Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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23 de setembro de 2019

A podre delícia na boca do menino que xinga padre e pedra


Muitos estão comentando a entrevista que Milton Nascimento concedeu à Folha, especialmente pela frase bombástica em destaque, "A música brasileira está uma merda" [link]. Apesar de 'n' ponderações que a fala suscitou, deve estar perdida num tempo imemorial qual a última coisa dita por Milton Nascimento que provocou algum debate consequente. Só por isso já está valendo. No restante ela sofre do mal da maioria das entrevistas com músicos de quilate que são de uma redundância renitente em relação às anteriores, como já escrevi aqui.

Certamente, com um pouco de boa vontade, todo mundo está entendendo que o Milton está falando do que está tocando no rádio e sendo apresentado nos grandes canais de mídia, quem faz um disco como "E a gente sonhando" não ignora que há música boa produzida pelas novas gerações. Esse protesto serve bem inclusive para ajudar a abrir um pouco de espaço. Mas como o Tiago Iorc, a Maria Gadu, o Criolo, já furaram alguma resistência, claro que seria desejável que ele falasse nomes que não são conhecidos, aproveitando a voz que ele ainda tem. 

Entrei lá na página oficial Milton "Bituca" Nascimento, vi que tinha gente corroborando e gente questionando. O debate esquentou e surgiu uma explicação, bem protocolar, coisa de assessoria, tentando conter os desentendimentos e alegando que a fala estava circulando fora de contexto, mas por sua vez instigando novas discussões em função de nomes escolhidos para sinalizar algum conhecimento do que seria produzido fora dos canais de sucesso. Ficou patente a parca presença de músicos mineiros entre os que aí foram citados, por exemplo. Acho que legitimamente muitos estão incomodados porque nessa oportunidade o Bituca poderia ter remetido a uma música mil vezes melhor que é feita no Brasil todo, e que certamente ele desconhece ou nem mesmo sua assessoria lhe ajuda a conhecer. Então ele lançou uma observação certeira mas não tem muito mais que isso a contribuir com o debate, como fica evidente. Não que ele seja obrigado. Não acho justo que na idade dele, e com tantos serviços prestados à nossa música, e tanta gente que ele promoveu por toda a carreira, isso seja simplesmente esquecido porque agora ele de algum modo se mostra alheio. Quanto a isso nós podemos muito bem cumprir a tarefa.
 
Nesse ponto faço questão de recuperar uma série realizada aqui no blog, com textos do meu parceiro Pablo Castro, o Eldorado Subterrâneo da Canção, contendo "canções de lavra recente, especialmente aquelas compostas por cantautores nossos contemporâne@s da cena mineira que por 'n' razões - que poderão até vir a ser debatidas por aqui - permanecem ainda alheias dos ouvidos de uma parte substancial do público, certamente sem merecer tal destino".

Finalmente, vamos voltar a crítica pra onde está realmente o problema, que é na indústria e nos meios. Quem não está fazendo a música boa que é feita no Brasil todo chegar a mais ouvidos são as gravadoras, as rádios, as televisões, os sites de muito acesso, etc. Então eu vou acrescentar que o que está uma merda mesmo são os meios que em outros tempos até faziam a música maravilhosa que era feita todo dia chegar a mais ouvidos. E o público que não corre atrás nem exige desses meios que costuma acessar uma programação mais diversificada tem sua parcela também. Sem paternalismo. Já tratamos disso neste blog em textos como esse aqui. Se essa entrevista aumentar a atenção e consciência das pessoas para o problema, terá sido muito relevante. Quero terminar falando da velhice. Talvez uma parcela cada vez maior da sociedade esteja confundindo o fato de que não se concede mais uma autoridade automática ao que diz uma pessoa mais velha com uma total falta de consideração ou empatia por uma condição que, como diz o brilhante livro de Ecléa Bosi, faz de todos nós membros de uma comunidade de destino - todos que não partirem cedo irão envelhecer. Nessa condição, muitas vezes, nem sempre será a sabedoria com o peso dos anos a portadora do recado. Pode ser uma molequice desbocada, traquina, a podre delícia na boca do menino que xinga padre e pedra. 

 

6 de dezembro de 2015

Música Popular e Memória III: Como nascem as memórias inventadas

Retomando aqui uma série que andava adormecida, em que convido alguém invariavelmente especial para brindar os leitores do blog com algumas reminiscências que associem sua trajetória pessoal, profissional, etceteral, à música popular, alegremente recebo esse singelo recordo* da querida colega, igualmente pesquisadora de música popular e igualmente historiadora, Miriam Hermeto [gracias!], profa. do Depto. de História da UFMG, e minha vizinha de prédio no campus. 



