Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de dezembro de 2020

McCartney fez a trinca

O lançamento de um disco novo de estúdio de Paul McCartney por si motivaria uma postagem. Não preciso chover no molhado celebrando o talento de um dos maiores cantautores do mundo em atividade. Provavelmente não há paralelo no universo da música popular veiculada pela indústria fonográfica para seu holismo, plenamente registrado neste McCartney III. Como nas duas outras obras dessa agora trilogia, Paul compôs música e letra, cantou (com a exceção de alguns vocalizes de Linda, então sua esposa, no primeiro), arranjou, tocou todos os instrumentos, produziu e fez todo trabalho de engenharia de som (neste contou com alguns auxílios como se vê na ficha técnica), praticamente tudo sozinho. Hoje isso não é particularmente raro ou difícil em si, mas certamente ele é um pioneiro da prática e a excelência com que realizou tal empreitada, agora pela terceira vez, é digna de assombro. E o faz quase aos 80 anos de vida, nesse duro contexto de isolamento motivado pela atual pandemia, com um fôlego impressionante. Sua jovialidade às vezes passa do ponto e o leva a empreitadas tolas - como disse meu parceiro Raul Mariano, a quarentena nos poupou de um provável single com Miley Cyrus ou Taylor Swift. Por outro lado ela ecoa a inesgotável criatividade de quem, entre outras peripécias, junto com os demais Beatles, rompeu a barreira da sala de controle e revolucionou a arte da gravação. Mais notável é que ela se alia a uma maturidade assumida em cabelos brancos (ostentados na contracapa) e experiência de sobra, sinergia que o clima do disco traduz em contrastes que assinalam que inteireza não precisa ser o mesmo que homogeneidade. 

Como já foi ressaltado nas primeiras críticas que saíram, os discos que compõem a trinca comungam, além do modo de sua fatura, a demarcação cronológica de lançamento em anos redondos (1970, 1980, 2020) e momentos difíceis: McCartney na separação dos Beatles, McCartney II no fim de sua banda Wings, e este agora, num contexto de apreensão global, ainda que pessoalmente ele esteja tirando de letra, cercado de familiares e trabalhando confortavelmente em seu próprio estúdio em Sussex, numa temporada que divertidamente ele nomeia com o trocadilho 'rockdown'. É preciso dizer que nesse conforto todo ele encontrou um refúgio seguro, mas fez disso impulso para criar sem a interferência de turnês, ensaios com banda, viagens, atividades de divulgação e outras agendas. Claro que seria plenamente possível ter outros músicos tocando, até mesmo à distância, com a tecnologia disponível hoje em dia, mas claramente ele fez dessa solidão sua própria terapia. Uma felicidade que ele tenha compartilhado com todos nós o resultado. Um tremendo workaholic, Paul teve tempo para esculpir lenta e pacientemente cada gravação, pintar camada após camada, trabalhando como um artífice experimentado que inclusive se permite deixar arestas, rudezas, fazendo desse contraste entre o áspero e o delicado um conceito estético que também aproxima os três álbuns mas neste se afirma soberano, expresso inclusive na capa do disco. O dado com a face no três, em que a leitosa superfície branca contrasta com as negras cavidades em trio, o claro e o escuro, o evidente e o misterioso, o polido e o rude, é a tradução visual de sua sonoridade. Também remete ao piano, à combinação de ébano e marfim que mereceu de Paul uma bela canção. Aliás pode ser em um lustrado tampo de um piano que o dado, em impossível equilíbrio, é refletido. Imagem simples, sintética e eficaz.

Passemos ao som, o que mais importa. Numa discografia vasta e variada como a de McCartney, é ainda mais inevitável situar um disco novo lançado. Para além da trilogia em si, portanto. Só neste milênio Paul lançou, com este, 7 álbuns de estúdio, apenas um deles - um fato único em sua obra - exclusivamente como intérprete, o ótimo Kisses on the bottom (2012). Entre os demais reluz Chaos and creation in the backyard (2005) que está certamente entre os melhores de toda sua carreira após os Beatles. O resto é cheio de altos e baixos, normal para um artista que seguiu preferindo ser prolífico. Mais recentemente, depois do pouco notável New (2013) ele lançou Egypt Station (2018), um dos pontos mais baixos de toda sua discografia, com canções de uma pobreza terrível para os padrões que ele já atingiu, muita auto indulgência e um comercialismo raso de quem inverte as prioridades e coloca a música a serviço da atração de plateias novas e das execuções em turnês em estádios lotados. Em McCartney III Paul se sentiu totalmente livre dessa fórmula, ainda que ao mesmo tempo construa o disco como um exercício de recapitulação a partir de esboços pinçados dos arquivos de seu celular, ou numa excursão praticamente arqueológica que fez no início do processo ao retomar When winter cames, singelo tema folk com jeito de fábula gravado no início dos anos 1990s que consta ter sido mostrado a George Martin, e acabou sendo a última faixa. Assim como a memória opera mesmo, retomando e atualizando os materiais que recupera, quando Paul quer ele filtra muito bem o que está rolando e assimila ao repertório vastíssimo que tem na cabeça. Livre das colaborações infelizes com os ídolos pop de ocasião, ele contribui consigo mesmo, como se estivesse tocando lado a lado com o Paul dos Beatles, o dos Wings, o de diferentes décadas de sua longa carreira solo - Find my way é o exemplar concentrado de como temperar a levada de hit radiofônico com cravo e camadas de guitarras reiteradas (com pios do riff dobrado de And your bird can sing). E aí ele aplica sua burilada capacidade de mesclar cantigas rústicas em que as cordas de aço do violão parecem cortar sutilmente o ar (a instrumental Long tailed winterbird, que volta como vinheta antes da última faixa) com riffs diretos e furiosos em rocks animados e despretensiosos (Slidin', Lavatory Lil, cruzamento retrô abbeyroadiano do humor negro de Maxwell's Silver Hammer com a pegada sacana de Polythene Pam), concentrados românticos dedilhados assobiáveis (The kiss of Venus, Pretty Boys - cujo traço ciclístico e crítico ao consumismo me remeteu a Biker like an icon e Junk), canções de alma camerística (a beatlelesca Seize the day, decalcando o consagrado mote carpe diem e citando levemente o arranjo de cordas de For no one)  excursões mântricas experimentais (Deep deep feeling), mergulhos embalados em soul emborrachado (Deep down), ou reflexivas e confessionais baladas ao piano (Women and wives). Um breve "faixa a faixa" do próprio Paul foi publicado aqui.

As letras merecem destaque, muito melhores do que no disco anterior. Se há alguns costumeiros deslizes pueris, típicos dele, há apreciações maduras sobre ansiedades e montanhas-russas emocionais de nossa época, bem como um apelo à consequência e ao cuidado. Os títulos haviam me chamado a atenção antes de sair o disco e amarram bem o conceito central de contrapor o cenário de apreensão e dificuldade, simbolizado pelo inverno, ao desejo de superá-lo, metaforizado pelo pássaro e representações associadas a voo e deslocamento. Cigarra e formiga, Paul McCartney canta o necessário abrigo para tempos difíceis já intercalado com o assovio que anuncia que dias melhores virão. Suas canções fazem parte dessa trilha.  


* Deixo um agradecimento especial ao meu amigo Guilherme Lentz, com quem tive o prazer de partilhar uma primeira apreciação e trocar ideias pessoalmente sobre o disco, e ao parceiro Thiakov, pela audição comentada compartilhada numa conversa via whatsapp que anulou a distância transatlântica.  

