Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

5 de julho de 2023

Música, mercadoria e overdose de nostalgia



E o assunto (extra)musical do momento é o comercial da Volkswagen que apela para a overdose de nostalgia ao criar digitalmente com auxílio da dita Inteligência Artificial um dueto entre a cantora Maria Rita e sua mãe, Elis Regina, eterno ícone da MPB, cantando - devidamente editada - a marcante "Como nossos pais", pérola do não menos icônico compositor Belchior, também já falecido. Não vou compartilhar o comercial, que achei de mau gosto, pra começar, nem me dar ao trabalho de fazer uma síntese das críticas que pululam nos meios. Para isso deixo duas matérias, de Veja e Uol. Prefiro, oportunamente, citar os textos de gente que sabe mais do riscado e já deu seus pitacos pelo facebook, e que adianto que valem ser lidos por completo.

Mais cedo eu assisti a coluna do Bob Fernandes [aqui], que inicia com uma referência ao jornalista italiano Roberto Calasso, que chama nossos tempos de "era da inconsistência". Tenho escrito sobre a tremenda força da dissociação cognitiva, que vem servindo para que muita gente possa manter no mesmo cérebro e corpo pensamentos e práticas completamente incompatíveis sem qualquer arranhão em sua autoimagem ou modo de ver o mundo e viver a vida. Encaixa perfeitamente com a exposição que o Bob faz do livro do Calasso. 

Isso nos serve para apoiar a compreensão de dois fenômenos conjugados profusamente ao longo do comercial. Um é a exploração da nostalgia como mercadoria, o outro é o uso da polissemia da canção para promover sua interpretação e recepção contrasensual. Na sociedade capitalista do espetáculo contemporâneo, tudo vira mercadoria como Marx previra, mas também se torna solúvel no grande show de luzes da existência inundada por telas de cristal líquido ou LED. Nessa operação não se perde de vista nem mesmo o passado, pois nada está perdido dentro do dominate "presentismo" de que nos fala o historiador François Hartog. Vemos a exploração desse mote desde o plano genérico e coletivo de evocação da estética "retrô" dentro de uma versão desidrata de acontecimentos e processos históricos convertidos em trechos de videoclipe, até o plano que vaza a esfera privada ao mercado público ao transpor sentimentos de luto e perda em algum tipo de saudade recalchutada e embalada em atmosfera otimista. Diante do recorrente medo humano da morte, a tentação pela eternidade de fachada é enorme. Volks e Maria Rita, aí, bebem da mesma água. Oportuna consideração do atento crítico musical - entre outras peripécias - Túlio Villaça:

"E o que dizer da recriação da Elis Regina por IA? Não poderia ser mais apropriada. O engraçado é que a Maria Rita, depois de emular o repertório da mãe nos dois primeiros álbuns, deserdou e foi ser sambista, uma decisão sábia em termos de carreira e possivelmente psicanalisticamente também. Ou seja, ela não repete a mãe, o que é ótimo (embora eu goste muito dos primeiros álbuns). Mas aqui ela é a própria representação do filho que repete os pais. E deve ter mesmo ganho um bom dinheiro, à parte a questão ética de ela ter permitido o uso da imagem da mãe em algo que ela não sabe se a mãe concordaria em fazer". [Túlio Ceci Villaça, via facebook] 

Desde que constatei que a capa do primeiro disco de Maria Rita era a perfeita reprodução da foto de sua mãe em entrevista ao caderno Folhetim da FSP no final dos anos 1970s, tomei antídoto contra a contagiante expectativa que seu timbre de voz instilava. Ela parecia ter decidido fugir ao "projeto", como aponta o Túlio, mas cede esporádicamente à tentação, dessa vez com o agravante de nitidamente trair a memória da mãe, notória desafiadora das ordens estabelecidas, seja a do mercado, seja a da Ditadura Militar que a montadora alemã apoiou flagorosamente, e contra a qual a composição "Como nossos pais" que ela vestiu tão bem, igualmente se batia. Aproveito para retomar o que escreveu Makely Ka, um cantautor de mão e boca cheia que também mete bronca na crítica:

O roteiro da peça publicitária usa símbolos icônicos da contracultura, pessoas viajando em kombis nos anos 70, músicos, acampamentos na fogueira, um casal transando dentro de um carro, o ideal de liberdade e toda uma estética hippie, para vender uma ideia diametralmente oposta ao que diz a letra da canção. Belchior, o compositor atormentado, que inclusive morreu no seu auto-exílio completamente avesso à mídia, à publicidade, a qualquer tipo de concessão ao mercado. [Makely Ka, via facebook]

Se as críticas pipocaram é porque a inversão de sentido é muito gritante, além de óbvia. Qualquer pessoa com o mínimo de informação e conhecimento sobre a história do Brasil e da sua música popular há de sacar imediatamente o abuso que se passa.Porém, os publicitários, a Volks, a Maria Rita, está todo mundo contando com a dissociação cognitiva e a desmemoriação coletiva. Onde Belchior havia deixado uma autocrítica de geração rasgante e sem condescendência, desafiando aquela "juventude" a crescer sem imitar os pais (e nesse sentido ele toca a mesma corda que Lennon, um de seus maiores inspiradores), eles propõem uma viagem de kombi por um tempo sem qualidade ou aresta, "homogêneo e vazio" como alertava há mais de um século o filosofo - alemão - Walter Benjamin. Por isso precisamos manter a vigilância, e aprofundar o conhecimento do passado, para não esquecer. Eis um depoimento citado na matéria do Uol que considero válido retomar:

Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen, já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco".Lucio Bellantani, ex-funcionário da Volks, em depoimento à Comissão da Verdade de São Paulo.

Não sejamos os mesmos. Menos nostalgia, mais História. Menos mercado, mais Música.
Em nome disso termino pondo pra tocar Belchior na voz de Elis: