Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

30 de agosto de 2013

Um Lobo nada bobo

Para homenagear os 70 anos do Edu Lobo, fiz aqui uma rápida seleção de alguns trechos de entrevistas que considero emblemáticas. Edu fala de sua formação musical, referências, amizades e criação. 

“Agora estou me lembrando de uma vitrola. (...) Lembro muito de ouvir Frank Sinatra, que tinha na minha casa. As músicas de George Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin, os compositores americanos da época. E brasileiros, muitos: Aracy de Almeida cantando Noel, as canções do Caymmi, as canções do Herivelto Martins, do Lupicínio [Rodrigues], as cantoras todas, a Nora Ney.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 226)

“(...) e o Dori [Caymmi] roubava os acordes do João [Gilberto]. E onde é que ia aprender? Não tinha songbook, professor de violão dando aqueles acordes. E o Dori ficava ouvindo e olhando (...)”“ Na trilha dos sonhos”.Revista Palavra, ano 2 n°16 ago/2000, p. 14.

“(...) toda minha história musical começou com essas pessoas: com Vinícius [de Moraes], com Tom [Jobim], com Carlinhos [Lyra], com Baden [Powell], com Oscar [Castro Neves], enfim...Foi a partir desse momento que eu fui comprando os discos, me interessando pelo trabalho deles e convivendo com eles, que eu fui virando músico.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 226)


“Então, quando eu comecei a trabalhar em música (...) uma maneira de eu fazer alguma coisa que não fosse repetir o que estava sendo feito, foi misturar essa informação que eu tinha de música nordestina com toda a escola harmônica que tinha aprendido na bossa nova. (...) Eu comecei a fazer frevos e baiões, o que não era comum na época.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 224)


“(...) quando explodiu a história do tropicalismo, eu estava bem mais interessado no que estava acontecendo no Clube da Esquina. (...) tinha uma forma definida e novas idéias musicais (...) novidade harmônicas. E novidades de canto: aí tinha o Milton Nascimento cantando de um jeito que ninguém cantava, letras interessantes, compositores extraordinários como o Toninho Horta, o próprio Milton, Nelson Ângelo, Beto Guedes, depois o Lô Borges (...) os instrumentistas, como Wagner Tiso, Luís Alves, Helvius Vilella, Nivaldo Onellas... Eles eram grandes músicos e faziam uma espécie de música progressiva, assim pós-bossa nova (...)” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 266)




Para ler entrevista recente de Edu, clique aqui.

O show Edu Lobo 70 anos, com direção musical e arranjos de Cristovão Bastos, está disponível no You Tube.




20 de agosto de 2013

Tropicar ou não tropicar, eis a questão... ou não (Na estante especial)


Pena que não se produzam aqui mais publicações como essa organizada por Carlos Basualdo, em edição primorosa da Cosac Naify, de grande apuro visual e combinando ensaios recentes, textos de época, documentos, obras e reproduções gráficas, num conjunto que agrada e ao mesmo tempo é de grande utilidade para o pesquisador interessado pelo tema. Sua única falha, de certo modo sintomática, é a ausência de músicos em qualquer dos textos analíticos ou balanços de época, que não sejam os próprios partícipes - e talvez mesmo aí um foco demasiado centrado em Caetano e Gil, vício compartilhado por quase tudo que se produz sobre o lado musical do tropicalismo. Daí que me pareceu uma ótima ideia uma postagem especial da seção "Na estante", fugindo um pouco da forma enquadrada da resenha e apresentando o livro junto com essa arguta e sintética análise do meu parceiro Pablo Castro para um trecho de um dos artigos do mesmo. Devorem sem moderação: 


“Talvez os softwares livres do ministro Gilberto Gil criem um ciberespaço onde o espírito tropicalista se reproduza em inteligências artificiais e virtuais, na periferia de um novo império americano que o rock amado com tanto custo por determinados jovens baianos dos anos 60 nem sequer podia imaginar”. Hermano Viana. Políticas da Tropicália. in: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 142.