** Paul respondeu muitas questões de fãs - inclusive sobre o disco - na rede social Reddit, aqui

*** Faixas bônus

Bonus Japan Women And Wives ( Studio Outtake

Lavatory Lil ( Studio Outtake

The Kiss Of Venus ( Phone Demo

Slid in’ ( Düsseldorf Jam )

****Um bom artigo que complementa [aqui]

13 de dezembro de 2020

DEIXA ACONTECER

Aproveitando o embalo vou fazer mais uma postagem no estilo "contando as letras". Mais uma das minhas parcerias com o Daniel Guimarães, feita totalmente à distância mas bem antes desse impositivo momento que infla indesejavelmente o apelo aos recursos digitais de comunicação. Foi uma das primeiras que fizemos. No intuito de compensar a falta do contato pessoal trocávamos longas mensagens através da rede. Enquanto ainda buscávamos um entrosamento que certamente veio com o tempo, eu procurava relatar com certa minúcia o que vinha à minha cabeça à medida que ia escrevendo. Tenho aqui algumas "anotações" que vou compartilhar para dar um pouco essa sensação de bastidor, de making of. Expressão que me veio a calhar aqui agora porque além de uma sugestão de que a música tinha sido a princípio sobre um personagem errante, e numa outra versão sobre uma tempestade, ela me soou desde sempre cinematográfica. Relatei assim minhas impressões após o primeiro esboço que encaminhei ao parceiro:

Comecei com esse imperativo, “abra”, e de uma certa forma foi pintando uma ideia de conciliar de algum modo esses temas sugeridos, o errante e a tempestade. E a coisa foi surgindo meio num conceito cinematográfico, filme de faroeste. Ficou uma coisa mais icônica, representando a ruptura com uma situação prévia indesejada. De uma certa forma isso também foi inspirado por uma conversa com a minha filha de 16 hoje sobre a dificuldade dela sair da aula de teatro.



E quando chegou ao final eu tinha que arrumar companhia para o “deixa acontecer” me ocorreu que a ideia era mais um ato de amadurecimento que de rebeldia, saber deixar a mudança acontecer... pensei no lance do samurai. Curiosamente foi uma palavra que eu evitei propositadamente em “Ponto Oriental”, mas aqui acho que cabe, até pelo lance de Sete homens e um destino ser uma versão d’Os sete samurais do Kurosawa. 

Engraçado que certas conciliações aparentemente improváveis, ou aproveitamentos de frases casuais ou até nomes de arquivos, podem acabar dando muito certo. Quanto mais esse tipo de coisa funciona, mais eu tento. A forma é clássica e direta, verso e refrão.
Usei imperativos com a vogal aberta "a" para abrir as estrofes, procurando ainda fazer rimas cruzadas na "cabeça" e na "cauda" das estrofes ímpares e paresinterpolando rimas paralelas, de modo que o esquema é algo como A *BB* C (1-3) ou D (2-4), com uma desobediência na primeira estrofe, porque eu não quis mudar os versos espontâneos que deram a esporada inicial da cavalgada. Igualmente espontâneo foi o "deixa acontecer" do refrão, que é literalmente metanarrativo em relação à confecção da letra - ou seja, meu ouvido me soprou as palavras e eu simplesmente deixei acontecer, sem duvidar dele. Em certas situações a gente precisa ser um pouco menos aferrado, sentir o vento mesmo. A canção no fundo é sobre como lidar com a mudança e tocar em frente.

 

Deixa acontecer (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Abra
Atreva-se a partir
O horizonte em dois
O sol em cruz

Sela
O dorso do alazão
Um raio pela mão
O vento atrás

Alça
O voo do urubu
Abraça o tempo nu
Avista a luz

Vela
A sombra do caubói
Corte que ainda dói
Sem sangrar mais

Ultrapassa os temporais
Deixa acontecer
Na paz sagaz dos samurais
Deixa acontecer  

Deixa acontecer 


 

12 de dezembro de 2020

SANTA PIRAMBEIRA

Mais um aniversário da terra natal. Belorizonte, Beagá, seja como for, é nossa. Passei oito anos trabalhando no museu histórico da cidade, fora o tanto que continuei pesquisando e escrevendo sobre ela, ainda que procurando também variar escalas de observação e dar uma mudada de foco pra não enjoar. Por uma feliz coincidência, meu grande parceiro Maurício Ribeiro fez uma "live" hoje direto da Espanha e tocou nossa mais recente parceira, "Santa Pirambeira", que nada mais é que um despretensioso sambinha cuja letra é uma homenagem a um bairro de Belo Horizonte, o Santo Antônio, o que mais gosto e onde morei a maior parte da minha vida, especialmente depois de adulto. Agora estou no bairro ao lado, mas é questão de metros. Ainda subo e desço várias de suas pirambeiras com frequência. 

