Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

12 de novembro de 2021

Gilmortal


 

Este sempre foi um dos meus discos preferidos do Gil, alegria extra tê-lo em vinil. Transpira humor moleque, ousado, desafiador, ressaltado ainda mais pela participação dos Mutantes, certamente no ponto culminante da aproximação deles com o tropicalismo, musicalmente falando.
Há uma saborosa ambivalência na nomeação dele para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Claro, esse jovem iconoclasta aí mudou muito, como tinha que mudar mesmo. Aliás fez da mudança um mote constante de sua arte. A vetusta ABL também muda, mas a passo de tartaruga. Agora os caminhos se cruzaram, como há décadas atrás não seria possível. Não deixa de ser um sinal significativo de disposição pelo encontro, e até uma pitada sutil de autoironia, sempre necessária às pessoas e instituições que desejam alguma forma de renovação. 
Sem deslumbre, vejo com bons olhos (e ouço com bons ouvidos) a "consagração" de um dos nossos principais cantautores como "imortal". Lógico, a ABL busca respaldo e repercussão, sentando em uma de suas cadeiras um representante indubitável da excelência alcançada na canção popular brasileira. Vamos combinar que demorou demais. Acho desnecessário discutir a pertinência da indicação, aliás acho que se a porta abriu tem uma fila bem grande aí de compositores cujo trato com a língua portuguesa à brasileira é inclusive muito mais meritório e relevante do que o dispensado por figuras que já estão lá sentadas. Falar que há politicagem? Redundante. Reconhecendo aliás, o traquejo político de Gil, podemos até esperar que ele lidere nos próximos anos uma disposição interna por abrir mais a instituição, quem sabe aproximá-la um pouco do "dia-a-dia" cultural de nosso país. Capacidade e atenção midiática para tal, ele tem. 
Por fim, ante certos comentários apressados e desmemoriados cabe lembrar que a Casa teve entre seus fundadores Machado de Assis. Logicamente sua composição, ao longo de décadas, reflete sobremaneira o componente de desigualdade social e o traço étnico decorrente da escravidão que por aqui vigorou por séculos, amém. Mas reflete igualmente, desde o início, os conflitos e contradições que disso decorrem. Teve, nos seus primórdios, por exemplo, figuras destacadas do abolicionismo, como Castro Alves, um dos patronos, e entre os fundadores José do Patrocínio, filho de vigário com uma negra mina escravizada. 
Como diz o grande Peter Burke, a função do historiador é "lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer". Ouçamos pois a voz que ressoa desde 1968, para saudar o que há de mais hilário e alegórico na conversão carnavalesca da farda da ABL vestida, em distintos contextos, por Gilberto Gil.