Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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16 de março de 2022

Aula de canção - Raça de Heróis (Guilherme Arantes)

Surgiu de súbito a oportunidade de rever o primeiro capítulo da clássica novela Que rei sou eu?, do distante 1989. As recordações de momentos divertidos que se mesclam às lembranças difusas de um tempo de descoberta da política, das ideias socialistas, do ateismo, do ímpeto juvenil, se reembaralham ao ver o folhetim televisivo ao lado da filha já universitária, de espírito aberto para o novo indepentente de "atual" ou "antigo". Para além de toda fórmula reside além uma mostra, por menor que seja, da vocação parodística brasileira, e do poder de sua cultura de interpretar os sinais vigentes e deixar resíduos que dão a ler algo do passado que escapou aos meus olhos adolescentes, mas também os fragmentos de um espelho a interrogar nosso presente. Ao fabular um Brasil como pastiche de reino europeu e imaginar a saída de seus impasses e misérias através de arremedos de revoluções, tramas palacianas, príncipes bastardos messiânicos e déspotas esclarecidos, a novela da Globo traçou o prelúdio dos anos da dita nova república sob a Constituição de 88, obviamente que valendo mais olhar o miolo do que o desfecho da trama, que conclui apenas uma das direções sugeridas.
De quebra recordei o tempo em que as trilhas acomodavam obras de nota como Espanhola (F. Venturini e Guarabyra), Flecha (Marcos Viana) e Raça de Heróis (Guilherme Arantes). 




Sente o rufar dos tambores
Ouve os metais que anunciam
Um cavalgar de coragem
Todo temor silencia

Nosso reino é assim
Território sagrado
Pra sempre
Resiste em nós

Uma certeza de aço
Sela os portões desse reino
E não há dor nem cansaço
Todo sofrer é pequeno

Nosso reino é assim
Território sagrado
Pra sempre
Resiste em nós

Raça de Heróis
Virá salvar a Terra
Raça de heróis, heróis, heróis

Eis que ao postar o vídeo da última canção (que incorporo logo acima com letra - a partitura com cifra pode ser consultada no site oficial do cantautor, aqui), o amigo blogueiro Túlio Villaça comentou o seguinte:

"Essa música do Guilherme Arantes é muito bonita, mas eu tenho medo dela. Foi feita de encomenda para a novela, mas o subtexto dela é protofascista total."

Ele ainda acrescentou:
"Cara, Que Rei Sou eu era a novela das 7 na eleição do Collor em 1989... Não tenho nenhuma acusação pessoal ao Guilherme Arantes, mas a canção foi a trilha sonora da novela em que um príncipe prometido de uma antiga linhagem vinha salvar o país".

Da primeira afirmação discordei, com a outra basicamente concordei, e considerando a rara oportunidade de expandir uma reflexão a partir dessa provocação inicial, vou procurar sistematizar e fazer alguns adendos ao que redargui, a seguir:

Não tenho medo nenhum. Primeiro, no contexto tanto da criação dela quanto do restante da obra do Guilherme Arantes, não faz sentido esse receio. Ela captura um sentido romântico do século XIX, empregado nos folhetins de capa e espada, e também uma das fontes culturais do nacionalismo que redefiniu o mapa da Europa. Não é por acaso que a inspiração medieval permeia o romantismo do XIX, romances como os de Walter Scott, por exemplo. Há uma idealização daquela época, que também ressurge entre bandas de rock progressivo que influenciaram G. Arantes claramente, como se percebe desde a introdução. O tom épico é alicerçado numa harmonia relativamente simples mas interessante, na melodia cativante e bem urdida numa forma com verso, parte "b" (ou ponte) que literalmente ergue o cálice do santo graal até ser arrematada num refrão inesquecível, em que o arranjo cresce com coro, metais, cordas, teclados. Uma bela canção que serve perfeitamente como tema de ação e aventura ao mesmo tempo que expressa o ethos do grupo de rebeldes populares a quem acompanha, e mesmo assim funciona perfeitamente se ouvida fora desse meio e contexto específicos. Eu tinha visto o G. Arantes tocá-la outro dia em live que promove seu novo disco, A desordem dos templários, e como o amigo Alberto Júnior salientou em comentário do facebook, é um universo "medieval" que o compositor visita com frequência. 

Enfim, os signos da cultura estão sempre em disputa, por isso não podemos perder suas possibilidades polissêmicas. Se o fascismo se apropriou do romantismo - sim - também o fizeram todos os estados nacionais com uma profusão de perspectivas ideológicas, porém comungando a estratégia de identificar povo e terra. Há cartazes britânicos da 2a. Guerra de convocação da população às armas que tem a mesma estética dos nazistas e dos soviéticos, só que representando cavaleiros. Quem derrotou o fascismo na 2a Guerra foi sobretudo o nacionalismo, era muito mais um embate entre nações imperialistas concorrentes que qualquer outra coisa, se formos bem objetivos. E esse sentimento, obviamente, é um rearranjo de vinculos simbólicos entre humanos e territórios que existe desde que as populações se sedentarizaram. O heroísmo é um clichê narrativo que data dos primórdios da humanidade. Se não tomarmos cuidado qualquer representação política dessa relação vira "proto-fascista". Além disso, ela foi lida ali no contexto da redemocratização, a novela como um todo, desembocando num embate entre dois messianismos, o neoliberal do caçador de marajás e o popular reformista do líder sindical. Ela se encaixa perfeitamente no mito politico sebastianista, qualquer messianismo, ou então no imaginário revolucionário, que também não se pode chamar de proto-fascista. Aliás, o príncipe é o cúmulo da fantasia centrista tradicional brasileira, ele é criado entre os pobres, pela dona do bordéu. 
Por fim, não é para causar preocupação, onde uma canção dessa toca atualmente? Eu me preocuparia muito mais com o manancial de odes reacionárias e capitalistas selvagens que marcam presença forte nos gêneros de sucesso amplamente distribuídos pelos meios massivos.








6 de março de 2020

Dependência cultural, ainda

Meu parceiro Pablo Castro, costumeiro colunista convidado neste blog, produziu nos últimos dias dois textos com sua habitual contundência e bastante conhecimento de causa, sobre as relações desiguais na dinâmica do intercâmbio cultural através de meios massivos e a política de fomento à Cultura no Brasil. Embora o estopim de tais reflexões tenha sido a recente publicação do edital provido pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura em Belo Horizonte, optei por reunir os textos subsequentes à primeira postagem que ele fez, por serem mais abrangentes e menos dependentes dessa contextualização específica. Aponto ainda que o tema é de relevância maior num momento em que o atual governo federal, em seu ímpeto destrutivo, procura de todos os modos aparelhar e dirigir o fomento à cultura no Brasil de acordo com os interesses de grupos de extremistas religiosos e conservadores, fora ocupar-se dos costumeiros desvios criminosos, pretendendo, para tal fim, extinguir fundos públicos, inclusive alguns dos mais importantes no fomento à Cultura [aqui].
Cumpre frisar que aqui temos a proposta de um debate crítico que abrange o passado, o presente e o futuro da criação cultural, em especial a devotada à música popular, em nossa cidade, estado e país. É bom que ele não seja feito em termos estritamente acadêmicos, e igualmente não seja feito no registro do senso comum. No lugar de editor, é lógico que eu posso salientar que guardo aqui e ali minhas discordâncias ou que recorreria a outros termos e conceitos. Mas tirando uma ou outra ponderação que farei ao final, em notas numeradas (retomando algumas observações que já fiz nos comentários das postagens originais destes textos do Pablo no facebook), concordo com a espinha dorsal do que está dito a seguir.


O Que É Dependência Cultural e Por Que Seu Combate Deveria Ser Prioridade Máxima do Investimento em Cultura num País Periférico ? 