Seria longo, e provavelmente desinteressante para boa parte dos leitores, fazer um relato autobiográfico cujo resumo é que gosto do bairro, apesar de seus muitos morros, vivi em 5 endereços diferentes nele, em etapas distintas da vida, criei filhos, cultivei amizades dentre as que marcaram a infância, a juventude e as que perduram até o presente, numa dada época estudei, fiz judô e até catecismo numa igreja católica, como bom filho de família mineira classe-média, até me rebelar com 12, 13 anos rsrs. Das lembranças afetivas da paisagem, a mais bem guardada é olfativa: o cheiro de Dama da noite que embalou incontáveis caminhadas.



Queria muito fazer uma letra sobre esse pedaço da cidade, que fica na zona sul mas tem uma certa diversidade propiciada pela proximidade da Copasa e algumas repartições, escolas públicas, predinhos pequenos de condomínio barato, uma economia de bairro que ainda subsiste, casais de idosos persistentes em uma ou outra casa velha. O sambinha simpático, cheio de ginga e com a costumeira dose de variação melódica e formal do Maurício veio a calhar, me remetendo imediatamente a uma situação divertida, a imagem de uma mulher de salto alto descendo um morrão. Isso foi sugerindo alguns quadros e situações, e como tenho feito quando sinto que não tenho assim tanto espaço (se tiver eu vou tentar resumir um romance) apelei para uma coisa mais telegráfica e menos narrativa. Fiz um rol de ruas e depois me surgiu a ideia de uma corrida de táxi imaginária (e com licença poética em termos de urbanismo) como se o eu-lírico estivesse orientando o motorista até chegar ao destino, um bar - lógico, é quase que um a cada esquina, ou às vezes vários na mesma - onde esperaria sua paquerada dama de salto alto. As vias que preferi foram os que permitiam rimas internas e duplos sentidos interessantes, e as nomeadas por árvores frutíferas me sugeriram o "pirambeira", quando eu não achei jeito de botar Santo Antônio em lugar nenhum. Foi melhor, deixou a coisa um pouco menos explícita. E finalmente, dentro do espírito lúdico que a lira nos garante, achei esse rolimã rimado com scarpin (pronunciada iscarpã), jogada usual para craques como Aldir e Chico, ainda que aqui seja mais previsível porque a primeira já foi uma adaptação do francês ao português. Segue a live do facebook, e se a curiosidade for muito grande, a canção em questão entra ali por volta de 1:08:00. 

Santa pirambeira (música de Maurício Ribeiro, letra de Luiz Henrique Garcia)

Sobe, de primeira a
Mangabeira, Marabá
Flor que sim se cheira
Perfume lembrará

Toca de bobeira
Pirambeira, Matipó
Toda sexta-feira
Bato ponto aqui, ó

Vou esperar num bar
Na Mar de Espanha
Vai passar Primeira Dama
Na calçada a desfilar

Salto scarpin
Santa pirambeira
rolimã
Santa pirambeira
Scarpin
(alterna)

Santa pirambeira, piram-beira, piram...bá (final)

Vira Pitangueiras
Primavera, volta já
Abre Campo inteira
Viçosa cresce lá

Corta na Teixeira,
Entra a Viera pela mão
Morros e Bandeiras
três carolas no portão

Vou esperar num bar
Na Carangola
A Princesa Leopoldina
Elegância a desfilar

Salto... 


20 de novembro de 2020

Prêmio colhido da Horta


Prêmios, ainda mais "Grammy Latino", podem ser questionados em sua função hegemônica, preferências estéticas e lógica comercial. A divisão de categorias e os resultados refletem sobretudo uma percepção gringa, desde a medula da indústria cultural estadunidense, sobre as culturas latino-americanas. De modo muito ostensivo fica evidente a separação entre o Brasil e o resto dos países do continente, que, claro, não surgiu com o Grammy, e não pode ser simplesmente ignorada, embora seja possível identificar bem melhor as aproximações do que fazem em Miami. A despeito também dos méritos que grandes gerações, como a que reúne Toninho Horta, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, João Bosco, Elza Soares, tem, é também digno de protesto que essa [lista de indicados e premiados brasileiros] e outras premiações ignorem por completo o que as mais recentes produzem, especialmente quando se trata de compositores e intérpretes que não sejam consideradas pop.

