Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

10 de junho de 2018

Eldorado subterrâneo da canção - Microarquiteturas e Fundamental

Por Pablo Castro

Ouvindo aqui dois discos de Rafas diferentes, ambos pertencentes ao nosso idílico Eldorado Subterrâneo da música autoral mineira.


O mais experiente, cerebral, desconcertante Rafael Macedo, nos instiga e rompe todas as expectativas mais ou menos comuns do que se espera ouvir num disco. Rafa, dessa vez longe do piano, seu instrumento mais comum nos últimos dez anos, continua fazendo superposições de acordes, sempre na contramão de qualquer tipo de padrão melódico e harmônico mais comum em canções, preferindo tirar o ouvinte do conforto com formas, letras, arranjos , escalas e acordes que apontam mais na direção de um certo atonalismo que é assaz representativo de nossa época meio niilista, bizarra, sem sentido. O curioso é que esse disco de Rafa representa, em alguma medida, um retorno a algumas de suas canções mais antigas , que ele havia preterido no seu primeiro disco. "Hoje Eu Acordei Estranho" eu lembro dele tocando numa roça há uns 15 anos. Nessa época, sua mão direita ao violão ponteava umas levadas muito originais. Agora ele volta ao violão, e junto com seu duo de ferro, parceiro de muitos anos de estrada, Bernardo Caldeira e Rafael Lima Pimenta ele retoma aquela doideira calcada em Hermeto e Kurt Cobain, esse é o nosso grande Rafa Macedo.




Já o Raphael Sales , em seu disco de estréia, faz com muita inspiração uma música modal, quase "étnica", mas muito inteligente, melodias muito apuradas, uma canção muito pertinente, que ao trazer calor no coração não doura a pílula desse mundo injusto em que vivemos. Algumas canções são baseadas nos elementos astrológicos : água, vento, fogo e terra. A produção de Rafael Dutra ( outro Rafa ) faz jus ao caráter telúrico do cantor e compositor. De destaque também o timbre muito bonito do artista, e sua capacidade rítmica altamente elaborada e engenhosa ao violão. Rapha Sales já chega completo : faz letra e música muito bem, canta bonito, e está buscando o original, o autêntico, o verdadeiro. 
É ouvindo discos assim de nossos pares que nos convencemos que o financiamento à Cultura tinha que parar de focar em EVENTOS e passar a focar em OBRAS. Esses discos tinham que tocar o tempo inteiro na Incondifdência e ser celebrados.