Como nascem as memórias inventadas
por Miriam Hermeto

Em 2010, já na reta final do meu doutorado e com lacunas de pesquisa efetivas, eu resolvi tentar uma entrevista com Chico Buarque. Temia muito que o contato fosse considerado apenas o desejo de uma fã - o que sou, inconteste, apesar do esforço crítico que a persona de pesquisadora sempre implicou - de conhecer seu ídolo. Mas realmente a entrevista, que eu sabia muito difícil, tinha potencial para resolver questões importantes e dar outras cores à interpretação do fenômeno da "Gota D'Água"...
Encorajei-me, então, e tentei. Surpresa, consegui. Como eu consegui?, isso é história pra outra hora - que, aliás, está contada, de alguma forma, na tese. Fato é que consegui, a partir de uma troca de mensagens por email, primeiro com o assessor de imprensa, a doçura do Mario, depois com o próprio Chico.
E fui, em maio de 2010, entrevistar o Chico, em seu apartamento no Leblon. O episódio da entrevista também é assunto pra outra hora. Falo disso tudo, porque hoje lembrei-me muito do encontro, assistindo ao "Chico, artista brasileiro" - filme lindo, desses que fazem bem à alma. Mas, especialmente, lembrei-me de um eco do encontro, que sempre uso como exemplo pra discutir como as memórias são inventadas.
Poucos meses depois de eu ter entrevistado Chico Buarque, ele deu declarações à imprensa, falando de seu novo disco, em processo de produção. Havia poucas canções finalizadas e a primeira delas era "Nina". Sim, Nina, o nome da minha filhota, então com dois anos, a quem sempre cantei em alto e bom som por aí.
Amigos próximos me chamavam para perguntar se eu havia visto o nome da nova canção. "Claro", respondia. E completava: "sei de nada, só sei que não posso crer que é acaso ser esse o nome depois de ele ter-me conhecido". (Vejam a manobra: não era eu a tê-lo conhecido, mas o contrário!)
Farra pura, é óbvio. Mas, cá entre nós e para consumo interno, "Nina" é canção do Vô Ico (como seus netos o chamam) em homenagem à Ninoca. E ela, quando ouve alguém tocar no assunto, já do alto dos seus seis anos, crê mesmo que é pra ela aquela lindeza.
Não fosse essa heresia suficiente, eu, de minha parte, prefiro crer que a canção é pra mim: eu, disfarçada em minha filha, a inspiração de uma valsa sobre uma mulher russa que o eu-lírico conhece por email, que "anseia conhecê-lo em breve" e que ele também idealiza a distância (obviamente, nesse delírio, Chico nada tem do Vô Ico da Nina). Porque, afinal, sonhar nunca foi proibido. E as memórias, como o próprio Chico disse no depoimento de base do filme, nem sempre são produto de experiência da gente. Podem ser derivadas de experiências de nossos pais, avós, de ancestrais sociais. Ou, emendo eu, dos sonhos...
Taí, pra vocês. Como nascem as memórias inventadas.




*N.E.: sob forte influência da exibição do filme Chico - artista brasileiro.

9 de outubro de 2015

Entrevistando John Lennon

Lennon faria hoje 75 anos caso estivesse por aqui. Em celebração da data a Revista Rolling Stone lançou um número especial [aqui], que inclui entre outras coisas trechos [aqui] de uma entrevista de Lennon a estudantes, concedida em 1968, cuja íntegra, em áudio e transcrição, está disponibilizada no site do Hard Rock [aqui]. Ele comenta, para início de conversa, a carta aberta endereçada a ele por John Hoyland publicada no periódico radical de esquerda The black dwarf (que depois seria respondida por Lennon no mesmo periódico). As carta estão digitalizadas e reproduzidas no site, e o embate central é em torno do uso ou não da violência para promover transformações revolucionárias, com o qual naquele momento Lennon se debatia como fica claro na canção Revolution
Outro material interessante é uma lista de 20 canções "subestimadas" da carreira solo de Lennon, escrita por David Fricke em 2010 [aqui]. 


 

20 de maio de 2015

Fredera em voo solo

Faço questão de não deixar passar em branco essa data, 70 anos de Fredera, um dos mais inventivos guitarristas brasileiros, e uma cabeça pensante também, que mergulhou fundo nas inquietações dos anos incríveis e de chumbo. O Som Imaginário, muito além de um conjunto de acompanhamento para Milton Nascimento, ganhou asas e decolou em voo próprio, como bem ilustra a capa de seu primeiro disco. Como já escrevi alguma coisa sobre o grupo por aí [aqui], deixo o espaço pra mostrar Fredera em voo solo (Aurora Vermelha, 1981), seja com sua guitarra expressiva, sua visão musical, e sua esgrima com palavras, desenhada com cortante precisão nessa entrevista concedida ao blog Virtuália. Os elogios vocês verão que são todos merecidos, mas o melhor é ler e ouvir registros ímpares como esses.


