Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

18 de novembro de 2012

O que seria transculturação? Ouça essa canção...

Como resistir à chance de unir o útil ao agradável, retomando aqui um pequeno trecho da tese que trata dessa pequena pedra-de-toque?

"[...] A canção, como já dissemos, é um meio privilegiado para transações culturais, uma vez que a voz proporciona a apropriação da outra sonoridade, da outra voz. Toninho Horta e Fernando Brant demonstram este argumento de maneira muito própria em Falso Inglês (Wonder Woman) [LP Terra dos Pássaros. EMI, 1979]:“(...)Gene Kelly/canta e dança sem eu entender(...) Beatles, Dylan, / eu tinha que inventar um jeito de falar inglês(...) Todos se encantaram com meu falso inglês/ Oh, wara ai ri iu se, uana guet folou mi rear (...)” A pronúncia do inglês, afetada pela dicção do português, torna-se o próprio centro da composição. A parte final da letra é um encadeamento de palavras e sonoridades que remetem ao inglês. Elas não têm sentido na seqüência textual da frase, embora se adeqüem perfeitamente à seqüência musical. Isto resume e resolve a canção, uma vez que o objetivo do sujeito (cantante) não era aprender inglês, e sim “inventar um jeito de falar”, criar seu próprio “falso inglês” para cantar e encantar.As transações culturais não se dão em espaços neutros, em tempos vazios. Podemos, por isso, ir ainda mais fundo na identificação do papel de mediação cultural exercido pela voz. Ocorria então uma forte penetração da música pop de origem anglo-saxã, e o surgimento de conjuntos e intérpretes que compunham e cantavam em inglês a fim de participar da maior fatia do mercado fonográfico. Falso inglês discute de forma inequívoca tal penetração, identificável aos meios de comunicação de massa: o cantante fala de estrelas de cinema (Gene Kelly), dos músicos que ouviu no rádio (Paul Anka, Bill Haley), da televisão (seriado Wonder Woman, Mulher Maravilha). No entanto, sua prática é diametralmente oposta a dos músicos que fingiam ser ingleses ou americanos. Seu inglês é assumidamente falso! Sua vontade não é copiar, mas sim reinventar através de sua própria interpretação da sonoridade daquela língua". (GARCIA, 2007, pp. 195-196)