Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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14 de fevereiro de 2020

Garotos da capa

Repercute desde ontem a notícia [da Folha e reproduzida] de que os hoje cinquentões Antônio Carlos Rosa de Oliveira — o Cacau—, e José Antônio Rimes — o Tonho, aqueles garotos cuja fotografia numa beira de estrada, captada pelas lentes atentas do grande Cafi em seu périplo na região serrana do Rio de Janeiro ao lado do letrista Ronaldo Bastos, estampa a capa do disco Clube da Esquina, estão processando Milton Nascimento, Lô Borges, EMI (hoje incorporada à Universal Music) e Editora Abril,  em protesto a direitos de imagem que lhes são devidos.

A questão é aplicar a Lei, o que neste país - a despeito da caríssima estrutura do Judiciário, excessivamente prestigiada com privilégios e pompas desnecessárias - parece tão difícil de aplicar, ainda que seja até óbvia para quem tem senso e um mínimo de interpretação de texto. A constituição de 1988 garantiu direito de imagem, depois foi regulamentado [aqui], como exponho abaixo:

Código Civil de 2002:
“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais."

Uma coisa é a pessoa abrir mão, com ciência, do seu Direito, e isso ficar documentado, e outra ser lesada, ainda que estejam todos os agentes cobertos de "boas intenções". O Brasil virou esse faroeste porque ninguém entende isso, ninguém sabe o que é Direito e quase todo mundo quer saber mesmo é de privilégio. A imagem é deles e eles merecem uma remuneração, qual vai ser quem decide é a Justiça. Oportunista é Paulo Guedes da vida. Esses dois são caras pobres, que só recentemente se deram conta que foram parte de uma coisa grande , que deu grana, e eles não viram a cor. Só quando o Estado de Minas reencontrou os garotos [aqui] e houve grande repercussão [aqui] é que eles se deram conta. Vejo muita gente falando em advogado oportunista, mas isso denota também um enorme desconhecimento da realidade social dos mais pobres desse país. Tem gente que acha que todo mundo pode pagar advogado, tem parente advogado. Muita ignorância. Agora, quem se preocupar com isso arrume então um advogado confiável para dar uma consultoria gratuita a Cacau e Tonho, para assegurar que eles não serão ludibriados. Além de tudo, os caras são filhos de camponeses... se fosse anos 1960, 1970, a galera do Clube toda ia defender essas pessoas. Tenho lido comentários de gente que se diz fã dessas músicas, desses artistas, que ou não entendeu nada, ou então está empenhada em esvaziar o significado daquilo tudo, transformando lutas dignas pelo povo brasileiro em material que serve à massagem de uma estranha "consciência social" narcisista. É justa e pertinente a reivindicação, apenas quanto a incidência em cima de reedições recentes, quando a legislação já prevê o direito de imagem. E, lógico, o réu principal é a gravadora, que obviamente fará de tudo para protelar e não pagar o que deve. Talvez o Ronaldo Bastos possa ser implicado, se em algum momento ele "deteve" o direito da capa - isso não está claro. Sobre isso temos que aguardar a Justiça se pronunciar.

Se essa capa - na verdade contracapa - já tinha História, agora tem mais um capítulo. Que síntese do que sempre foi o Brasil está nela!



30 de novembro de 2014

Recuso + aceito, tropicalíssima ambiguidade

Enquanto preparo minhas considerações para uma banca sobre o tropicalismo de Caetano e o cinema de Glauber amanhã na Escola de Música da UFMG, me deparo com esse texto de Gil no Pasquim que não conhecia. Agora me chama atenção pelo embate que assume com o MIS ao recusar o prêmio Golfinho de Ouro. Se tiver tempo farei um post maior no Massa Crítica. Por agora, fica a curiosidade. Olha um trecho : "O que meu pai precisa saber é que o museu sempre esteve contra o meu gorjeio, que sempre achou desnaturado, desarmonioso, inautêntico e incômodo; sempre esteve contra tudo que na música, no disco e na TV, tenha tido um sentido de abertura compatível com a liberdade criativa de um povo novo e fogoso como o brasileiro. Pelo que sei as aristocráticas e puritanas prateleiras do museu não guardaram até hoje um só programa do Chacrinha, o mais lindo que alguém jamais pôde encontrar em qualquer televisão do mundo". Texto completo, aqui


 