9 de fevereiro de 2015

1a c/ a 7a O homem que engarrafava nuvens

Numa manhã daquelas preguiçosas entre os dias das festas nos últimos dias de 2014 assisti junto com a família esse belo documentário sobre a vida de Humberto Teixeira, O homem que engarrafava sonhos, dirigido por Lírio Ferreira e com grande envolvimento da filha do compositor, a atriz Denise Dumond. Recheado com depoimentos de figuras centrais na história da cultura brasileira e gente próxima com história pra contar, inserções de imagens e áudios preciosos, e as canções que acionam nossa memória afetiva, tendo povoado nossa audição desde tempos que parecem ser imemoriais, o documentário vale uma conferida.




31 de julho de 2014

Na estante no fim das férias




Nestas férias que se encerraram pra mim ontem andei lendo alguma coisa, não tanto quanto gostaria. Mas o bastante para dar uma relaxada e ao mesmo tempo apreciar por ângulos distintos um pouco da história da música popular. Curiosamente, um ponto em comum dessas leituras foi a possibilidade de realizá-las de forma simultânea e não-linear. É bom dar essa modificada na experiência de leitura, até porque muitas vezes ao longo do semestre a conversão do livro em ferramenta de trabalho às vezes deixa pouco espaço para investidas mais lúdicas no ato de ler. Foi assim que me lancei sobre três livros que retém justamente essa propriedade, ao menos para mim, de serem degustados "fora da ordem", em pequenos nacos ou grandes pedaços, em breves pausas para o "café" ou longos "banquetes". O primeiro é Para seguir minha jornada, de Regina Zappa (editora Nova Fronteira), jornalista já escolada em esquadrinhar a vida e a carreira de Chico Buarque. Na verdade nesse sentido o livro não trás novidade para quem já leu uma ou mais biografias canônicas - inclusive da mesma autora - digamos assim, desse caro amigo Francisco. O diferencial é a parte gráfica, desde a composição às reproduções de fotografias e documentos, explorando bem o farto material digitalizado recentemente pelo Instituto Tom Jobim. Isso torna o livro bom de folhear, e às vezes me peguei lendo as reproduções das matérias de revistas, entrevistas, quase como se estivesse no próprio arquivo, algumas vezes até saltando as partes do texto que eram redundantes em relação ao material. Um livro para ser "lambido" com os olhos. Seguindo a linha biográfica, mas para ser exato, autobiográfica, adentro o indispensável Antologia (Cosac Naify), histórica e bem acabada publicação que faz parte do projeto que cuidou de dar voz ao próprios Beatles (devidamente acompanhados pelas rememorações de pessoas próximas como George Martin, Derek Taylor e Neil Aspinal). Mesmo para um beatlemaníaco incurável e mais que familiarizado com todas aquelas histórias, exaustivamente assistidas e lidas por aí na vida, acaba sendo diferente ter e manter essa preciosidade ao alcance dos olhos a qualquer momento. Além de ser farta e belamente ilustrado com fotos e material de arquivo, o grande trunfo do livro são os depoimentos dos Beatles (os de Lennon foram retirados de diferentes fontes e os dos outros 3 recolhidos durante o projeto), não apenas pela ênfase perspectiva deles, mas porque são arranjados de forma que podemos lê-los como variações sobre um mesmo episódio, revelando a particularidade de cada um mas também os pontos comuns, permitindo que o leitor obtenha um grande painel sobre os 4 inseridos naqueles anos incríveis e conturbados. E por fim 1973: o ano que reinventou a MPB (Sonora editora), competentemente organizado por Célio Albuquerque, radiografia de múltiplas vertentes para uma coleção respeitável do que de melhor se fez em disco na música popular brasileira naquele ano. O leque é grande. Vou lendo ainda, começando num disco que me dá na telha, correndo pra ver aqueles pelos quais tenho apreço particular, mas também me deparando com os que não conhecia ou tinha pouca noção. Os enfoques diversos da profusão de autores convidados, entre músicos, críticos, jornalistas, produtores, estudiosos e amantes (alguns respondem por várias dessas categorias), dão o tom do livro, o que permite ao leitor ganhar sensível intimidade com a obra escrutinada em cada texto. De quebra, um quadro abrangente do cenário musical e também do país no ano em questão emerge aos poucos, em camadas de tinta e pinceladas de diferentes estilos. Isso dá ao livro uma coerência que não é possível ter em coletâneas / compilações de listas e análises de discos tradicionais, que costumam abarcar recortes temporais livres e amplos demais. Essa qualidade torna mais clara a importância do patrimônio cultural representado por nossa música popular, ao mesmo tempo que dá a medida de como funcionam os mecanismos da memória e os jogos da consagração cultural, deixando as escolhas de então em contraste com a posteridade e os caminhos percorridos pelas obras após terem soado no mundo. Cada texto traz ao final uma completa ficha técnica do disco, agregando mais informação ao conteúdo que já é bom. A lamentar, provavelmente por questão de custos, que as artes das capas não tenha recebido maior destaque ou impressão colorida. Um pequeno reparo, o único até agora em relação a créditos, é que a autoria correta de Feira Moderna (canção mencionada en passant no texto que aborda Matança do porco do Som Imaginário) inclui Lô Borges, além dos ali creditados Beto Guedes e Fernando Brant.




