina de sua obra-prima Here comes the sun, e foi outra maravilha...


Here Comes The Sun 





Embora fosse muito ligado em questões espirituais e tenha feito várias e várias canções de inspiração religiosa, George tirava igualmente proveito de situações corriqueiras e até mesmo das adversidades mais terrenas para inspirar-se. Foi assim que nasceram "Taxman", repúdio à sanha fiscal do governo britânico, "Sue me, sue you blues", rancoroso lamento sobre os embates jurídicos travados durante a dissolução dos Beatles e "This Song", crônica bem humorada do julgamento por plágio a que foi submetido e condenado.





16 de agosto de 2012

De novo na esquina...

Em estado de greve e com muita dificuldade de organizar a rotina, ainda não consegui fazer muitas das mudanças que já idealizei para o blog. Sentei agora com a intenção de no mínimo tirar as teias de aranha. Encontrei separado o material sobre Milton e Clube da Esquina que digitalizei a partir do excelente encarte do volume da coleção Nova História da Música Popular Brasileira (2a. edição, 1976) da Abril, muito bem cuidado, com ilustrações, fotos e texto de boa qualidade. Mesmo a própria Abril hoje, quando lança algumas coleções em CD, não consegue atingir um padrão parecido com o desta coleção. Nesse ano recheado de efemérides, pretendia escrever alguma coisa aqui. Foi quando surgiu a chamada da Revista Brasileira de Estudos da Canção, que me deu a chance de participar das comemorações de 40 anos do álbum Clube da Esquina com um artigo que acabou de ser publicado (para ler, aqui). Assim, "juntei a fome com a vontade de comer"...





7 de agosto de 2012

A boa palavra de Caetano Veloso





Sobre o Caetano há muito o que dizer. Caetano, por sua vez, também teve e tem muito que dizer. O autor de Boa palavra (diga-se de passagem a que Milton Nascimento mais gosta) fez dela matéria-prima de canção e pensamento como poucos. Assim pensei em reunir alguns trechos de entrevistas ou escritos do rapaz que comemora 70 verões.


Boa Palavra, de Caetano Veloso, na gravação de Elis Regina em 1966.








Debatendo os caminhos da música brasileira em 1966

“Preocupado com as coisas que Tom, Vinícius e João Gilberto formulavam, resolvi usar seus métodos na pesquisa de nossas raízes folclóricas. Daí em diante mudei pouco, pois já havia abandonado a preocupação formal da bossa-nova e queria fazer música brasileira(...). Hoje digo o que sinto, com o aperfeiçoamento musical que adquiri e com a consciência que a realidade brasileira me dá".”in: KALILI, Narciso. “A nova escola do samba”. Realidade. São Paulo: Abril, 1966,op.cit., p.119.


Lançando a ideia de linha evolutiva

“Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos (...) se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba(...)” Revista Civilização Brasileira, ano 1, n° 7, mai. 1966, p.378.


Comentando os impasses dos anos 1970 no livro Alegria, alegria

“O som dos setenta certamente só será audível quando nós estivermos perto dos oitenta. Pelo menos só então será identificável. Talvez, pelo contrário, seja ouvido de pronto e fique para sempre inidentificável. O som dos setenta talvez não seja um som musical. De qualquer forma, o único medo é que esta venha a ser a década do silêncio.” (VELOSO, 1977:56)


Discutindo arte e mercado no mesmo livro

“Pra que alguém possa fazer qualquer coisa assim como ‘Jóia’ é preciso que as gravadoras tenham Odair [José] e Agnaldo [Timóteo]: o universitário que tenta me entrevistar e salvar a humanidade fica indignado diante do meu absoluto respeito profissional e interesse estético pelo trabalho de colegas meus como Odair e Agnaldo. Centenas de novos compositores e cantores e dezenas de velhos músicos não encontram lugar no mercado.” (VELOSO, 1977: 174)



Participando de mesa-redonda “A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque, Caetano Veloso [que chega mais tarde], Edu Lobo e Aldir Blanc”, no suplemento especial de A revista do homem n°26, “dez anos depois dos festivais” (portanto, provavelmente em 1976).

