Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

29 de novembro de 2023

COISAS QUE FICARAM MUITO TEMPO POR DIZER



Fazer canções é um ato de alegria desmedida. Ainda mais, pra mim, quando o caráter lúdico envolvido não implica numa redução à banalidade. No último final de semana estive com o parceiro Pablo Castro e compusemos como nos velhos tempos, duas canções. Uma delas, da qual falarei noutra ocasião, foi praticamente "em tempo real", ele ao violão tocando o mote inicial, eu no papel e caneta mesmo. A segunda era um sambinha que já tinha a música pronta e um primeiro verso, sugestivo, "coisas que ficaram muito tempo por dizer". Esta evidente citação, vale lembrar, está também no título da minha dissertação de mestrado sobre o Clube da Esquina. Quando a gente já está a tantos anos nesse negócio, às vezes é preciso inventar uma moda diferente pra variar. Propus então levar adiante o lance da citação, e fazer a letra inteira assim. Considerando o tamanho do desafio auto-proposto, gravei e levei pra casa. Na tarde de domingo, tomado pelo impulso, muito por conta de ter feito a outra num jorro só de menos de uma hora, sentei diante do computador e espalhei um bocado de encartes de CDs na mesa. Para tornar a coisa mais interessante, eu decidi que iria "picotar" e justapor os pedaços de versos citados. E para tornar o jogo ainda mais divertido, era preciso que essa bricolagem adquirisse um sentido discursivo e político, o que simultaneamente tira a sensação de mera sucessão de referências. Eu que não sou formalista de plantão, evito metanarrativas e excessos intertextuais, nessa foi inevitável. Fiquei me sentindo um verdadeiro cruzamento de Dr. Victor Frankenstein com Stanislaw Ponte Preta. Fiz muitos versos bárbaros rsrss, não é auto-elogio, é que segundo a classificação de métricas, versos com 13 ou mais sílabas são "bárbaros".
Para terminar, tive que evitar o "efeito bye-bye Brasil", ou seja, a tendência a tornar a letra kilométrica simplesmente porque depois que a gente pega o embalo é difícil acabar com a curtição. Aliás, é legal que o próprio ouvinte pode entrar na brincadeira, tentando identificar as canções de onde os trechos foram tirados e baralhados. Fica aí o convite!
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Música: Pablo Castro Letra: Luiz H. Garcia
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Falo sem saudade falo quase sem querer
Chega de miséria em qualquer canto ou lugar
Se o mundo é um moinho, gente é feita pra brilhar
Flor do Lácio, minha língua,
Bossa, Rosa, João
A lição que aprendemos de cór
Tão boas palavras de cantar ao coração
Pra quê filosofar em alemão?
Tá lá um corpo atrapalhando estendido no chão
A mão que faz a guerra também toca violão
A gente não quer só comida, bica no quintal
Sede de viver tudo é um grande carnaval
Da barriga dos mistérios
Morro dois irmãos
Um mais um é sempre mais que dois
Diz a voz do povo que amanhecerá mamão
É melhor fazer uma canção
Bem se quis depois de tudo ainda ser feliz
No viaduto a equilibrista bisa por um triz
Com sol e chuva o sonho ainda pinta por aí
Quero mais saúde tutti frutti açaí
Flor do Lácio, minha língua,
Bossa, Rosa, João
A lição que aprendemos de cór
Tão boas palavras de cantar ao coração
Pra quê filosofar em alemão?
*P.S. reparem que há permutações possíveis na execução rsrs.

2 de novembro de 2023

Agora e depois: os Beatles e a perenidade do efêmero

Acabei neste instante de ouvir Now and Then, canção que acabou de ser lançada e anunciada como a "última canção dos Beatles". O novo single consiste em mais uma das canções de Lennon que Yoko deu aos remanescentes da banda na década de 1990 para o projeto Anthology e acabou não sendo completada à época. Dificuldades tecnológicas para isolar a voz de John Lennon foram superadas a partir dos recursos de "demixagem" que a equipe do cineasta Peter Jackson desenvolveu para o recente documentário Get Back. Mas até a própria existência desse extenso material torna um estelionato a campanha publicitária que envolve este compacto (que é também testemunha da obsessão retrô ao ter mesmo uma versão limitada em fita k7), quando alega que se trata de uma "última canção". Isso não será verdade hoje, nem amanhã, nem mesmo depois que o último deles deixar este planeta. Uma quantidade de material oficialmente inédito gravado incomparável permanecerá à mão e será com certeza retrabalhado, embalado e comercializado quando a ocasião for propícia. E aí certamente uma campanha publicitária igualmente infame e desonesta irá anunciar que "uma nova canção dos Beatles" surgiu das cinzas. Claro que é possível todo tipo de contrargumentação, como amigos me apresentaram em conversas recentes (em especial Vlad Magalhães), uma vez que as contribuições de Ringo Starr e Paul McCartney ao resultado final da gravação foram produzidas "agora", e não "antes", mas a própria lógica da fonografia, desde seus primórdios, desafia constantemente essa distinção. O que estamos ouvindo em 2023 é o arremate de uma demo criada nos fins dos anos 1970s, parcialmente retomada na década de 1990 e finalizada no presente ano - mais de 40 anos em registros de som estão acumulados, como num palimpsesto, em Now and Then.