17 de julho de 2014

Poucas mulheres foram modernas como a Nina Simone

Acabo de ler a entrevista de Lisa Simone Kelly, filha da Nina Simone, publicada no jornal britânico Dailymail [completa, aqui]. Na página oficial de Nina no facebook foi publicado um texto, que, em síntese, coloca bons pingos nos "i"s ao avaliar o relato de Lisa, em essência um depoimento franco que não se propõe a encobrir ou glorificar, e sim dar conta de quem, na perspectiva da filha, foi a mãe, em sua condição humana. 

Lisa "Simone Kelly" is not dragging her mother's name "through the mud," as some people have been saying about this interview. Anyone who knows a lick about Nina Simone already knew these things about her. She could be difficult at times, downright abusive at others. Those closest to her for many years have all spoken out about her volatile nature. Hell, the woman was found guilty of firing a gun to frighten some neighbor boys she thought were being too rambunctious. Nina's short temper is not news, nor is it shocking or surprising to anyone who is familiar with her life and career. While Lisa's words might be jarring, they are her truth and one can only imagine what it was (and is) like being the daughter of Nina Simone, good or bad. Knowing Lisa personally, I can say without any doubt in my mind that she is not consumed with bitterness or hate for her mother. Quite the opposite. She has spent years trying to work through her conflicted feelings so that she may heal and be a better, stronger mother for her own daughter. Lisa spent the better part of ten years fighting for her mother's legacy and to keep her estate intact and on the right path. She neglected her own career in doing so and I was able to see how the politics and legal BS of the music industry wore her down -- so one can only imagine what it did for Nina, who herself was vocal about how the music industry can so easily exploit, abuse, and practically rob people -- especially a strong, talented, black woman. There is a lot of tragicness in the Nina Simone story and in the relationship between Lisa and her mother, but it isn't wholly defined by tragicness either. You are reading the words of a woman who is struggling to heal, understand, and remember her mother in an honest way that does not glorify her because of her fame and talent. Nina would be proud of her daughter. - Aaron Overfield

Lendo isso me lembrei de uma passagem de Aventuras no marxismo de Marshall Berman, quando ouviu no metrô de Nova York uma mãe negra conversando com sua jovem filha sobre os percalços da vida, e encerrando com a frase mais ou menos assim "podemos fazer isso dar certo, nós somos modernas". Poucas mulheres foram modernas como a Nina Simone. O relato duro e tocante de sua filha faz jus a isso.

Deixo vocês com a belíssima apresentação dessa grande artista no Festival de Montreux:
 



P.S. 2018 
Link para o trailer do excelente documentário produzido pelo Netflix  What Happened, Miss Simone? [aqui]