Com essa frase lapidar é possível antever em que se transformou o conceito tropicalista, ou pelo menos o seu uso na atual guerra ideológica em torno de cultura, política e ativismo: ao invés de proporcionar uma janela antropofágica para o mundo, em que o enlatado gringo era fagocitado e reelaborado por um espírito brasileiro não subalterno, dedicado a traçar, a partir de um mosaico de referências variadas e mesmo díspares, uma salada de possibilidades estéticas emancipatórias, o que enxergamos hoje é um ataque a toda e qualquer altivez autônoma do espírito brasileiro em nome de uma panacéia do "roque amado ", envelhecido , indiferenciado e completamente desvinculado de qualquer raiz cultural -musical brasileira, uma espécie de "software livre" musical que é o único denominador comum de gerações e gerações que não conheceram a riquíssima música brasileira pré e mesmo pós-tropicalista, por força das contínuas investidas imperialistas contra a música nacional : primeiro, sucatearam a indústria fonográfica brasileira de modo a incorporá-la às majors ; em seguida, extinguiram a estreita brecha por onde a música brasileira não totalmente dominada pelo processo industrial era alçada a multidões através da Tv e do rádio , instituindo a maior "cadeia nacional " de Tv de que se tem notícia no mundo ocidental, e fortalecendo o jabá no sistema radiofônico, sufocando as expressões simbólicas locais e instituindo um filtro apertado , controlado por pouquíssimas mãos, sobre o que era alçado a nível nacional, desfazendo os laços entre a música brasileira e seu povo, descaracterizando a formação musical do ouvinte ; e, por fim, nos últimos anos , aparentemente através da participação política do próprio Gilberto Gil enquanto ministro da Cultura, se propulsionaram investidas nebulosas contra o artista e o autor brasileiro, o que o crescimento da rede FDE, agigantada nos anos Gil, deixa evidente, alimentada com dinheiro público de editais e estatais, com tentáculos na grande mídia , em vários partidos e nos primeiros escalões das secretarias de cultura e do Minc.

Também se destaque o papel de uma certa intelectualidade acadêmica com relações no mínimo suspeitas com "gestores culturais " , atuando nos dois lados da equação : como legitimadores de certos "processos" e beneficiários de determinados investimentos culturais , alguns públicos e outros de origem obscura.

Assim, a premissa antropofágica tropicalista se converteu em salvo-conduto contra toda e qualquer crítica cultural que problematize a progressiva homogeneização e rebaixamento das expressões musicais no Brasil ; um relativismo absolutista que , por meio do nivelamento por baixo de tábula rasa, iguala tudo a qualquer coisa, e , ao contrário de revelar a potência política da música, em seu conteúdo imanente, faz dela um mero pretexto para objetivos político-econômicos extremamente perversos do ponto vista do auto-reconhecimento de um povo e sua soberania artística, intelectual e cultural. Pablo Castro

Inspiração matinal e a música além dos rótulos


Ainda sobre influência das (re)leituras recentes de Michel de Certeau que estou discutindo num grupo formado com bolsistas de iniciação científica que oriento, foi que li essa pequena e certeira apresentação do grupo Oregon feita pelo meu parceiro Pablo Castro:
"Oregon, formado por Ralph Towner (violões e piano), Colin Walcott (cítara indiana e percussão ), Paul McCandless (sopros) e Glenn Moore (contrabaixo, violino e piano ) é uma música refrescante, perfeita para se escutar de manhã. Numa encruzilhada entre a música clássica, o jazz e o folk, com temas muito inspirados e grandes linhas de arranjo, mas também com saudável espaço para a improvisação, construíram uma das soluções estilísticas que adequadamente pode-se chamar de World Music, pelas sonoridades, ritmos compostos inspirados na música indiana, o caráter modal e plano de suas cadências harmônicas, embora muito audazes, fugindo das cadências tonais clássicas". 
Talvez pareça espantoso ao ouvinte contemporâneo como uma música assim possa ter sido criada e gravada no âmbito da indústria fonográfica, que via de regra associamos a formatos reproduzidos ad infinitum, sempre à cata de padrões, fórmulas e rótulos. De certo modo a expressão World Music se estabelece mesmo como um rótulo, na vã tentativa de abarcar a diversidade musical planetária e facilitar a vida do vendedor que vai colocar o disco na estante da loja. Porém a expressão de alguma forma revela a existência do inclassificável que se desloca entre as formas feitas e os espaços regrados, gerando trilhas imprevisíveis.
 