Com tudo isso, tais prêmios são por vezes canais que estendem a um público mais amplo a circulação de trabalhos genuínos, feitos por gente talentosa. E nesse sentido o prêmio de melhor disco de música popular brasileira conferido a "Belo Horizonte", de Toninho Horta, acompanhado da infalível Orquestra Fantasma, está mais que em boas mãos. Como resume esta matéria, "“Belo Horizonte” nasceu de uma ideia do filho de Horta. “Um dia, meu filho chegou e me disse: ‘Pai, já que Milton Nascimento tem um disco chamado “Minas” e outro “Gerais”, por que você não faz o “Belo” e o “Horizonte”?’, conta. Do insight, veio o álbum duplo, que traz no primeiro volume músicas famosas interpretadas em parceria com grandes nomes como João Bosco - "Aqui, ó" (Horta/Brant) com ele ficou sensacional, tudo a ver com ele mesmo -  e Joyce Moreno. 



Já no segundo, canções inéditas e totalmente instrumentais". Abaixo o áudio-vídeo da parte Horizonte, e aqui  para ouvir todo o álbum. 


É literalmente o prêmio colhido da Horta, e Toninho é foda até na hora de receber e comemorar - sempre dando exemplo em matéria de humildade, generosidade, reconhecimento do trabalho coletivo, de uma forma muito autêntica e contagiante [aqui]. Tremendo orgulho desse belorizontino, mineiro, brasileiro, grande músico do mundo!

15 de novembro de 2020

Atuação acadêmica à distância




Nestes tempos de restrições impostas pela pandemia, tem ocorrido uma intensa atividade acadêmica e de divulgação científica nas redes. Muito mais importante que colocar essas coisas no Lattes, é a oportunidade de compartilhá-las com o maior número de pessoas. A internet é um canal importante para isso. Compartilho aqui dois encontros online que tive o prazer de participar, a convite. Vale conferir as falas e os ótimos debates que pudemos travar ao final das apresentações, contemplando inclusive participação do bom público que acompanhou.

Tive o grande prazer de dividir essa excelente mesa com Berenice Corti e Evandro Higa, nas 4a. Jornada de Investigação em Música Latino-Americana, promovida pela Unila desde Foz do Iguaçu, que nas figuras de seus professores Felipe Jose e Bia Cyrino agradeço novamente pelo convite e pelo esforço extra (grato, ainda, ao colega Lucas!) de adequar o conteúdo às exigências de veiculação do You Tube - em particular o da minha fala que trazia muitos exemplos musicais inseridos em vídeos veiculados pelo próprio YT, e paradoxalmente precisaram ser em sua maioria editados.

Intitulei minha fala "Cordilheira de sonhos numa esquina do mundo": América Latina no som imaginário do Clube da Esquina, e este foi o resumo do que digo em minha participação na mesa:

"A partir de conceitos de culturas híbridas, transculturação, cultura popular e moderna tradição pensados em chave latino-americana por autores como García Canclini, Martín-Barbero, Ángel Rama, Antônio Cândido e Renato Ortiz, proponho um trajeto investigativo para pensar uma cartografia sonora imaginária da América Latina na obra discográfica de Milton Nascimento e de seus companheiros do coletivo Clube da Esquina, registrada especialmente entre as décadas de 1960-80. Tal itinerário representa uma possibilidade para entender as possibilidades de trânsito entre culturas, artistas e públicos neste espaço continental, inclusive para além dos marcos temporais traçados, considerando a vitalidade de tal obra e seus criadores. " 



No evento "Encontros com o Patrimônio", promovido pela Casa Fiat de Cultura, em BH, participei de uma conversa bacana sobre Santa Tereza e o Clube da Esquina, junto com a historiadora e educadora da Casa, Ana Carolina Ministério, e o ilustríssimo Telo Borges. Na minha fala Patrimônio cultural, lugares e sentidos: a esquina do Clube, apresentei uma síntese das pesquisas que venho conduzindo na UFMG, atualmente encampadas no grupo de estudos Som e Museologia (SOMMUS) que coordeno. Quem quiser ir mais fundo pode começa conferindo o podcast Patrimônio urbano e música popular, aqui mesmo no blog.