11 de fevereiro de 2014

Estudando a entrevista


Enquanto relutava em concluir a leitura do já nascido fundamental livro de Chico Amaral, A música de Milton Nascimento [ler resenha aqui], fiz algumas reflexões, entre as muitas instigadas por estas páginas tão bem escritas e alinhavadas com a habilidade e criatividade próprias de seu autor. Como uma suíte, o livro é composto de partes que se encadeiam e se complementam, mas guardam andamento e arranjo diferentes. Destas, um dos destaques é a longa entrevista feita com Milton. Uma coisa que me incomoda nas entrevistas feitas com músicos populares, que li em boa quantidade ao longo dos anos em que pesquiso o assunto, é que as perguntas e respostas tendem a se repetir, seja pela finalidade editorial daquele depoimento, seja porque o entrevistador acomodou-se e confiou nos caminhos já trilhados de quem já registrou a fala de seu entrevistado, ou porque este último já como que automatizou as respostas, tantas foram as vezes em que lhe fizeram as mesmas questões. A do livro tem como mérito maior o tempo e destreza gastos em esmiuçar o que de fato é o objeto da obra, ou seja, a música. Não é comum os músicos tratarem de forma tão detida desse assunto, e aqui isso se dá porque o entrevistador não apenas conhece a teoria, mas igualmente a prática, o que lhe instrumentaliza para conduzir bons papos, eventualmente difíceis para os que não detém um certo conhecimento específico da matéria. Além de deixar espaço para as idas e vindas, sem deixar o entrevistado refém de um roteiro muito estruturado, mas tão pouco lhe abandonando às longas derivas que o rememorar pode produzir, ela é bem pensada na forma de apresentação, trazendo aqui e ali rápidos e certeiros comentários posteriores do autor ou, o que é muito interessante, alguns trechos de outras entrevistas com os demais participantes das aventuras musicais de Milton, chamadas para esclarecer, pontuar, pormenorizar, ou talvez para lembrar ao leitor a natureza lacunar própria do lembrar. 
É uma alternativa ao formato mais clássico de entrevista longa, geralmente organizado em torno da biografia do entrevistado. Uma variação pode ser encontrada nas entrevistas conduzidas por pesquisadores usando metodologia da denominada História Oral, concebida para revelar novos ângulos a respeito do vivido partindo do trabalho de rememoração  pelo sujeito que protagonizou a experiência histórica em questão. Entrevistas assim tem o mérito de poder cobrir uma gama de assuntos de interesse e costumam ser mapeadas de modo a permitir a indexação e acesso a partes delimitadas de seu conteúdo, como nos depoimentos ao Museu Clube da Esquina produzidos pela equipe do Museu da Pessoa.
Há também entrevistas que são realizadas por vários perguntadores, posicionados  em bancadas, como no emblemático programa de tv Roda Viva {Bar Academia; , ou de modo mais informal e próximo ao entrevistado, como era o costume nas realizadas pel' O Pasquim. Outra possibilidade é a de realizar a entrevista com vários músicos, arregimentados por sua afinidade e envolvimento em projetos coletivos, como é o caso de algumas entrevistas com membros do Clube da Esquina. {Histórias da MPB, TVE-RJ; O som do vinil; Espaço aberto} Ou eventualmente os próprios músicos podem ser deixados à vontade para desenvolver uma conversa proveitosa e reveladora. É o que ocorre no documentário A sede do peixe, no cenário propício de uma mesa de bar. Um formato marcante é o do programa Ensaio, em que o músico vai interagindo com o entrevistador mas quem assiste só ouve as respostas, sentido-se instigado a deduzir as perguntas feitas da cabine do programa. Em muitos programas televisivos desse tipo há apresentações musicais intercaladas, e eventualmente os músicos permanecem com seus instrumentos ao longo da entrevista, o que pode ser interessante para que ele ilustre ou traduza sonoramente determinados pontos de sua fala {Toninho Horta violão ibérico}. 



30 de agosto de 2013

Um Lobo nada bobo

Para homenagear os 70 anos do Edu Lobo, fiz aqui uma rápida seleção de alguns trechos de entrevistas que considero emblemáticas. Edu fala de sua formação musical, referências, amizades e criação. 

“Agora estou me lembrando de uma vitrola. (...) Lembro muito de ouvir Frank Sinatra, que tinha na minha casa. As músicas de George Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin, os compositores americanos da época. E brasileiros, muitos: Aracy de Almeida cantando Noel, as canções do Caymmi, as canções do Herivelto Martins, do Lupicínio [Rodrigues], as cantoras todas, a Nora Ney.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 226)

“(...) e o Dori [Caymmi] roubava os acordes do João [Gilberto]. E onde é que ia aprender? Não tinha songbook, professor de violão dando aqueles acordes. E o Dori ficava ouvindo e olhando (...)”“ Na trilha dos sonhos”.Revista Palavra, ano 2 n°16 ago/2000, p. 14.