10 de agosto de 2013

O caso Fora do Eixo

Os depoimentos, longos ou não, são importantes para que se desenvolva uma perspectiva sobre um determinado objeto, no caso o Fora do Eixo. Eles se cruzam, evidentemente, com outros registros e formas de troca de experiência. Como era de se esperar aparecem depoimentos {Laís Bellini, Isabelle Gusmão, Tuizo Tozzi, Beatriz Seigner, Malu Aires George Yudice entre tantos} de toda ordem, mais ou menos coerentes, mais ou menos refletidos, ou intensos. Mas todos os que tenho lido (não só os que aparecem agora, mas há mais tempo também) de alguma forma convergem no sentido de revelar práticas nefastas que estão de alguma forma camufladas por uma retórica supostamente "revolucionária" e "coletivista". Cito aqui a precisa síntese de meu parceiro Pablo Castro: "O Fora-do-Eixo não se interessa por isso [arte]. Interessa-se por editais públicos, jogos de gabinete, tráfico de influência e marketing baseado em trabalho escravo 2.0." Simplesmente é isso, uma forma de expropriação do trabalho até mais rentável do que a do trabalho assalariado. 

Sem disposição para fazer tratados no momento, mas como afirmar, como querem alguns,  ser contra-hegemônica uma forma econômica que promove a expropriação do trabalho - não vem ao caso se é voluntária ou não é, pois no limite "trabalho" é um meio de manutenção da existência humana, o que torna ainda mais integrada uma forma de expropriação que supera até a concessão de remuneração do trabalho tipicamente capitalista que é o salário. O FdE vende "espaço", "divulgação", "exposição na mídia" (ainda que não seja a tradicional) , bens simbólicos, intangíveis, cujo valor difícil de mensurar foi cartesianamente atribuído através de um sistema monetário (cubo cards), que no fundo se lastreia, SIM, na produção material real que desemboca nos recursos públicos aferidos por IMPOSTOS, pois é das leis, editais e demais mecanismos de renúncia fiscal que são alocados os milhões de REAIS que pagam pelos eventos, circuitos, etc. Portanto, basicamente, podemos dizer que o FdE especula com o dinheiro público se aproveitando organicamente, sem qualquer contraponto, de uma política neoliberal implantada na área cultural.

Seus dirigentes, organizadores, integrantes, colaboradores, ou seja como se chamem, devem ser interpelados na medida de seu comprometimento e atitudes. Não é possível ignorar a profusão de críticas, denúncias, desabafos. Respostas serão cobradas, junto com documentos que possam esclarecer as questões nebulosas [esperando coisa melhor que isso aqui]. Mas, creio que o buraco é bem mais embaixo e a interpelação deve ser direcionada também às instâncias públicas responsáveis. Porque está claro que há aí um verdadeiro sorvedouro de recursos públicos (via leis de incentivo, editais e congêneres) destinados à cultura que revelam, talvez em uma versão superlativa, o grande problema de concepção dessa forma de financiamento público da cultura em que emergiu a figura do atravessador/produtor cultural que em modulações diversas intermedeia a criação alheia e conseguem ser mais bem remunerados que os próprios criadores [não estou obviamente ignorando as exceções, mas chamando a atenção para um padrão]. É muito grave que este modelo que se preste ao financiamento de "casas" e de uma organização em que há evidências de práticas que desrespeitam vários direitos, coação, assédio e/ou violência, exploração do trabalho, entre outros. Assim, não é o caso apenas de denunciar e criticar o FdE a partir de evidências mais do que abundantes, mas sim de conduzirmos uma reflexão sobre toda uma forma de organizar os recursos públicos destinados à Cultura em nosso país, pois é nos nós cegos do modelo do incentivo que se costuram práticas nefastas dessa rede/seita,  e que também se precariza, efetivamente, as possibilidades concretas de sobrevivência digna, independente e criativa dos que são indubitavelmente os artistas.