 





5 de novembro de 2020

A crítica musical e as tentativas de enquadramento estético

 

Importantíssimo desde sempre o trabalho da Marcus Pereira para o patrimônio musical brasileiro. Acabei me deleitando também com a matéria do Walter Silva sobre Milton, cuja obra é objeto de estudo pra mim há muitos anos. Silva, conhecido como "Pica-Pau", tem longa história como disque-jóquei e radialista [para saber mais, aqui]. 
Sua crítica virulenta me parece uma tentativa tardia e fracassada de enquadrar esteticamente Milton Nascimento, reprisando a eterna ladainha conservadora que prefere o passado a priori e uma idealização rústica, artisticamente limitadora e essencialista, perdendo totalmente de vista os traços subsequentes de originalidade e ousadia que Milton revelou e explorou exponencialmente em sua carreira discográfica na década de 1970. Felizmente esse tipo de "saudosismo" fabricante de estereótipos não o vitimou em nada, e houve críticos em bom número para contrapor uma percepção mais acurada do que ele e seus parceiros de Clube da Esquina estavam fazendo, muito longe de ser postiço e artificial. O artigo denota sobretudo a dificuldade de seu autor em realizar uma audição compreensiva e abrangente sobre a criação de um artista, preferindo apegar-se a um tipo de "fotografia" narcísica baseada no momento em que lhe conheceu e aprovou. Como tem crítico que faz isso, até hoje. Agora, como documento que se presta à análise historiográfica, é uma pequena joia, instantâneo que revela algo sobre a prática da crítica musical na grande imprensa brasileira em meados dos anos 1970, e também sobre a recepção da obra de Milton, ali em vias de alcançar tanto a sua consolidação estética quanto um público bem mais amplo, no momento em que era considerado "o maior talento dos dias de hoje", como Walter Silva repercute, ainda que com tom lamentoso. Pena que ele não estava ouvindo direito. 

27 de setembro de 2020

10 das minhas versões preferidas de canções dos Beatles


Só pra comemorar a diminuição parcial - parcial, vejam bem - do servicinho burô, vou mandar uma série com as 10 versões dos Beatles que eu mais gosto. Só a preferência mesmo. 

1- Sarah Vaughan, The fool on the hill.

 

Segunda da série de versões de canções dos Beatles, na que pra mim é insuperável, quiçá uma das maiores versões de todos os tempos, uma transcriação como poucas já se ouviu.

2 - Norwegian Wood - Milton Nascimento e Beto Guedes.

   

Continuando a série de versões maravilhosas de canções dos Beatles, com trocadilho. 

3 - We can work it out, Stevie Wonder:

 

Quarta da série, um versão de um dos mestres do ofício, daqueles que emite seu reflexo capturado na canção alheia. Neste caso ainda mais marcante pelo fato de ter sido mais literal ao seguir a intenção da letra que seu próprio autor, Lennon, que acabou embalando seu angustiado pedido de socorro na capa da beatlemania.

4 - Help! Caetano Veloso.



A quinta da série de versões de canções dos Beatles, totalmente inesperada e inusitada. Um deslocamento tremendo que beira a invenção de outra canção, atravessando o Atlântico rumo ao Caribe e a um sentimento de solidão com cores bem diferentes da original. Guardo meu sentimento de surpresa da primeira audição.

5 - Eleanor Rigby - Cássia Eller.


A sexta da série de versões preciosas de canções dos Beatles é de chorar. Nina Simone, alta sacerdotisa do soul, que eles adoravam, embala nossos ouvidos em sua interpretação dessa pérola solar de George Harrison. É certamente uma das glórias maiores de um compositor ser gravado por uma artista de quem ele próprio é admirador desde sua própria formação.