“(...) toda minha história musical começou com essas pessoas: com Vinícius [de Moraes], com Tom [Jobim], com Carlinhos [Lyra], com Baden [Powell], com Oscar [Castro Neves], enfim...Foi a partir desse momento que eu fui comprando os discos, me interessando pelo trabalho deles e convivendo com eles, que eu fui virando músico.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 226)


“Então, quando eu comecei a trabalhar em música (...) uma maneira de eu fazer alguma coisa que não fosse repetir o que estava sendo feito, foi misturar essa informação que eu tinha de música nordestina com toda a escola harmônica que tinha aprendido na bossa nova. (...) Eu comecei a fazer frevos e baiões, o que não era comum na época.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 224)


“(...) quando explodiu a história do tropicalismo, eu estava bem mais interessado no que estava acontecendo no Clube da Esquina. (...) tinha uma forma definida e novas idéias musicais (...) novidade harmônicas. E novidades de canto: aí tinha o Milton Nascimento cantando de um jeito que ninguém cantava, letras interessantes, compositores extraordinários como o Toninho Horta, o próprio Milton, Nelson Ângelo, Beto Guedes, depois o Lô Borges (...) os instrumentistas, como Wagner Tiso, Luís Alves, Helvius Vilella, Nivaldo Onellas... Eles eram grandes músicos e faziam uma espécie de música progressiva, assim pós-bossa nova (...)” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 266)




Para ler entrevista recente de Edu, clique aqui.

O show Edu Lobo 70 anos, com direção musical e arranjos de Cristovão Bastos, está disponível no You Tube.




7 de abril de 2012

Uma ponte entre a palavra e o som

Aproxima-se um evento que sem dúvida será uma mostra fidedigna da pujança da autoria de canções em Belo Horizonte nos últimos tempos. O Palavra Som celebra essa efervescência, seja ao remeter aos 10 anos do Projeto Reciclo Geral ou ao promover o diálogo entre a geração de artistas que se projetou a partir dali e as novas levas de desbravadores dessas "tortuosas trilhas". Curti muito o videozinho (ver) [e agora mais essa a-mostra]. Me emocionou particularmente a notícia do reencontro em palco de Kristoff Silva, Makely Ka e Pablo Castro, trio responsável pelo já antológico A outra cidade (ouça muito), do qual me honra muito ter participado como letrista em duas canções. De quebra ainda estão programadas oficinas na Funarte MG, para tratar justamente da união da palavra com o som.


Ten years ago today...

Falar disso é um dos meus assuntos preferidos, como pesquisador e como autor. Jogo nas duas, como se poderia dizer em linguagem futebolística. Há mais tempo até ficava querendo separar um pouco essas duas facetas, receoso de uma interferir com a outra. Hoje vejo que a interferência é inevitável e benéfica. E às vezes acontece de forma inesperada. Motivado pelo Palavra Som acabei decidindo contar como surgiu uma canção (de fato  a última que fizemos eu e Pablo) justamente no contexto de um debate sobre a criação das mesmas. Foi assim...

Nos idos de 22 de fev/2012, o Pablo postou e comentou via Facebook uma entrevista n'O Globo com novos expoentes da cena musical carioca. Em torno de temas como cânone, vanguarda, pop, contexto, transcendência, crítica, mercado, arte, técnica, opções estéticas, políticas, "o eixo", Minas, polêmicas muitas (assunto pra várias postagens futuras), pontuadas por provocações mais ou menos intensas, compositores das várias cenas debatendo. Até meti a colher rapidamente, mas curiosamente foi surgindo uma disposição diferente. Três elementos, dentro da intensa discussão, acenderam o pavio da inspiração. Começou com a expressão usada pelo Pablo para pensar a posição de Minas entre a "profundidade" e a "superfície" (e problematizando um certo binarismo repaginado entre Rio e São Paulo). Talvez sejamos uma ponte oculta, ele escreveu.  Deu na hora vontade de ter uma música com esse título. Depois o Flávio Henrique disse que achava que a música diz bem mais que as palavras. Sou de escrever muitas palavras sobre música, mas concordo com isso e aí já estava me sentindo desafiado a fazer justamente uma música. E depois, ainda por cima, Renato Villaça botou que a História iria bater o martelo. O historiador aqui achou a mesma coisa. A comichão converteu-se em dedos ágeis no teclado. Queria colocar as ideias a partir do debate, mas a coisa foi ficando meio enigmática...a letra foi se escrevendo, em torno da ideia de oculto e visível, e a ponte entre opostos, o debate contexto x atemporal e a imagem central é isso, o monolito (trascendência) assiste a estrela cadente (momento)  - acho que dá pra entender a "astronomia" da coisa. Ao mesmo tempo é uma imagem que eu puxei de 2001 com o lance do monolito, tinha pensado no filme como cruzamento de vanguarda e atemporalidade. E no fim a história continua... (aliás, parei por aqui porque senão é como contar o fim do filme para quem vai ler/ouvir). Bem, como fiz a letra e depois o Pablo pôs a música, aqui vai nessa ordem também (daqui uns dias arrumo com a música):