Oriundo de décadas passadas, e praticamente varrido da universidade brasileira depois dos anos 70, o conceito de Dependência Cultural se refere à subordinação sistemática de uma cultura nacional ou local à Cultura Metropolitana, seja ela nacional ou mundial . É o correlato na Cultura da questão da dependência econômica macro-societal [1] .
Indícios de Dependência Cultural são a falta de sinergia artística em dada cena cultural, a fragmentação das obras e dos artistas, a profunda padronização, a partir de padrões externos, de suas formas culturais, a desvalorização simbólica das expressões locais e/ou nacionais , tornadas marginais diante dos padrões da Indústria Cultural , a ausência de perspectiva histórica na avaliação e na oferta de Cultura nacional e/ou local, a falta de presença midiática da produção cultural local e/ou nacional, e, por fim, a absoluta inviabilidade prática de autores de viver de sua produção artística [2].
Nesse ponto, é bom observar que o conceito de dependência cultural não se refere a um "atraso", mas sim a uma relação de subordinação sistemática das expressões culturais de um recorte local ou nacional com relação aos centros irradiadores de cultura - leia-se Indústria Cultural.
Se tomarmos esses indícios como algo a ser levado em conta num diagnóstico sério de uma determinada cena local , em país subdesenvolvido e dependente, as secretarias de Cultura de um estado como Minas Gerais e uma capital como Belo Horizonte deveriam se dedicar , de maneira prioritária, a combater essa dependência.
Hoje, em Belo Horizonte, na área de música popular, historicamente responsável pelos maiores feitos em termos de distinção de identidade do estado e da capital, consubstanciados sobretudo no mundialmente consagrado Clube da Esquina, apenas um número ínfimo de artistas mineiros poderiam se apresentar no palco mais clássico da cidade, o Palácio das Artes, com um número de pessoas interessadas. Desde o Clube da Esquina, tivemos o surgimento de um grande número de cantores e compositores de alto nível, reconhecidos em searas específicas em outros lugares do país e do mundo ; mesmo assim, nenhum deles consegue se apresentar no maior palco da cidade. Posso citar aqui , de cabeça : Celso Adolfo, Tadeu Franco, Paulinho Pedra Azul, Sérgio Santos, Titane, Marina Machado, Alda Rezende, Kristoff Silva, etc. , etc, etc. Alguns desses excelentes artistas largaram a carreira, outros a levaram na base do esforço pessoal, mas com dificuldades absolutamente extraordinárias de manter o ímpeto de construir uma obra.
É incontornável concluir que essa falta de continuidade histórica da música popular mineira não se deve a algum defeito desses artistas, mas se deve a uma razão estrutural : somos o estado do Sudeste, e talvez do Brasil, mais prejudicado e inviabilizado culturalmente pelo domínio avassalador do chamado eixo Rio-São Paulo, estabelecido sobretudo pelos militares pelo surgimento da rede nacional de Televisão , que destruiu nossa TV local, com programação exclusiva feita aqui, a antiga TV Itacolomi [o MIS-BH realizou exposição sobre o tema]. 
A despeito de ser o estado com a maior lei de incentivo à Cultura do Brasil, Minas segue sendo um túmulo de talentos. Pudera : todo o ecossistema de Cultura , desde os editais do Estado e do Município, até o rol dos produtores locais de shows e concertos, são condicionados a priorizar, de todas as maneiras possíveis, os artistas cariocas, paulistas, pernambucanos, baianos, pra não falar nos "internacionais", em detrimento dos artistas locais. Ser daqui desvaloriza um artista como um defeito de nascença.
Vejo artistas medianos da dita cena "independente do país" virem aqui várias vezes por ano e receberem cachês 10 vezes maiores do que artistas locais com maior qualidade, originalidade e experiência. Isso nos editais públicos, não apenas em eventos privados.[3]
Uma cidade sem artistas saudáveis, que tenham condições mínimas de acessar a veiculação de seus trabalhos e a formação de um público, é uma cidade sem identidade. O que se depreende até mesmo na exuberância do Carnaval redivivo de BH : somos um carnaval cover, em que os nossos grandes talentos são levados a se tornarem antes de mais nada repetidores de obras consagradas, como que já conformados da impotência de fazer com que novas canções possam de alguma forma ser conhecidas do público local.
Com isso, os editais pautados em conceitos identitários e empacotados de fora, que não se preocupam com a identidade coletiva de um lugar, mas com as identidades fragmentadas a priori em termos de cor, raça, gênero , o que se alcança na verdade é uma acentuação da dependência e do subdesenvolvimento cultural e uma homogeneização ainda maior , nadando a favor da corrente da dominação da Indústria Cultural, tanto a nacional, configurada no eixo RJ-SP, quanto na mundial .


Por Que Políticas Públicas Multiculturalistas São Um Atraso Num País Sincrético ?