“Dá a impressão que nós da música popular continuamos adotando uma posição elitista que mantém o peso semântico da palavra poesia como algo erudito, sério, importante (...) o problema da divisão entre música popular e música erudita é muito mais de áreas objetivas de ação que de algo perceptível pela criação (...) Nós, compositores da classe média, não fazemos uma arte erudita mas também não fazemos uma arte popular – ‘popular’ entendido como algo que sai do povo. O povo é tido como uma espécie de produtor puro de coisas não contaminadas por algo que não seja a sua essência. Ver o povo dentro desses moldes é uma atitude medieval.” (p.12-13)


Avaliando o passado em Verdade Tropical

“Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acorde perfeitos maiores em relações insólitas. Isso deve muito ao modo como ouvíamos os Beatles (...) Na verdade foi uma composição de Gil, ‘Bom dia’, que sugeriu a fórmula. A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a autonomia dos criadores – e dos consumidores” (VELOSO, 1998: 169 – 170)

6 de agosto de 2012

O caso da censura

Ao ver o trecho do documentário Fabricando Tom Zé (2006) em que o mesmo discorre, da maneira que lhe é peculiar, sobre a censura nos idos da Ditadura Militar, acabei retomando alguma coisa do que escrevi sobre o tema. 
Lembro-me, durante a pesquisa, de vários casos em que a sensação opressiva que vinha da constatação de como a liberdade é frágil, como mentes canhestras podem suprimir o espírito criador, convivia com o riso nervoso diante dos absurdos desprendidos da realidade com que me deparava. Fundindo dois ditos populares numa caixadágua só, eram 'muitos chifres para poucas cabeças de cavalo'. Era simplesmente insano, mas justamente por ser tão imprevisível a censura podia ser burlada. Como escrevi...

"A censura pontual e fragmentada consistiu um mecanismo dúbio, que vetava apenas as formulações mais evidentes e textuais (podia atacar imagens, frases e letras, mas não a música). Tal permitiu aos compositores desenvolver mecanismos de burla e uma linguagem sofisticada e metafórica que a censura ou não detectava ou tolerava. Entretanto, o mecanismo acabava por produzir uma internalização automática, de forma a fazer do compositor seu próprio censor. O que a princípio poderia parecer uma espécie de jogo (lembremos da criação do Julinho da Adelaide de Chico Buarque), onde as negociações simbólicas entre Estado-mercado-artista operavam de forma a não inviabilizar a produção de discos, foi se tornando desgastante, principalmente em se tratando de apresentações ao vivo, visivelmente mais censuradas. A censura deveria ainda compatibilizar sua função política com o interesse do regime no crescimento dos meios de comunicação de massa e garantir o lucro de seus donos privados nacionais e estrangeiros.(...) Esta operação em várias frentes (execução em rádio, ao vivo, gravação em disco) e a pontualidade dos cortes permitiu à censura se compatibilizar com os interesses da indústria fonográfica. As próprias possibilidades técnicas da indústria fonográfica facilitavam este tipo de censura, como a inserção de palmas para encobrir trechos censurados do disco ao vivo de Chico e Caetano.  Ao mesmo tempo, permitia corrigir eventuais brechas e liberações, como no caso de Apesar de você : ao perceber a re-significação coletiva que promovia a canção a hino contra a ditadura, os órgãos censores a retiraram rapidamente de circulação. Vemos que a censura não se limita a uma proibição, uma repressão simbólica. Tão importante quanto aquilo que ela não deixou “passar” é o que ela deixou passar e o que ela não foi capaz de detectar. Lembremos que os diferentes momentos políticos do regime tem correspondência com diferentes estratégias de censura. De fato, no seu período inicial a ditadura conviveu perfeitamente bem com canções críticas e explícitas, para depois iniciar perseguições políticas e pessoais que ultrapassaram os próprios meios da censura.
Os prazos e burocratismos que delongavam sobremaneira a liberação de canções para shows exerciam uma considerável pressão econômica sobre o músico, na medida em que os atrasos poderiam prejudicar suas apresentações (...) A ausência de uma legislação referente à censura musical tornava-a ainda mais indiscriminada e sem critérios, e a atuação errática e subjetiva dos censores fazia ficar ainda mais complicada a vida dos compositores. As contradições geradas pela inoperância burocrática, pelos conflitos de poder entre órgãos e autoridades “competentes”(Dentel, Polícia Federal, ministérios),  pelo caráter empresarial dos veículos de comunicação dependentes do Estado pelo sistema de concessão e pelo caráter informal da censura (muitas vezes aplicada com um mero telefonema), garantiram aos compositores, jornalistas ou escritores uma certa margem de manobra. Entretanto, estas mesmas relações conflituosas, excepcionais, davam ao Estado um poder de controle para além da capacidade de reprimir idéias. O Dentel poderia suspender funcionários ou mesmo uma empresa, o que provocava o recrudescimento da censura interna e mesmo da auto-censura, uma vez gerado o clima de medo e suspeição entre colegas. O ritmo burocrático e autoritário produzia um sentimento de desesperança e imobilidade diante daquele estado de coisas. O efeito psicológico da repressão, engrossado pela censura prévia e irrestrita, acabou por incentivar a censura interna em redações e mesmo a auto-censura entre os próprios compositores." (GARCIA, 2000)

Bibliografia

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. 2000. 154 p. Dissertação (Mestrado) - História, UFMG, Belo Horizonte, 2000.[link]