Ponte oculta

A ponte oculta
do canto que partiu
a parte alguma
da nuvem que pariu
do céu ao chão a chuva

que lava a superfície nua
da rua
que leva ao oceano solo
da lua

um monolito transcedente
assiste a estrela cadente
e a história continua

A ponte oculta
da linha que cerziu
a tela rôta
a outra que emergiu
pincel a mão a luva

que pinta o sol fenol na finda
esquina
que limpa a poeira fina da
ruína

um monolito transcendente
assiste a estrela cadente
e a história continua

11 de março de 2012

Caetano muito bacana: a formação de um músico popular

Trecho do especial 4a. Nobre (Rede Globo) de 1973 (o original tem 42 min.), belas imagens da Bahia e entrevista bacana com Caetano Veloso e depoimento de parentes, vizinhos... Entre tantas coisas, ele fala de Santo Amaro, Salvador e São Paulo. Uma fala interessante, logo no início, é a que aborda a importância do rádio em sua vida e formação como músico. Lembrei imediatamente do 2° capítulo da minha tese (GARCIA, 2007) [para baixar e ler, aqui], na parte em que comparo os anos de formação através de relatos auto-biográficos de Caetano, Gil, Chico, Edu e Milton. 
Transcrevo de lá algo sobre o assunto, com algumas citações incorporadas das leituras que pesquisei à época:


"(...) Sendo todos eles advindos dos extratos médios da sociedade brasileira, e mesmo tendo alguns deles vivido em cidades interioranas até a juventude, há alguns elementos recorrentes nas descrições que fazem das manifestações da música em seu ambiente doméstico. A presença de eletrodomésticos responsáveis pela transmissão e reprodução musical, como rádios e vitrolas, traz à lembrança de Edu Lobo todo um repertório sonoro:

“Agora estou me lembrando de uma vitrola. (...) Lembro muito de ouvir Frank Sinatra, que tinha na minha casa. As músicas de George Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin, os compositores americanos da época. E brasileiros, muitos: Aracy de Almeida cantando Noel, as canções do Caymmi, as canções do Herivelto Martins, do Lupicínio [Rodrigues], as cantoras todas, a Nora Ney.” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 226)

O mesmo vem à tona na fala de Chico Buarque:

“(...) eu ouvia muito rádio. E tocava na época [adolescência] música francesa, muita música latino-americana, muita música americana. E brasileira, especialmente na época de Carnaval, em que tocavam aqueles sambas, aquelas marchas.(...) E depois a primeira safra do rock, com Elvis Presley, Little Richard e aquela gente toda (...)” (NAVES, COELHO & BACAL, 2006: 165)

Milton Nascimento também pontua uma série de referências a partir do acervo discográfico de sua casa: “(...) a gente tinha os discos de operetas, música clássica, temas de filmes (...) os discos das cantores de jazz com grandes bandas... Então, lá em casa, sempre ouvi de tudo (...)” [Entrevista concedida a Márcio Borges para encarte do CD coletânea de Milton Nascimento produzido pela revista Seleções em 2002, p.27.]

Fosse pelo rádio ou pelo disco, o que se ouvia representava um espectro razoavelmente grande da canção popular nacional ou de outras procedências. Tanto Chico quanto Caetano Veloso viriam a se valer, anos depois, do vasto conhecimento do repertório da música popular brasileira anterior à bossa nova adquirido através destes meios, quando participaram do programa televisivo Esta noite se improvisa. Em Verdade Tropical, Caetano recorda-se das horas gastas ao piano da sala de sua casa em Santo Amaro “(...) no qual tirava de ouvido canções simples aprendidas no rádio (...)”, ainda que as harmonias fossem massacradas pelas limitações de sua percepção (VELOSO, 1997: 28).

28 de fevereiro de 2012

Elos e fontes: da Refazenda ao sítio

Penso que a digitalização e disponibilização de acervos na internet, em projetos bem feitos, que disponibilizam ferramentas de busca eficientes, terá nos próximos anos um grande efeito na forma como se faz pesquisa histórica, seja em geral, seja especificamente aquela voltada para a música popular. Certamente é um grande ganho a facilidade de acesso, a poucos toques dos dedos, de uma massa documental que seria difícil reunir fisicamente em dispendiosas cópias, ainda mais por um único pesquisador. Isso contrabalanceia um pouco a carência de arquivos públicos em bom número e com boas condições de trabalho (assunto que discutimos na disciplina Música popular e colecionismo semestre passado). Obviamente, é preciso aquele olho clínico de sempre, para separar joio do trigo, e a habitual postura crítica em relação ao arquivo digitalizado, quem realizou, quem financiou, porque...enfim, a mesma postura que adotamos em relação às fontes em quaisquer condições. A sensibilidade, o faro do historiador, para mim vão sempre depender desse trato com o material, do trabalho com o "corpo" dos documentos para criar elos, costurar. Os novos recursos não devem ser motivo para eliminar os tradicionais, e sim ser articulados de forma a potencializar os resultados da investigação.