6 - Here comes the sun, Nina Simone


Sétima versão brilhante de canções dos Beatles, essa também traduzindo a letra para o português. Baile de Joyce Moreno ao conseguir tanto verter por completo o papo da letra quanto lançar umas pitadas brasileiras (Inamps, por exemplo) que lançam luz ao original sem tampar seu brilho.

7- When I'm Sixty-four / Velhos no Ano 2000 Joyce Moreno


Oitava da série. Ella não poderia faltar, uma das maiores damas do jazz, puxando pro seu universo a canção pop romântica com um pequeno tempero de luta de classe.

8 - Can't buy me love, Ella Fitzgerald



A nona da série, singeleza a toda prova, muitas lembranças e inspiração.

9 - Across the universe, Toninho Horta.


E eis a última da série de 10 versões preferidas de canções dos Beatles. Essa escolhi junto com uma lembrança cara, de ter visto literalmente a última apresentação do Uakti, com a família, em praça pública. Inesquecível. Queria por o disco todo mas escolho essa do Harrison, que Sinatra classificou como a maior canção de amor de todos os tempos mas pensou que era de Lennon e McCartney. Sinto muito, Frank... aqui é Uakti.



P.S. Vou acrescentar essa bela apresentação de ontem do Trio Amaranto, composto pela querida contemporânea de Fafich/UFMG Flávia Ferraz e suas irmãs Lúcia e Marina. São versões lindas e cheias de personalidade, com citações lúdicas e bem propostas de outras canções, entremeando também algumas autorais que beberam das águas do rio Mersey. 




21 de setembro de 2020

PAU BRASIL

A temática política sempre faz parte das minhas intenções na hora de fazer letras de canção, mesmo que não seja uma sugestão direta ou uma demanda explícita do parceiro que me manda a melodia. Lógico que isso não implicar em adotar uma forma de expressão panfletária, ideológica e manifesta. Mas a coisa não anda fácil no Brasil, temos convivido com tal intensidade de ocorrências absurdas em nosso cenário político que fica simplesmente impossível evitar essa tecla.

Foi assim que nos idos de 2019 finalizei a letra dessa canção cuja música me foi mandada pelo parceiro Daniel Guimarães. Era um negócio que já puxava a contundência, uma coisa roqueira e até mesmo marcial, mas que ao mesmo tempo tinha uma segunda parte mais melodiosa que sugeria como que um comentário ou ponderação à primeira. Nesta mesma época, eu estava lendo as correspondências entre Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade, e pensando muito sobre a brasilidade e suas contradições. Ainda que tenha sido de outro Andrade, o Oswald, que tenha pintado a inspiração para o título e o mote geral da letra. Para mim ter um título, ainda que provisório, dado por mim ou sugerido pelo parceiro, é quase indispensável. Neste caso foi muito certeiro, eu senti de cara que ia ser e ia puxar o resto da linha. Investi sobre a bandeira e os signos nacionais, talvez sob inevitável sombra de palmeira lançada por canções como Geleia Geral de Gil e Torquato ou da letra original de Fernando Brant para Ao que vai nascer. Daí a escolha de substantivos muito óbvios, um inventário militaresco pintando o quadro que é tão alusivo de conflitos entranhados em nossa História mas que igualmente se apresentam no agora, com suas cores próprias.  

Acabei de me dar conta que com os últimos acontecimentos a canção ficou ainda mais necessária. Por vezes o mínimo a fazer é produzir uma explosão catártica, para pelo menos não ficar simplesmente assistindo de camarote enquanto soterram o firmamento.