Minha implicância com a estratégia comercial não me impede de reconhecer que os herdeiros, a empresa Apple e quaisquer outras que detém direitos e interesses econômicos associados à obra dos Fab Four deverão seguir contrariando as previsões dominantes no tempo em que se desenrolou a carreira dos quatro, em que os próprios diziam por vezes que seria muito ela durar uns bons 5 anos. Também não me furto a comentar que relançar as coletâneas azul e vermelha, ato oportunista e caça-níquel evidente, vai na mesma direção. O êxito previsível de tal manobra se somará a outros fatos contemporâneos, como o grande sucesso que está alcançando o novo disco de inéditas dos Rolling Stones, para que constatemos que o rock morreu pero no mucho, já que a fusão aparentemente paradoxal das mais avançadas das mais avançadas tecnologias com a sintomática nostalgia de um tempo "homogêneo e vazio" (para citar o filosofo W. Benjamin) não apenas afaga os ouvidos que embalou por décadas mas conquista improvável novas audiências para os octagenários ainda sentados no alto de seu Olimpo discográfico, ou eventualmente presentes etereamente por meio de suas almas esquizofonicamente manifestadas. 

Eu que sou ateu não acredito em fantasmas, mas há poucos dias estive em Nova York e preferi passar meio de lado pelo edifício Dakota, indo logo prestar meus respeitos à memória de Lennon no mosaico tributo ao autor de Imagine e outras tantas pérolas no Central Park. Now and Then não alcança a mesma inteireza de suas irmãs de berço gravadas no mesmo logradouro - especialmente Free as a bird, que o tempo tratou de dar brilho e destaque na estante porque de fato foi burilada de um modo que evocou melhor a energia da banda, com acréscimos notáveis dos três -  o que atribuo sobretudo à exigência de Harrison para que Jeff Lynne, seu amigo pessoal e colega de Traveling Wilburys, fosse o produtor, assegurando espaço para seu protagonismo ante eventuais mandonismos de Paul. Esta agora claro que é uma canção que traz no germe o finíssimo gênio de Lennon, capaz de descobrir o grandioso no banal como poucos, mas as novas camadas que lhe foram sobrepostas não a alçaram tão alto quanto as anteriores. De repente McCartney conscientemente se conteve, deixando reverentemente que a voz marcante do parceiro fulgurasse com mais força, tocando um baixo protocolar e mandando um solinho de slide mais discreto - sutil e justa homenagem a George (como destacou Rafael Senra), que de algum modo compensa que sua contribuição desta feita tenha sido restrita a partes de guitarra esboçadas nos tempos do Anthology e vocais de fundo extraídos de gravações originais remixados à moda do projeto Love. Seu arranjo de cordas, em dupla com Giles, herdeiro do chamado 5º beatle, não compromete mas também não decola como nos grandes voos do saudoso Sir George Martin. E de certa forma ele pagou pra ver como autor ao retirar cirurgicamente o antigo 'b' da demo, que eu particularmente achava lindo e que o parceiro Pablo Castro apontou como "escapada harmônica". Além de ressaltar as virtudes de John como compositor, o trecho propiciaria oportunidade para alguma surpresa. Ringo Starr, sem surpresa, mais relaxado, segue mantendo seu toque de Midas como baterista que veste a canção da forma mais adequada, sempre sabendo a hora de ficar ao fundo ou de preencher os espaços com viradas certeiras e timbres adequados, criando um arranjo sem pirotecnia que é como a rota de navegação que leva o barco de qualquer gravação até seu porto seguro. 