Para ler também:

"A arte da renda". In: A produção capitalista do espaço
Por David Harvey [aqui pdf completo do livro]

"O pós-rancor e o velho Estado: uma crítica amorosa à política do Fora do Eixo"
Por Regis Argüelles [aqui]

"Olhar de Alguém de Fora no Fora do Eixo" 
Por Shannon Garland [aqui

"Fora do eixo: raízes do ressentimento"
Por  André Azevedo da Fonseca [aqui]

9 de agosto de 2013

Recomendação: Receita de Samba: Terreiro

Há um bom tempo queria começar a fazer esse trabalho no blog de indicar, comentar, além de continuar repostando o que considero de interesse e afinado à proposta do Massa Crítica MPB. Hoje conheci o Receita de Samba e deu vontade de começar por ele. Um belo blog, com material farto e muito bem organizado.  Parabéns ao seu organizador, Vinícius Leandro Terror. 

Receita de Samba: Terreiro:  Inicio aqui no Receita uma série de cinco postagens chamada "Terreiro". Terreiro, simples assim. O samba, na minha opinião, em ...

4 de agosto de 2013

Do arco da velha

Li agora um texto do filósofo Vladimir Safatle publicado na Folha, desses que tem aquele título feito sob medida para despertar a polêmica: "Música no Brasil é prisioneira da canção" [completo, aqui]. Não entendi muito não, o que ele quer, dar uma puxada de orelha na "classe ilustrada" brasileira? Dar uma aulinha básica de produção contemporânea erudita? E os exemplos que ele cita, é pra gente ver que ele conhece? Desculpe-me o Safatle, achei isso aí "do arco da velha".
Senão, vejamos... Começa assim

"Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira." Esse diagnóstico preciso foi fornecido pelo compositor Gilberto Mendes.


Ora, o subtítulo do referido texto diz que o "Debate cultural ignora contribuição da produção contemporânea erudita". Não poderia ser mais sintomática a retomada de uma citação que está tão datada que colocá-la sem maiores ponderações é, no mínimo complicado. Se é para falar de nossa contemporaneidade, precisamos rever e ponderar as expressões usadas por Mendes na fala dele. De quem ele estava falando e de quem falamos agora? O que seria hoje a "classe culta brasileira", ou o "intelectual brasileiro". São expressões elitista mais que desgastadas. Não tenho a menor pretensão de resumir aqui décadas de discussão sobre sociologia dos intelectuais. Mas obviamente já se esgotaram as reservas rígidas de gosto ou capital cultural, implodindo com isso qualquer perspectiva de que se possa categorizar indivíduos que constituem coleções heterogêneas dos mesmos como uma "classe" ou "categoria". A seguir o "contemporâneo", essa categoria escorregadia. Não sou, nem de longe, um bom conhecedor da "produção contemporânea erudita" (comprando por um instante a premissa, problemática, de uma classificação que musicológica e culturalmente poderia ser discutida longamente...). Mas quem são os contemporâneos? Podemos tomá-los pelos que estão vivos, respirando e vivendo no mesmo tempo que nós estamos. Ok. Mas também podemos pensar, se tentamos de alguma forma dar inteligibilidade histórica à campos específicos da produção cultural, que contemporâneo é o que ainda não está, definitivamente, incorporado a uma narrativa que o posiciona em um dado contexto, tradição, momento. Não pode evidentemente existir nada fora da História, mas enquanto certos fenômenos se desenrolam estamos ainda a descobrir e tentar definir sua historicidade. Nesse sentido o "contemporâneo" do Safatle me parece já muito bem assentado e suas referências são essas já 'panteonizadas' seja no que ele toma por erudito - Boulez, Berio, Ligeti, Glass - ou popular - Caetano, Chico. Por isso mesmo me parece que não está a falar desse momento, ou da produção de agora. Seria recair num absurdo "presentismo" desconhecer que qualquer um desses compositores possa ser contemporâneo no sentido de por sua criação em diálogo com o que está acontecendo hoje, porém, por outro lado, não vejo também como não considerar o que, na posterioridade desses, ou dos que cita Gilberto Mendes, reconhecer e investigar o contemporâneo. Não há menção no texto a nada produzido por quem quer que seja nos últimos 10 anos. Não quero aqui fazer um juízo primário sobre o valor do novo, apenas entender sob qual material sustentam-se as conclusões oferecidas pelo autor.
A seguir lê-se