 


Pau Brasil (música de Daniel Guimarães e letra de Luiz H. Garcia)

Êêê chei-
ra o sangue, o arame, o metal
terra Brasil, ouro e pó
mata bandeira nacional

Êee fi-
ra, a mira, o animal
rito primal, pelotão
fuzil, trincheira, invasão

(b) A guerra, que erra e desfaz
Atrás da divisão
Soterra então
O firmamento

Êêê ati-
ra a pedra, o gás, o pau
tiro frontal, camburão
linha de frente, Capital

11 de agosto de 2020

Com o prato e a faca na mão: a ga(r)fe da Rolling Stone

 Após a apresentação ao vivo pela internet (vulgo "live") de Caetano Veloso e filhos na última sexta, a edição brasileira da revista Rolling Stone cometeu essa tremenda ga(r)fe:


Esse pequeno destaque se presta a uma análise que poderia até tomar o tamanho de um artigo. Como tantas vezes aqui no blog, o comentário oportuno, de ocasião, no calor do momento, tem sobretudo o objetivo de mostrar a relevância e capacidade de intervenção da história cultural e dos estudos sobre o patrimônio musical popular, sobretudo no contexto brasileiro. 

Constatar o desconhecimento desse patrimônio e da história da música popular no Brasil, por parte do autor da notinha, é imediato. Trata-se de alguém com nenhum repertório, nenhum mísero átomo de conhecimento sobre a tradição do samba-de-roda, seja no Recôncavo Baiano - onde fica Santo Amaro da Purificação, terra da família Veloso - seja do samba em geral, uma vez que esse "recurso" seguiu sendo usado em terras cariocas "desde que o samba é samba". Desconhece ainda que esta forma de se reapropriar de objetos do dia a dia para fazer música é recorrente desde tempos imemoriais. E finalmente, que a marca do improviso revela um tanto sobre a criatividade popular e as formas de desdobrar as evidências do precário, do provisório. Tensões sociais que as classes pobres desvelam e enfrentam nas táticas improváveis e soluções imprevistas que nascem da força do improviso. Nada há de inusitado, ou cômico, nem faltou instrumento e muito menos a habilidade de percussionista de Moreno poderia ser assim desconectada de sua aproximação orgânica com tal tradição, muito menos massacrada pelo clichê roto proferido aos borbotões por certo apresentador de programa televisivo. Uma resposta que Caetano já deixou dada há décadas para a Rolling Stone, eco da explosão do tropicalismo: "Vocês não estão entendendo nada, absolutamente nada!”


Lamentável que esteja se perdendo entre os que tem espaço em mídias (sejam digitais ou não) a capacidade de reconhecer seu próprio desconhecimento e pesquisar para informar  e formar melhor seus leitores, caindo facilmente nas armadilhas espetaculares de um tempo "homogêneo e vazio" (já dizia Benjamin, aliás um dos filósofos que mais bem tratou da tradição sem reificá-la, a meu ver), realçando que uma cultura desmemoriada exacerba a predileção pela barbárie. Sem História não temos perspectiva sobre quem fomos, somos, e para onde vamos. E para isso não se pode deixar tudo ao sabor do mercado, é preciso dedicar esforço e investimento públicos, é preciso reconhecer a centralidade da Cultura na construção de uma sociedade plural e justa. 

Daí a importância de manter registros preservados e difundir fontes para apreciação e conhecimento de feitos culturais como o "prato e faca". Em meio às objeções lançadas por gente que conhece do riscado vemos menções a Dona Edith do Prato, baiana de Santo Amaro que deixou belos registros dessa arte em disco, ou João da Baiana, um dos artífices maiores do samba brasileiro desde as rodas e terreiros do Rio de Janeiro. Em disco, em filme, em objetos, depoimentos, documentos, nossa produção cultural merece todo cuidado. Louve-se, por exemplo, o trabalho do MIS do Rio de Janeiro - que começou por João da Baiana sua coleção de "Depoimentos para a posteridade" e incorporou prato que ele tocava em seu acervo de objetos [aqui], as iniciativas da família Veloso - entre tantas gravar com Dona Edith [aqui], ou do compositor francês Pierre Barouh que entre outras contribuições dirigiu o belo documentário Saravah (1972). 

 

Eis a motivação central por trás da maioria dos projetos de pesquisa e trabalhos que conduzo na UFMG, atualmente reforçado por um esforço conjunto que se materializa no Grupo de Estudo SOMMUS (Som e Museologia), junto com estudantes de graduação e pós-graduação. Termos que reivindicar importância para estas coisas com tanto esforço é, em si, sintomático, porém cabe também aos pesquisadores participar do trabalho de superar essa ga(r)fe.