Now and then, ecoando o passado, soando no presente e simultaneamente se projetando no futuro, sintetiza de algum modo a empreitada de garantir perenidade ao efêmero, à qual os próprios Beatles se lançaram como artistas desde o ponto em que sua inventividade e carisma desafiaram os padrões da indústria fonográfica de seu tempo. A despeito de qualquer publicidade duvidosa, ainda iremos ouvir muito falar sobre e ouvir tocar as músicas dos Beatles na jukebox do patrimônio musical da humanidade.

A demo orginal: 


A versão recém-lançada em single: 





6 de agosto de 2023

Adeus a Carl Davis, transcriador do Oratório de Liverpool

Mais uma partida das que inevitavelmente serão colecionadas e sentidas. Em 1991, quando foi lançado o Oratório de Liverpool, os meios para ter acesso a este tipo de lançamento fonográfico aqui eram escassos e caros. Provavelmente o maior ato de contrição e disciplina religiosa que cometi naquele ano foi ficar pacientemente em posição para gravar em fitas k7 a transmissão dessa bela obra, realizada pelos diligentes apresentadores do saudoso Alvorada Beatles Club. Depois me lembro de ouvir até gastar, deslumbrado, esse registro precário que para os meus ouvidos ainda pouco versados no cardápio de ousadias que músicos desafiadores de fronteiras - inclusive brasileiros como Jocy de Oliveira, Gismonti, Hermeto Pascoal, entre outros - já haviam realizado àquela altura do campeonato, soavam como ouro garimpado no fundo da mina.

Passados muitos anos e vencida essa empolgação desmedida - que nos meus 15 anos regava tudo que envolvia Paul McCartney - não embarco tanto nessa viagem mas isso não oblitera o valor dessa colaboração. Sendo assim fica esse pequeno tributo a Carl Davies, o maestro que teve a diligência e meticulosidade de transcriar para partitura de orquestra a imaginação musical indomável do ilustre liverpudliano.



5 de julho de 2023

Música, mercadoria e overdose de nostalgia



E o assunto (extra)musical do momento é o comercial da Volkswagen que apela para a overdose de nostalgia ao criar digitalmente com auxílio da dita Inteligência Artificial um dueto entre a cantora Maria Rita e sua mãe, Elis Regina, eterno ícone da MPB, cantando - devidamente editada - a marcante "Como nossos pais", pérola do não menos icônico compositor Belchior, também já falecido. Não vou compartilhar o comercial, que achei de mau gosto, pra começar, nem me dar ao trabalho de fazer uma síntese das críticas que pululam nos meios. Para isso deixo duas matérias, de Veja e Uol. Prefiro, oportunamente, citar os textos de gente que sabe mais do riscado e já deu seus pitacos pelo facebook, e que adianto que valem ser lidos por completo.

Mais cedo eu assisti a coluna do Bob Fernandes [aqui], que inicia com uma referência ao jornalista italiano Roberto Calasso, que chama nossos tempos de "era da inconsistência". Tenho escrito sobre a tremenda força da dissociação cognitiva, que vem servindo para que muita gente possa manter no mesmo cérebro e corpo pensamentos e práticas completamente incompatíveis sem qualquer arranhão em sua autoimagem ou modo de ver o mundo e viver a vida. Encaixa perfeitamente com a exposição que o Bob faz do livro do Calasso. 

Isso nos serve para apoiar a compreensão de dois fenômenos conjugados profusamente ao longo do comercial. Um é a exploração da nostalgia como mercadoria, o outro é o uso da polissemia da canção para promover sua interpretação e recepção contrasensual. Na sociedade capitalista do espetáculo contemporâneo, tudo vira mercadoria como Marx previra, mas também se torna solúvel no grande show de luzes da existência inundada por telas de cristal líquido ou LED. Nessa operação não se perde de vista nem mesmo o passado, pois nada está perdido dentro do dominate "presentismo" de que nos fala o historiador François Hartog. Vemos a exploração desse mote desde o plano genérico e coletivo de evocação da estética "retrô" dentro de uma versão desidrata de acontecimentos e processos históricos convertidos em trechos de videoclipe, até o plano que vaza a esfera privada ao mercado público ao transpor sentimentos de luto e perda em algum tipo de saudade recalchutada e embalada em atmosfera otimista. Diante do recorrente medo humano da morte, a tentação pela eternidade de fachada é enorme. Volks e Maria Rita, aí, bebem da mesma água. Oportuna consideração do atento crítico musical - entre outras peripécias - Túlio Villaça:

"E o que dizer da recriação da Elis Regina por IA? Não poderia ser mais apropriada. O engraçado é que a Maria Rita, depois de emular o repertório da mãe nos dois primeiros álbuns, deserdou e foi ser sambista, uma decisão sábia em termos de carreira e possivelmente psicanalisticamente também. Ou seja, ela não repete a mãe, o que é ótimo (embora eu goste muito dos primeiros álbuns). Mas aqui ela é a própria representação do filho que repete os pais. E deve ter mesmo ganho um bom dinheiro, à parte a questão ética de ela ter permitido o uso da imagem da mãe em algo que ela não sabe se a mãe concordaria em fazer". [Túlio Ceci Villaça, via facebook] 

Desde que constatei que a capa do primeiro disco de Maria Rita era a perfeita reprodução da foto de sua mãe em entrevista ao caderno Folhetim da FSP no final dos anos 1970s, tomei antídoto contra a contagiante expectativa que seu timbre de voz instilava. Ela parecia ter decidido fugir ao "projeto", como aponta o Túlio, mas cede esporádicamente à tentação, dessa vez com o agravante de nitidamente trair a memória da mãe, notória desafiadora das ordens estabelecidas, seja a do mercado, seja a da Ditadura Militar que a montadora alemã apoiou flagorosamente, e contra a qual a composição "Como nossos pais" que ela vestiu tão bem, igualmente se batia. Aproveito para retomar o que escreveu Makely Ka, um cantautor de mão e boca cheia que também mete bronca na crítica:

O roteiro da peça publicitária usa símbolos icônicos da contracultura, pessoas viajando em kombis nos anos 70, músicos, acampamentos na fogueira, um casal transando dentro de um carro, o ideal de liberdade e toda uma estética hippie, para vender uma ideia diametralmente oposta ao que diz a letra da canção. Belchior, o compositor atormentado, que inclusive morreu no seu auto-exílio completamente avesso à mídia, à publicidade, a qualquer tipo de concessão ao mercado. [Makely Ka, via facebook]

Se as críticas pipocaram é porque a inversão de sentido é muito gritante, além de óbvia. Qualquer pessoa com o mínimo de informação e conhecimento sobre a história do Brasil e da sua música popular há de sacar imediatamente o abuso que se passa.Porém, os publicitários, a Volks, a Maria Rita, está todo mundo contando com a dissociação cognitiva e a desmemoriação coletiva. Onde Belchior havia deixado uma autocrítica de geração rasgante e sem condescendência, desafiando aquela "juventude" a crescer sem imitar os pais (e nesse sentido ele toca a mesma corda que Lennon, um de seus maiores inspiradores), eles propõem uma viagem de kombi por um tempo sem qualidade ou aresta, "homogêneo e vazio" como alertava há mais de um século o filosofo - alemão - Walter Benjamin. Por isso precisamos manter a vigilância, e aprofundar o conhecimento do passado, para não esquecer. Eis um depoimento citado na matéria do Uol que considero válido retomar:

Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen, já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco".Lucio Bellantani, ex-funcionário da Volks, em depoimento à Comissão da Verdade de São Paulo.

Não sejamos os mesmos. Menos nostalgia, mais História. Menos mercado, mais Música.
Em nome disso termino pondo pra tocar Belchior na voz de Elis:



27 de março de 2023

NOVA ARCÁDIA

Compor canções é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Claro que quando tratamos desse assunto em nossos dias inevitavelmente situamos tal ofício em relação ao meio que acaba exercendo sobre ele forças centrípetas e centrífugas, que é a indústria fonográfia. Ainda que qualquer canção possa nascer, e mesmo existir por anos e anos totalmente alheia aos processos que a fonografia estabeleceu, esse será um parâmetro inevitável para avaliar e experimentar sua aparição no mundo. Quero, com esse preâmbulo, introduzir meu relato sobre duas sensações complementares, que não percebo como contraditórias. A primeira é que compor - para mim eminentemente em parcerias - é um trabalho com inquestionável validade em si mesmo, de modo que cada criação merece ser apreciada desde a gestação até o momento em que se consolida aos olhos e ouvidos dos compositores. A segunda é a gravação, ou seja, a transmutação de uma canção da sua forma original, nua em pelo, por assim dizer, numa aparição diversa, vestida com todo tipo de procedimento mediado por uma aparelhagem que permite o que se assemelha a costurar uma indumentária com arranjos, timbres, solos, vozes, entre outros elementos musicais, e até mesmo alguns extramusicais, para vesti-la. É possível gostar das duas coisas, dos dois momentos, e se eu posso me permitir essa analogia, com o devido desconto, é como celebrar o nascimento da criança e depois um grande momento da vida de um ser humano, como uma formatura ou matrimônio, por exemplo. 