"Ele indicava uma estranha ausência no "sistema nacional das artes": a ausência de debate e interesse pela produção musical das últimas décadas. Mesmo comprar um CD de compositores fundamentais como Brian Ferneyhough, György Ligeti ou de brasileiros como Flô Menezes e Almeida Prado pode ser tarefa impossível. Como se essa produção não existisse e nada tivesse a dizer.
Pode-se dizer que essa situação não é muito diferente em outros países. Mas isto não é verdadeiro. Mesmo que compositores americanos como John Adams e Steve Reich recebam mais encomenda na Europa do que em seu país de origem, é inegável que a música contemporânea tem um lugar no interior do debate e na vida cultural da América do Norte e Europa. Podemos nos perguntar por que, apesar de esforços como o Festival Música Nova, isso não ocorreu entre nós."
O que seria nesse mundo globalizado de deus um "sistema nacional das artes"? De acordo com quem, a Funarte?! Espero que não... Comprar um CD remete a questões de mercado que não se pode jogar fora e colocar o peso nessa suposição de que a produção não ganha sentido entre nós - e ainda por cima botar isso na conta da canção. O que seria esse debate e vida cultural agora, com foros tão diversos e conversas tão fragmentadas. Onde seria possível localizar "a" vida cultural aqui ou em qualquer lugar? Será nos círculos fechados, nas mesas redondas das universidades, nas colunas da Folha? Vale o buteco da esquina?

Por fim, como falar, com conhecimento de causa, que a canção aprisiona? A canção brasileira (naquilo que se dispõe a se chamar assim sem desconhecer a natureza nômade da música, como queria Said, e a disposição transcultural da música popular, especialmente) liberta! Seria preciso gastar mais outro tanto de linhas para dizer o que basta ouvir? Querendo ou não, na música, foi a canção popular a principal expressão de como nos vemos e somos vistos no mundo, e o que fizeram e fazem vários dos nossos cancionistas (não precisa fazer a lista porque eles fazem parte do nosso debate contemporâneo rsrsrs) só pode ser descrito como transgressão. Sim, escreve-se teses, dissertações, tratados e artigos acadêmicos sobre a canção. Porque mudaram os intelectuais - sejam quem forem, hoje - e porque a canção é um objeto pra lá de estimulante, múltiplo e relevante. Quem seriam, me pergunto, os artífices da tal "ideologia cultural nacional"? Que país será esse incapaz de "ver" uma música não popular? Não vou dar a pecha de crítica conservadora aqui, me parece é que é crítica ruim, puxão de orelha uspiano que dá muita preguiça. O que ouviu ou não ouviu um compositor de canções no Brasil? E, por consequência, seu ouvinte? E ademais, se vamos falar de intelectuais nas universidades, nos cursos de música, não vamos encontrar lá muitos, zelosamente, "aplicando" seus alunos em Boulez, em Ligeti? Muito mais do que em Chico, Milton, Caetano, para não falar nos contemporâneos que provavelmente nem sequer tem seus nomes mencionados? E qual música não seria, em alguma medida, a eleição de uma forma, de uma convenção usada para dar inteligibilidade aos sons? A argumentação poderia continuar mas a verdade é que já estou me sentindo prisioneiro aqui na frente da tela, vou ali ouvir uma canção do arco da velha.