Ao analisar a forma como os ditames multiculturalistas foram introduzidos nas políticas públicas de Cultura no Brasil, fica patente que o subproduto dessa imposição é um ataque ao sincretismo e à permeabilidade cultural que se deu na cultura nacional em séculos de miscigenação e misturas culturais que fizeram do país o exemplo mais original , reconhecido por vários argutos observadores estrangeiros, de sincretismo cultural do planeta.
Resumidamente, a teoria multicultural parte do pressuposto que existem grupos culturais totalmente estanques, separados e apartados da sociedade oficial . Enquanto esse ponto de partida faz todo o sentido em países como a França, a Inglaterra , a Indonésia, a Bolívia, o Paraguai, a Alemanha e os Estados Unidos, no Brasil ele configura um retrocesso de séculos [4] . Mas mesmo nesses países, a ideologia multiculturalista , ou seja, os preceitos advindos de uma visão de culturas apartadas e impenetráveis, embora pareça progressista, na prática também aprofunda o apartamento cultural de populações que poderiam se integrar em vista de, no mínimo, lutar pelos seus interesses objetivos de classe.
Por outro lado, a imposição dessas políticas no âmbito da Cultura no Brasil é um retrocesso de séculos. Para isso, basta olhar para a nossa cultura e perguntar : Pixinguinha fazia música negra, ou música brasileira, resultado da combinação de uma harmonia européia com ritmos africanos ? O Clube da Esquina, liderado por um negro adotado por família branca, é música negra ou música branca ? Caetano Veloso faz música branca e Gilberto Gil faz música negra ? A Bossa nova era branca mesmo quando todos os seuis criadores citem um músico negro, Johnny Alf, como seu precursor ?
Mesmo na metrópole cultural do planeta, os Beatles, o maior fenômeno de vendagens da história, um quarteto inglês, fazia música branca ou música negra ? O jazz, talvez o maior fenômeno criativo de música no século XX, é música negra ou música branca ? Resposta, nenhum dos dois.
Toda a cultura humana do planeta nasce de processos sucessivos de hibridizações, sejam eles por imposições, mesclas, trocas, empréstimos e apropriações. Negar isso é negar a própria natureza da cultura humana.
Nada disso significa que não há opressões por trás desses processos, reconhecer a mistura não é advogar uma pretensa harmonia ou simetria onde ela não há . Por outro lado, afirmar o caráter híbrido das culturas humanas é crucial para perseguir o objetivo dessa harmonia. Afinal de contas, não é um mundo mais harmônico que queremos construir, nós da esquerda ? Defender a priori qualquer forma de purismo é rumar na direção oposta.
Mais do que isso, a ideia de combater as desigualdades na ponta, no âmbito das expressões estético-culturais, e não na raiz, na verdade não só não reduz as desigualdades, como também aponta para a perpetuação dessa separação , ao contrário do que se diz pretender atingir.
Quando um edital de cultura coloca como critério de pontuação geral a promoção de purismos politicamente orientados ele trata a cultura como um invólucro vazio que só pode ser tratado como um cabo de guerra, não como uma esfera criativa que possa resultar em originalidades. É precisamente por isso que esse tipo de política gerará sempre uma maior homogeneização, não o contrário.
Sobretudo a naturalização dessa ideologia multiculturalista num país original, diverso , multifacetado e miscigenado como o Brasil, é um evidente retrocesso.
Por fim, analisar números e dados numa política de Cultura só faz sentido como pano de fundo para um cena cultural, onde haja sinergia, mútuas influências e cooperações artísticas, além de uma ideia de história cultural . Cultura não existe sem história, arte não existe sem história , e burocratas de órgãos de Cultura têm obrigação de conhecer essa história. Eles não estão lidando apenas com dinheiro.
Por Pablo Castro


Notas do editor:
[1] A consagração do conceito de globalização e o subsequente debate em torno de sua acepção propriamente cultural levaram à adoção de outros termos para tentar compreender o fluxo assimétrico das trocas culturais. Assim faço questão de frisar que os estudos acadêmicos dos anos 1980 em diante nunca desconheceram os desequilíbrios nas trocas culturais em diferentes recortes espaciais e temporais, foram simplesmente obrigados a estudá-las em novos termos para dar conta dessa outra dinâmica. Como já escrevi sobre isso em minha Tese e neste artigo dela derivado publicado na excelente revista argentina El Oído Pensante, “Só ponho bebop no meu samba...”: trocas culturais e formação de compositores na formulação da MPB nas décadas de 1960 - 70, convido o leitor a aprofundar-se por aqui

[2] Remeto a postagem anterior, Artistas da fome e o valor da bolacha

[3] Eu só gostaria de acrescentar que essa estrutura, que do jeito que está já soterra talentos, inclusive muitos que nascem e/ou vivem no epicentro do eixo mas são marginais até mesmo ali e em relação até ao que se denomina "cena alternativa".  

[4] Na verdade essa teoria não faz sentido em lugar nenhum. Cultura é troca. É mistura. Aquilo que se nos apresenta como particular de um dado grupo, em um dado momento, já pertenceu a outros, mudou de forma, deslocou-se no tempo e no espaço. Multiculturalismo é um tipo de conformismo da Cultura, com fundo falso.