11 de fevereiro de 2014

Estudando a entrevista


Enquanto relutava em concluir a leitura do já nascido fundamental livro de Chico Amaral, A música de Milton Nascimento [ler resenha aqui], fiz algumas reflexões, entre as muitas instigadas por estas páginas tão bem escritas e alinhavadas com a habilidade e criatividade próprias de seu autor. Como uma suíte, o livro é composto de partes que se encadeiam e se complementam, mas guardam andamento e arranjo diferentes. Destas, um dos destaques é a longa entrevista feita com Milton. Uma coisa que me incomoda nas entrevistas feitas com músicos populares, que li em boa quantidade ao longo dos anos em que pesquiso o assunto, é que as perguntas e respostas tendem a se repetir, seja pela finalidade editorial daquele depoimento, seja porque o entrevistador acomodou-se e confiou nos caminhos já trilhados de quem já registrou a fala de seu entrevistado, ou porque este último já como que automatizou as respostas, tantas foram as vezes em que lhe fizeram as mesmas questões. A do livro tem como mérito maior o tempo e destreza gastos em esmiuçar o que de fato é o objeto da obra, ou seja, a música. Não é comum os músicos tratarem de forma tão detida desse assunto, e aqui isso se dá porque o entrevistador não apenas conhece a teoria, mas igualmente a prática, o que lhe instrumentaliza para conduzir bons papos, eventualmente difíceis para os que não detém um certo conhecimento específico da matéria. Além de deixar espaço para as idas e vindas, sem deixar o entrevistado refém de um roteiro muito estruturado, mas tão pouco lhe abandonando às longas derivas que o rememorar pode produzir, ela é bem pensada na forma de apresentação, trazendo aqui e ali rápidos e certeiros comentários posteriores do autor ou, o que é muito interessante, alguns trechos de outras entrevistas com os demais participantes das aventuras musicais de Milton, chamadas para esclarecer, pontuar, pormenorizar, ou talvez para lembrar ao leitor a natureza lacunar própria do lembrar. 
É uma alternativa ao formato mais clássico de entrevista longa, geralmente organizado em torno da biografia do entrevistado. Uma variação pode ser encontrada nas entrevistas conduzidas por pesquisadores usando metodologia da denominada História Oral, concebida para revelar novos ângulos a respeito do vivido partindo do trabalho de rememoração  pelo sujeito que protagonizou a experiência histórica em questão. Entrevistas assim tem o mérito de poder cobrir uma gama de assuntos de interesse e costumam ser mapeadas de modo a permitir a indexação e acesso a partes delimitadas de seu conteúdo, como nos depoimentos ao Museu Clube da Esquina produzidos pela equipe do Museu da Pessoa.
Há também entrevistas que são realizadas por vários perguntadores, posicionados  em bancadas, como no emblemático programa de tv Roda Viva {Bar Academia; , ou de modo mais informal e próximo ao entrevistado, como era o costume nas realizadas pel' O Pasquim. Outra possibilidade é a de realizar a entrevista com vários músicos, arregimentados por sua afinidade e envolvimento em projetos coletivos, como é o caso de algumas entrevistas com membros do Clube da Esquina. {Histórias da MPB, TVE-RJ; O som do vinil; Espaço aberto} Ou eventualmente os próprios músicos podem ser deixados à vontade para desenvolver uma conversa proveitosa e reveladora. É o que ocorre no documentário A sede do peixe, no cenário propício de uma mesa de bar. Um formato marcante é o do programa Ensaio, em que o músico vai interagindo com o entrevistador mas quem assiste só ouve as respostas, sentido-se instigado a deduzir as perguntas feitas da cabine do programa. Em muitos programas televisivos desse tipo há apresentações musicais intercaladas, e eventualmente os músicos permanecem com seus instrumentos ao longo da entrevista, o que pode ser interessante para que ele ilustre ou traduza sonoramente determinados pontos de sua fala {Toninho Horta violão ibérico}. 



20 de março de 2012

Lendo jornal e dando notícia

Enquanto o tempo escasso não permite maiores arremetidas em direção ao solo das palavras, vou lendo jornal e dando notícia. 

Na Ilustrada, notícia sobre o site lançado pelo Instituto Moreira Salles para hospedar "(...) músicas, partituras e documentos que marcarão a contagem regressiva para a comemoração, no ano que vem, dos 150 anos de nascimento de Ernesto Nazareth (1863-1934), compositor e pianista que, por meio do choro, foi um dos arquitetos da identidade da música brasileira" (aqui).

