Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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13 de fevereiro de 2013

Descascando o abacaxi: cultura e música popular brasileira


Há muitos, muitos anos atrás, sugeri a uma colega de trabalho, em tom de brincadeira, que escrevesse um livro intitulado "Descascando o abacaxi". Era uma paródia ao sucesso editorial do momento em literatura empresarial, um tal de "quem comeu o meu queijo?" ou algo assim. Ironias do destino aqui estou lançando mão justamente desse título instigado pelo comentário ao texto "O abacaxi da cultura" (Hermano Vianna) feito pelo cantautor Pablo Castro, meu parceiro de longa data e contribuidor desse blog com a bem-sucedida série da Lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina. Eis o comentário dele:

Bons tempos aqueles em que os pensadores sobre a Música Brasileira eram músicos, não intelectuais pós-modernos pedantes com máximas como essa : "O tamborzão do funk salvou a música brasileira na virada do século 20 para o 21. É vanguarda mesmo, concretismo eletrônico afro-brasileiro. Mas para quem acha que hip hop não é música, ou que Stockhausen não é música, o que estou falando é delírio. Um consolo é saber que a produção da gravadora Motown um dia foi considerada por todos os críticos como lixo comercial sem futuro." Hermano Vianna

Seguiu-se uma discussão pra lá de instigante em seu mural do facebook, com comentários que versaram sobre a natureza dos escritos acadêmicos sobre música, a abordagem antropológica, o relativismo cultural, a tensão entre tradição e inovação na música popular, o elitismo e saudosismo na crítica cultural, questões ligadas à estética, política, interesse econômico, mercado, arte, enfim, uma miríade de assuntos pertinentes e interessantes colocados em debate franco e extremamente proveitoso. A seguir vou reproduzir o que escrevi lá, salientando que o que procurei foi debater as ideias contidas no texto do Vianna, no sentido de descascar o abacaxi mesmo:

É uma discussão difícil de fazer quando não queremos retornar ou resvalar no elitismo. Nesse sentido há que se reconhecer que o Hermano contribuiu no início do seu trajeto acadêmico, seja com O mundo funk carioca ou O mistério do samba. Mas a crítica do Pablo sobre o relativismo conveniente procede, esse é um mal do discurso pós-modernista, se queremos pensar para transformar, e não apenas identificar ou conhecer. E aí me parece que começa um certo ensaismo de provocação (mas também de celebração) que justamente apela para a citação, para a referência como "índice" de um pensamento acadêmico, consistente, mas que esquece dos procedimentos que deveriam pautá-lo, como a crítica, a coerência e a densidade, substituídos por observações apressadas, chavões ou tiradas "espertas". Em certos momentos o texto fala em "aplicar critérios diferentes" para julgar, em outros lança mão de conceitos totalmente estranhos à linguagem que quer legitimar, quando diz que funk é "vanguarda" e "concretismo", e que "salvou" a música brasileira. Ué, aí pode sustentar esse juízo de valor, apoiado em conceitos da arte "de elite"? Solta um Stockhausen e um trecho de Antígona. Mas levar mais a sério o que falou o Zeca Pagodinho, aí não né... É muito cômodo um cara que tem acesso, que recebeu uma educação superior de primeira, relativizar tudo, enquanto essa massa emergente também poderia se beneficiar muito do contato com outras expressões que não são de seu universo próximo digamos assim, e que não precisam ser impostas, mas sim oferecidas. Sim, o fã "inculto" não compara Ai, se eu te pego com Jobim, até porque provavelmente ouviu Jobim no máximo na trilha de novela, e não tem a oportunidade efetiva de conhecer sua obra. E sim, isso o empobrece como ser humano, claro. Penso sempre que uma posição que preconiza a democratização e o diálogo cultural precisa ir além do mero reconhecimento, do identificado, e propor que as pessoas possam entrar em contato com o que é diferente delas, o que pode transformá-las.

Depois disso o debate continua seguindo adiante, e depois talvez seja possível fazer uma "súmula" das discussões, mas por agora tá legal pra começar a conversa por aqui. 

15 de julho de 2012

A faixa de pedestres mais famosa do mundo!