 

23 de janeiro de 2020

O estridente silêncio

Vem repercutindo em alguma medida o texto publicado por Anderson França em coluna da Folha de São Paulo [completo, aqui] em que ele despeja críticas ao silêncio dos que denomina de modo meio desajeitado de "a turma da cultura de massa" da "classe artística" quanto ao famigerado pronunciamento nazista do ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro. A espinafrada que ele deu nessa gente é válida, mas entretenimento é uma coisa e arte é outra, vamos combinar. Claro que ele é apenas um articulista e não tem obrigação de dominar densos conceitos de sociologia da cultura para tecer seus comentários, mas a indistinção que expressa, de modo acrítico, seja quando não discrimina o que seja uma coisa e outra, seja quando igualmente não se dá conta de como sua demanda central é contraditória e finalmente falaciosa. Ora, se ele e nós leitores sabemos perfeitamente que para alcançar o Olimpo do sucesso massificado da indústria cultural é preciso grande conformidade ao "sistema", cobrar deles a tal 'postura' nada mais é do que um recurso retórico. Nesse ponto vale a provocação, até porque ele dá nome aos bois e vacas - mas reparem que pouco fala das "fazendas". Mas pior, ele realmente acredita e exemplifica bizarramente citando majoritariamente artistas gringos - é indisfarçável sua ambiguidade quanto ao país a cuja realidade ele precisa "respirar fundo" para voltar - que supostamente seriam o exemplo de engajamento político que ele gostaria de ver por aqui. O cara deveria pesquisar sobre a Beyoncé e sua fábrica de roupas exploradora de trabalho escravo... é um americanizado deslumbrado (oh, viva o país onde tempo é dinheiro$), que nem está vivendo no Brasil, ironicamente... hoje em dia dão colunas pra qualquer um mais ou menos articulado, mesmo que não seja bem informado. Eu já tinha lido uma ou outra coisa do Anderson e guardado incômodo quanto ao identitarismo deslumbrado de seus textos, e atualmente a grande mídia faz de tudo para incorporar essa postura ideológica à sua carteira de produtos, enquanto constata desesperada a fuga de anunciantes e multidões de leitores a galope no lombo da mula fascista a que ela própria deu capim. Aliás, tenho sérias dúvidas de que a coluna alcance alguém além da bolha (quem lê Folha hoje em dia?) de quem já está cansado de saber o que "pensam" os disseminadores de agrotoxicidade convertida em sinais audiovisuais. O mesmo vale para isto que escrevo neste castigado blog. 
Agora, para ser preciso mesmo, essa galera se posiciona sim, a favor disso que está aí, com diferentes graus de compromisso e contundência. Normalmente pela roupagem do marketing. Hoje diminuiu só porque não tem mais showmício. Senão estariam quase todos no palanque da reaçada. E aí é que está, um bom momento da crítica dele é a constatação de que o Brasil exposto nas redes sociais dos grandes do entretenimento não tem pobres. É certeiro acusá-los de defender tácita ou explicitamente os governantes que oprimem aqueles que são a fonte última de sua riqueza. Mas uma leitura atenta revela que há premissas equivocadas e que merecem ser descortinadas.
Eu até poderia ir linha a linha mas vou tentar ser sintético. Em seu raciocínio opera uma assepsia da nossa História social e cultural, aprendida com esmero nos manuais do identitarismo estadunidense. Desse modo ele separa sem nenhum esforço ou ponderação os ditos artistas de seu público e de suas origens sociais, e num passe de mágica e sem dialética alguma, essas pessoas estão totalmente excluídas da equação cultural da qual fazem parte. É essa fábrica incessante de guetos retóricos que permite ao autor acusá-las de parasitas das criações populares. Esse purismo é pueril ou canalha? Difícil saber. Uma das aplicações vergonhosas dessa versão deturpada do conceito de "lugar de fala" que anda por aí é que o dono da voz só o concede a quem lhe apetece. Ora, então um sertanejo de sei lá qual geração não pode ter tido pais ou avós que lidaram com a terra diuturnamente, e lhe ensinaram a cantar? Pra ele a herança não pode ser reivindicada? Adianto que estou provocando para demonstrar a incoerência mas não concordo com essa besteira de apropriação cultural, cultura é algo dinâmico e nômade, requerer propriedade dela, é, finalmente, um contrassenso.  Os funkeiros (curiosamente poupados salvo menção desviada de Anitta) não cresceram e fizeram seu nome nas favelas pra começar? Que diabo é isso de falar em público neo-branco (???) quando ao mesmo tempo se sabe que as maiorias no Brasil não são brancas, e que ele mesmo diz que esse pessoal é sustentado pela massa. Decida-se! Esse eugenismo narrativo mais confunde que explica, perde sempre de vista que não somos os Estados Unidos - engraçado como o sonho americano tem várias versões de acordo com o cliente, pois tem um cantinho de sereia cheio de vibrato para os "ativistas identitários" também. 
Há um nexo nada casual entre o modelo piramidal de ascensão propugnado seja na falácia meritocrática, seja no modelo de recompensa neopentecostal. O espetáculo de opulência dos selfmades (e self-makers) que converte afluência (não necessariamente concreta) em ostentação expressa totalmente esse modelo do “delírio brasileiro”, insustentável para a grande maioria mas hegemonicamente afirmado através de figuras como jogadores de futebol, astros de TV ou influenciadores digitais. E aqui a porca torce o rabo onde o identitarismo confunde o êxito dos eleitos dentro dessa lógica acomodada ao consumo e à exploração do trabalho tipicamente capitalistas com o ganho de um “lugar” e a demonstração de uma “resistência”.
O França, portanto, teve a vista nublada pela fumaça de gelo seco do palco do Jay-Z. Perdeu de vista que nessa ótica globalizada, o apagamento do pobre das contas dos bem sucedidos vindos de baixo é uma performance que diz muito sobre o Brasil que existe e é desigual. E finalmente de que o alvo final de um cutucada até boa nessa turma é essa lógica, ou não será - quase - nada.