No português Público, uma reportagem muito interessante sobre a fita cassete no cenário fonográfico atual. (aqui). Um trecho de uma das entrevistas:  "(...) Fazíamos o que se faz agora com o mp3. Era uma forma de partilha. (...) Rui não sabe se há um "ressurgimento" da cassete, se será "o novo vinil" — "se calhar nenhum deles morreu" —, mas considera que tem tudo a ver com a "relação emocional ao objecto" e com a forma como hoje se consome música. "O digital é uma forma de conhecer, mas depois quem tem instinto de coleccionador... compra." Com o mp3 perdeu-se a noção de álbum, "do lado A e do lado B". Conceptualmente, diz, a "rugosidade" e as "arestas" do som da cassete agradam à vaga mais experimental de músicos que recuperam os sintetizadores."

15 de março de 2012

Recordações de pesquisa: lendo o Pasquim...

Pesquisa é uma aventura. É um roteiro sendo reescrito com o filme em andamento. Um pequeno passeio ou uma longa jornada. Um mergulho numa cachoeira ou atravessar correntezas. Sair de casa com pressa de chegar e voltar porque esqueceu de trancar a porta. Sobrevoar uma cidade alagada num helicóptero ou ficar sem gasolina num jipe no meio do deserto. Andar dias a pão e água, e de repente jantar numa mesa servida a marajás. Estar certo de que surgirão dúvidas, e duvidar de todas as certezas (inclusive a que diz respeito às dúvidas). 
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Enquanto se escreve uma dissertação ou tese, nos deparamos às vezes com a dura tarefa de evitar certas investidas que parecem justamente as mais interessantes, mas que podem nos desviar do rumo e causar perdas de tempo que não teremos como recuperar. Mas tem hora que isso pode ser justamente o que o atarefado pesquisador está precisando, por razões mil que ele próprio desconhece. Em dose moderada, tais leituras podem ser pausas importantes para retomar o fôlego, ou mesmo guardar inspirações inesperadas. Ou mesmo ser aquele tempo que se perde quando precisamos recobrar a perspectiva e lembrar que nem tudo gira em torno da bendita pesquisa. Como era "difícil" pesquisar n'O pasquim, em que absolutamente tudo era interessante e divertido. A tentação para esquecer um pouco o tema, as entrevistas com os músicos, e dar uma sapeada em tudo era enorme. E quantas vezes tive que conter, na verdade tive que sufocar o riso que queria brotar em meio ao silêncio da hemeroteca... e outras vez, humanamente, não consegui e veio a risada, meio abafada, ou eventualmente solta quando não havia nada além de mim e pasquins.
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Em tempo, o site Memória Viva está disponibilizando as primeiras páginas de várias edições do jornal, confiram aqui.
 
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P.S. 2020
Que salto estupendo deu a digitalização de documentos no Brasil nesses anos que se passaram. Hoje o site da Biblioteca Nacional já disponibiliza todas as edições digitalizadas de O Pasquim e ainda conta com um motor de busca para refinar a pesquisa: aqui

28 de fevereiro de 2012

Elos e fontes: da Refazenda ao sítio

Penso que a digitalização e disponibilização de acervos na internet, em projetos bem feitos, que disponibilizam ferramentas de busca eficientes, terá nos próximos anos um grande efeito na forma como se faz pesquisa histórica, seja em geral, seja especificamente aquela voltada para a música popular. Certamente é um grande ganho a facilidade de acesso, a poucos toques dos dedos, de uma massa documental que seria difícil reunir fisicamente em dispendiosas cópias, ainda mais por um único pesquisador. Isso contrabalanceia um pouco a carência de arquivos públicos em bom número e com boas condições de trabalho (assunto que discutimos na disciplina Música popular e colecionismo semestre passado). Obviamente, é preciso aquele olho clínico de sempre, para separar joio do trigo, e a habitual postura crítica em relação ao arquivo digitalizado, quem realizou, quem financiou, porque...enfim, a mesma postura que adotamos em relação às fontes em quaisquer condições. A sensibilidade, o faro do historiador, para mim vão sempre depender desse trato com o material, do trabalho com o "corpo" dos documentos para criar elos, costurar. Os novos recursos não devem ser motivo para eliminar os tradicionais, e sim ser articulados de forma a potencializar os resultados da investigação.

Essa história hoje começou assistindo esse curto documentário dirigido por Marco Antonio Bichir durante a gravação do disco Refazenda, no Rio de Janeiro em 1975.


E foi parar nesse sítio:
Projeto sem complicação de digitalização do acervo do jornalista paranaense Aramis Millarch.  Interessante inclusive por ser um material de fora do eixo Rio-São Paulo. Pela primeira exploração, oferece possibilidades para pesquisa, principalmente para quem se interessa pela repercussão da música popular na imprensa. Só pra dar um gostinho, ouçam essa entrevista do Airto Moreira. Ele explicando como compunha sem escrever música, usando um gravador, é impagável!