Um dos temas que abordo constantemente em minhas pesquisas é a relação da música popular com os lugares da cidade. Muitos locais prosaicos, tornaram-se, depois de serem abordados em uma canção ou retratados numa capa de disco, espaços recobertos de significados diferentes dos que a princípio guardavam. É o caso da faixa de pedestres mais famosa do mundo, em Abbey Road, Londres, local em que os Beatles posaram para a capa do álbum homônimo (falei dela em postagem anterior). O endereço dos estúdios em que os Beatles gravaram a maior parte de sua obra também foi citado na canção abaixo, do álbum de estréia da banda 14Bis:


Perdido em Abbey Road (Vermelho/Flávio Venturini)

Esses lugares também são cada vez mais apropriados em um viés mercadológico, como roteiro turístico e como "produto cultural". Reconhecer esse processo não implica dizer que se apagam outras formas de apropriação, mas que este deve ser considerado como compenente que constitui as relações, eventualmente conflituosas, que dão forma ao espaço urbano.  Os estúdios Abbey Road posicionaram uma webcam que permite visualizar "ao vivo" a faixa e as práticas de pedestres e motoristas em seu entorno [abbey road crossing webcam]. Que objeto privilegiado para observação!

11 de julho de 2012

Conjuração por uma rádio melhor

Por várias oportunidades tratei em minhas pesquisas e aqui no blog dos meios massivos e de seu papel decisivo na constituição da música popular registrada através da fonografia. Uma das linhas de argumentação tem sido mostrar, via de regra com material de época, que a programação dos referidos meios já comportou, em destaque, o que representava então o sumo da produção autoral em matéria de música popular brasileira. Isso não significa um posicionamento num dos pólos da percepção dualista em que se oponha, para emprestar os termos de Umberto Eco, os apocalípticos e os integrados. Para reconhecer os meios e sua complexidade no contexto da modernidade e do capitalismo, há que se dar conta de suas contradições e de sua historicidade. E ao fazermos isso, abandonarmos a percepção desses "meios" como entidades fechadas em si, para percebê-los envolvidos em mediações protagonizadas por diferentes atores da sociedade, na linha do que propõe Jésus Martin-Barbero em Dos meios às mediações.
Aqui não quero me alongar numa exposição teórica, pois escrevo mais para alinhavar ideias que ocorreram a partir do apelo/crítica que meu parceiro Pablo Castro (cuja essência procurei capturar na citação abaixo) lançou hoje via facebook e durante o dia foi debatido por vários participantes da cena musical belorizontina. 
"Há algum tempo eu queria fazer essa crítica e esse apelo à nossa Rádio Inconfidência: toquemos nossos artistas, não como iniciantes ou decadentes, mas como se fossem os mais importantes do país e do mundo , não apenas por serem eles daqui, mas acima de tudo porque a música que se faz aqui não está atrás da música do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Pernambuco, ou da Bahia, ou de Nova Iorque ou de Londres, em qualquer quesito importante, mas está à frente em pelo menos uma coisa : o ineditismo, por essa música autoral local hoje ser um tesouro submerso e francamente desperdiçado, como rios que nunca desaguam no mar, deixando de cumprir sua função social: se associar à vida das pessoas ser compartilhada e dar identidade ao que somos, onde estamos e no tempo em que vivemos! (...)  infelizmente a programação esmagadoramente predominante da Inconfidência consiste de um repertório das décadas de 70 e 80, ou versões pops dos mesmos velhos clássicos, e acaba por não formar público para artistas mineiros e fora da indústria ou de segmentos muito específicos do eixo Rio-São Paulo.Melhor do que tocar um disco inteiro na íntegra, talvez fosse escolher 2 ou 3 músicas mais radiofônicas de cada artista, e tocá-las com a frequência com que se tocam sucessos de 30 anos atrás, que muita gente conhece, mas que são anacrônicos. Não me parece razoável que uma rádio pública de uma cidade onde se produz tanta música de qualidade tenha uma programação tão desvinculada dessa produção. O que é contemporâneo na programação da inconfidência, parece vir de um filtro pop ( no lato sensus, o samba hoje é super pop ) muito orientado pela produção pop\samba carioca, particularmente, e fica patente que , salvo alguns nomes mineiros, mais altos na pirâmide hierárquica