É portanto uma felicidade em dobro quando sai uma canção de um parceiro comigo, como acabou de acontecer com Nova arcádia, que fiz com Rafael Senra,  em seu disco O sereno da noite [ouça todo][veja a página especial], ainda que "disco" hoje remeta sobretudo a um conceito que reúne canções num lançamento simultâneo, pois tornou-se cada vez mais raro e difícil lançar tal tipo de "objeto" em sua tradicional forma física. Aliás, é sobre isso que versará, entre outras coisas, a pesquisa de pós-doutorado que irei realizar a partir do meio do ano (assunto quiçá para outra postagem). 

Nova arcádia faz parte de uma primeira leva de parcerias nossas, que pelos meus registros começaram a tomar forma em 2017. Quem lê o blog portanto irá imediatamente perceber a distância que pode haver entre a composição e a gravação de uma canção, e olha que pode ser muito maior que isso. Mas a proposta aqui é falar de criação, então vamos lá. Enquanto ouço a despojada demo que o Rafa me mandou, dedilhando o violão e cantarolando a melodia, penso que de alguma forma o letrista tem que "advinhar" o que pode vir a ser a canção, inclusive na virtualidade de sua gravação. Compartilhamos entre outras afinidades e interesses, o gosto pelo rock progressivo (ainda que ele conheça infinitamente mais o gênero que eu) e a temática de pesquisa sobre Clube da Esquina (ambos tratamos disso em nossas dissertações de mestrado). De posse desse "esqueleto", que além da própria combinação entre harmonia e melodia já propunha uma estrutura para os versos, me ocorreu trazer para a letra algo que traduzisse a sensação de algo épico e ao mesmo tempo "clássico", por assim dizer. Me ocorreu que a mineiridade, tópico que o Rafa tratou com muito mais delonga do que eu ao escrever sobre o Clube, era um tema que respondia a essa necessidade, e ao mesmo tempo ganha em peso experiencial a partir da ida dele para lecionar na UNIFAP no Amapá. Foi ficando definido pra mim que deveria explorar a ligação da Inconfidência mineira com o Arcadismo, evidente na participação destacada de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Daí obviamente temas neoclássicos como a mitologia, a natureza e o elogio da razão. Sem o mesmo rebuscamento, eu me inspirei nas letras de Peter Gabriel no tempo do Genesis, como The fountain of Salmacis. Não sou de grandes formalismos mas às vezes pinta uma ideia, como a reiteração do "v" que começa já no primeiro verso. No mais recorri a imagens bastante manjadas, e é como se o "eu lírico" fosse uma personagem de época, soltando bordões  iluministas e citando deuses gregos. Tem uma lembrancinha ou duas também das aulas de Política na graduação, uma pitada de Hobbes aqui, de Rousseau ali. Acho que condiz bastante com o rumo que a música tomou na gravação, esse tom assertivo e grandiloquente. E se o disco não tem um conceito de amarração tão explícito, esse tópico da noite é recorrente. Na canção claramente a treva, a sombra, são representações da falta de esclarecimento e civilidade. O "nova" entra como uma espécie de vontade de atualização, ou mesmo uma projeção utópica, a contrapor a distopia que tomou conta dos últimos tempos. Certamente o "eu lírico" da canção é mais ingênuo do que eu, mas gosto de pensar que sempre essa emissão dá ao compositor a oportunidade de deixar algo de si mesmo quando, simultaneamente, se distancia pela oportunidade que a imaginação lhe confere de ser "outro". 




Nova Arcádia (música de Rafael Senra, letra de Luiz Henrique Garcia)

Entre as trevas a vista
se insinua o sinal
Imortal
O fogo que deu Prometeu
para a terra iluminar

nos cantos escuros
nas Minas Gerais
onde mais
se forje no ferro a razão
para o medo aprisionar

longe do alvorecer
e deixar
nosso povo escolher

sem calar
toda voz que se erguer
pra falar
do que ainda há de ser

Entre as sombras mais vastas
Esgueira-se a luz
Corpos nus
Apolo conduz pelo sol
para a vida completar

num canto maior
Nova Arcádia de paz
onde mais
se forje no ferro a razão
para o medo aprisionar

longe do alvorecer
e deixar
nosso povo escolher

sem calar
toda voz que se erguer
pra falar
do que ainda há de ser