Essa história hoje começou assistindo esse curto documentário dirigido por Marco Antonio Bichir durante a gravação do disco Refazenda, no Rio de Janeiro em 1975.


E foi parar nesse sítio:
Projeto sem complicação de digitalização do acervo do jornalista paranaense Aramis Millarch.  Interessante inclusive por ser um material de fora do eixo Rio-São Paulo. Pela primeira exploração, oferece possibilidades para pesquisa, principalmente para quem se interessa pela repercussão da música popular na imprensa. Só pra dar um gostinho, ouçam essa entrevista do Airto Moreira. Ele explicando como compunha sem escrever música, usando um gravador, é impagável!

15 de janeiro de 2012

Grandes encontros na música popular III

Muitos e bons frutos rendeu a parceria entre Chico Buarque e Francis Hime. Entre tantas vale citar  Pivete, Atrás da porta, Vai passar, Trocando em miúdosPassaredo e Meu caro amigo, as duas últimas além de tudo gravada justamente em 1976, figurando no ótimo LP Meus caros amigos, em que Hime participou ativamente, como compositor, arranjador e pianista. Escrita como uma carta cantada endereçada ao teatrólogo Augusto Boal, então exilado em Lisboa, a canção descasca com argúcia e ironia o cotidiano de quem por aqui "segurava o rojão" da ditadura militar. Como o próprio Chico afirma numa entrevista concedida a Geraldo Leite na rádio Eldorado em 1989, "(...) a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70. São discos com a cara dos anos 70". Outro destaque na letra são os versos finais, extremamente pessoais. No todo, uma bela obra, muito bem arranjada e executada.



Destaque final, o depoimento de Chico no DVD Meu caro amigo, antes das imagens de arquivo, revela que foi com Francis que ele aperfeiçou suas habilidades como parceiro, pois até então considerava difícil por a letra em música alheia.

3 de janeiro de 2012

Grandes encontros e histórias de compositores: afro-sambas

Instigado pelo Marcelo Gloor, vou tratar do grande encontro de Vinícius com Baden Powell. Lembro com nitidez o momento exato em que descobri, numa das entrevistas do Pasquim, revisitadas durante a pesquisa do doutorado, um detalhe que escapa de muitos relatos (inclusive dos protagonistas!) sobre a história dessa reunião espetacular. Segundo Baden [O Pasquim, n°35, 09-15/02/1970, p.15], Berimbau foi composta por volta de 1960, e só posteriormente incorporada por Vinícius no conjunto dos “afro-sambas”, que seriam reunidos no LP Os Afrosambas (Forma, 1966).




Outra pista apareceu numa fala de Edu Lobo em mesa de debate promovida no n° 4 da Revista Civilização Brasileira, em 1965:
“(...) Mas nossa música não parou aí. Surgiram variações da bossa nova original, que só atestam sua riqueza. Até que surgiu Baden Powell que introduziu o elemento afro, no caso, o samba negro, com batida (‘Berimbau’ é um exemplo) e com influência de Villa-Lobos (...)”

Muito poderia ser dito a partir desse trecho, inclusive sobre o sentido que tinha então o termo "afro", certamente diferente do atual. Mas interessa aqui é constatar que os afro-sambas não podem ser interpretados como mero desenvolvimento dentro da bossa nacionalista de meados dos anos 1960, pois rompem com alguns de seus padrões, especialmente na sua concepção rítmica e execução violonística. Por outro lado não podem ser percebidos como projeto de ruptura total, uma vez que não foram criados ou recebidos assim no contexto de sua produção e recepção inicial. Por fim, vale ressaltar que as discussões sobre o nacional e o popular daquele momento foram acirradas e geraram muitos desdobramentos historica e esteticamente relevantes para a música popular brasileira. Os afro-sambas são prova disso e mereceram inúmeras regravações, dentre tantas maravilhosas destaco o disco primoroso de Mônica Salmaso e Paulo Bellinati:

4 de novembro de 2011

Música Popular e Colecionismo V - trabalhos dos alunos

Vídeo produzido pelo aluno Aloísio Santos, do curso de arquivologia da ECI/UFMG, como pesquisa de campo para a disciplina Música Popular e colecionismo. Além disso, está marcando a estréia do Canal Massa Crítica MPB no You Tube. Outros vídeos virão!