simbólica da MPB mineira, como Milton e o Clube da Esquina, Skank, Pato Fu, Vander Lee, todo o resto dos artistas não conseguem se "infiltrar" nessa companhia ilustre. Inverter essa equação, priorizando a produção musical local e contemporânea, formando público que não terá outra alternativa pra ouvir esses artistas, que hoje, de forma marginal e independente, tentam criativamente revigorar a cansada linguagem da canção e de outras formas de música popular, faria muita diferença nas nossas carreiras e consequentemente nas nossas vidas. O ouvinte imagino que também gostaria de conhecer essa produção. Se a Inconfidência fizesse uma pesquisa de repertório de alto nível dos últimos 10 anos da produção mineira, com certeza não faltariam canções popularizáveis e acessíveis ao público ouvinte no horário nobre, não num programa específico que vai tocar uma vez e quase nunca mais. Os programas específicos é que deveriam se ater a relíquias do passado." (link para acompanhar)
Imagino que a avaliação feita sobre a programação da Inconfidência, rádio estatal mineira, possa de alguma forma ser estendida a outros veículos de perfil semelhante. Da mesma forma que reconhecemos a música, em geral, ou qualquer uma de suas vertentes específicas, como a canção popular, como fenômenos que se dão no tempo, e que portanto se transformam pela ação dos homens, assim também devemos olhar os meios, incluindo aí o rádio, que não TEM que ser assim ou assado, mas se TORNA, entre outras coisas condicionado pelo lugar que ocupa no contexto da sociedade. E aqui tratamos de uma rádio pública, sobre a gestão da qual TODOS NÓS, como CIDADÃOS, temos o direito de opinar e interferir. Não podemos nos projetar para fora do Estado numa democracia. Do mesmo modo, aquilo que podemos, por convenção chamar MPB autoral, nem sempre esteve posicionada em certos "nichos" ou "faixas" da programação, e seu lugar em nossa história e cultura nos permite desejar e batalhar por reposicioná-la. Me incomoda demais o lugar-comum que se criou em torno do que se denomina, vagamente, de música independente, que na verdade se torna, sob um certo prisma, dependente de políticas públicas de financiamento cujas falhas temos debatido com insistência. Quase que automaticamente, imputa-se nesta "rubrica" o alheamento em relação a um público mais amplo e aos canais de circulação que não sejam "alternativos", reproduzindo por tabela uma divisão social do gosto cuja superação parece ser justamente (pelo menos para mim) um dos motores estéticos, políticos e sociais de nossa produção em música popular.
A ideia de uma carta-manifesto direcionada à Rádio Inconfidência (sugerida por nosso amigo Guilherme Lentz e progressivamente encampada por vários participantes da discussão), além de efetiva, me parece que tem alta carga histórica e simbólica. Desde já me prontifico a contribuir com sua redação. Sugiro, ainda, que seu lançamento se dê num evento público, que seja marcante e mobilize o melhor possível não só quem se envolve neste debate, mas a própria cidade. Não posso deixar de notar que o nome da rádio é Inconfidência, e o que esse nome evoca, numa leitura histórica que não seja laudatória, é a capacidade humana de se rebelar contra o "estabelecido". A critica/apelo, da forma que está posta, é justa e construtiva, e respalda uma Conjuração por uma rádio melhor.

P.S. 2019
Quase não toquei na Inconfidência e se continuar no rumo que vai, de quase passarei a nada kkkkk. Brincadeiras a parte, acabei relendo essa postagem antiga do meu blog em face desse perrengue recente. Ele é do tempo do domínio tucano, em 2012, e qualquer fantasia de que a rádio poderia reencontrar-se com o caminho de sua grandiosa História e até reinventar-se, parecia então distante utopia, o que não tirou o brio de tantos que se envolveram, esses anos todos que passaram, nessa luta mais que digna. Definitivamente, terá sido o único feito que o mandato de Pimentel deixou digno de lembrança. Agora novamente vemos a rádio Inconfidência ameaçada de sucateamento pelo governo Zema, velho lobo em pele de cordeiro novo. Esse pequeno feixe aceso num tempo difícil, ainda que - pasmem - não tão sombrio quanto o atual, que foi catapultado por um daqueles incisivos libelos do meu grande parceiro Pablo Castro, calhou de voltar às minhas vistas hoje só pra lembrar que se cairmos, vamos nos erguer novamente. E seremos Gigantes do Ar. 

Tomo a liberdade de compartilhar também o depoimento contundente, coberto de razão, dignidade e serviços prestados, do radialista Ricardo Parreiras:




13 de julho de 2011

Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles

 Publicado meu artigo "Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles" na revista Estudos Históricos da FGV. E o mais legal é que além da versão eletrônica, ainda tenho direito a alguns exemplares impressos. Por tudo que os Beatles representam pra mim, acho que foi um dos trabalhos mais importantes que realizei.

Resumo

Meu propósito é investigar como a música popular, através de trocas culturais que marcam a construção de identidades atribuídas a grupos e lugares, define vínculos e fronteiras no tecido urbano, ao mesmo tempo em que evidencia as trajetórias traçadas pelos músicos que o atravessam. Para tanto, optei pelo estudo formal e contextual de Strawberry Fields Forever e Penny Lane, canções dos Beatles que produzem sentidos sobre “lugares” e que congregaram memórias e identidades construídas em sua experiência como citadinos no deslocamento desde seu passado em Liverpool ao presente de então em Londres.
(clique nos links para ver os filmes promocionais oficiais das duas canções)
Um trecho do artigo
Creio que é possível concluir que a criação dos músicos populares confere significado a suas relações com o espaço urbano, seja o da cidade natal ou o da capital em que então residiam. Para Lennon, vivendo entre o que considerava uma restritiva vida suburbana e o anseio de com ela romper, o lugar da infância é apropriado como imagem, campo de sonho transfigurado em passagem para outro lugar, em que a realidade percebida e a validade das convenções podem ser questionadas. McCartney, lançando mão de detalhes inventados, traça o panorama “realista” de um lugar da cidade povoado por vários personagens que interagem na concretude de suas ações - “o barbeiro faz a barba de outro freguês”; “vemos o bancário sentado esperando por um corte”; “o bombeiro entra fugindo da chuva” – percebendo o extraordinário no corriqueiro: “muito estranho”, comentário literal e musical. No próprio lugar, a canção “(...) re-contextualiza o mundano e torna visíveis os detalhes subestimados da vida cotidiana” (KRUSE II, 2005). Mas a espontaneidade desse mundo suburbano é posta em dúvida quando notamos que a bela enfermeira que vende papoulas “atrás do abrigo no meio da rotatória” sente-se “como se ela estivesse numa peça”. E “ela está, de qualquer modo”, na peça da nostalgia idealizada de seu compositor. Circulando pela cena underground londrina, Paul refinava um modo de re-apresentar o passado e a vida suburbana que, na sua teatralidade, era simultaneamente cômico e belo, humor que pode bem ser tomado como ressonância das ruas de Liverpool.
Se constroem lugares diferentes, as duas canções lançam mão de material semelhante. A ambigüidade característica da elaboração formal, entre o familiar e o inovador; a mistura de gêneros musicais por apropriação irônicas sem ser depreciadoras; o convívio entre referências sonoras ao passado e o emprego de técnicas de gravação que lhes confere outros significados; uma proposta estética que borra as fronteiras entre arte e pop. Ao examinar as memórias e trajetos dos Beatles, constatamos que a experiência urbana afeta suas criações nos cruzamentos entre o provinciano e o cosmopolita, entre a nostalgia e a vanguarda, entre o sonho e a realidade. Ao adentrar o jardim de morangos e caminhar pela alameda do centavo, de olhos e ouvidos abertos, encontramos um lugar entre Liverpool e Londres, entre a tradução em palavras e sons das recordações sobre o norte e a infância e a absorção dos comportamentos de vanguarda em uma busca constante por descobertas musicais.