2 de dezembro de 2019

Todos os malucos no mesmo galho

Quando a gente acha que já ouviu todo tipo de maluquice ser pronunciada por representantes do atual governo brasileiro, eis que o recém empossado presidente da Funarte, Dante Mantovani, revelou-se um contumaz distribuidor de asneiras e delírios através de um canal no You Tube [aqui a matéria da Folha sobre o assunto]. Não faz muito tempo, o ruminante da Virgínia, Orvalho de Cavalo [sic], andou espalhando o capim estragado que mastiga , afirmando que o filósofo (esse sim, ele não) Theodor Adorno teria escrito músicas dos Beatles. Mantovani tenta se igualar no besteirol, afirmando que
  
Não é que o Adorno tenha falado assim para os Beatles, ‘faça isso, faça aquilo, faça a liberação das drogas’. O teórico desenvolve a teoria e o agente vai lá e age”, diz. “Na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.

Ecoou imediatamente para mim a paranoia do macartismo nos EUA ou da Ditadura Militar made in Brazil. Lembrou-me ainda do achaque de fanáticos religiosos aos Beatles nos anos 1960, especialmente intensos depois de Lennon ter declarado marotamente que eles eram "mais famosos que Jesus". As besteiras de então, como as que um certo reverendo Nobel distribuiu no livro Communism, Hypnotism and The Beatles (1965) são o tipo de lixo eternamente reciclável.

Esse ataque, que em outras circunstâncias seria até divertido, é testemunho da degradação intelectual e de caráter que tomou conta do governo federal e se manifesta progressivamente em todas as suas instâncias. A censura, a truculência, o aparelhamento e o enviesamento de políticas de incentivo agora são a regra nos órgãos de cultura. Essa sabotagem sistemática reflete uma escalada reacionária que compreende o campo da Cultura na esfera do Estado como alvo de disputa ideológica, plataforma do conservadorismo político, balcão de negócios sem qualquer critério de bem público e, simultaneamente, jamais tratá-lo como espaço público e de direito. Converte-a em uma espécie de arma política apropriada ilegitimamente para fustigar adversários, introduzir diversionismo e promover revisionismos de toda ordem. Enfim, há método nesse disparate, e é a partir disso que precisamos combatê-lo.

3 de janeiro de 2019

Entre a terra e o céu, há Djavãos

A velha fórmula aplicada a Milton (um mistério que o Brasil entendeu) pode muito bem aplicar-se a Djavan, cantautor idiossincrático que consegue dar ao sofisticado a sensação de ser simples, ao estudado a sensação de ser intuitivo, ao enigma de suas letras a sensação de ser solução. Ele acaba de lançar um belo álbum, Vesúvio, que já recebeu boas resenhas [Mauro Ferreira] e deveria ser o foco da escuta e da conversa [entrevista]. Entretanto o assunto não é esse, mas um trecho de entrevista motivada pelo lançamento, no qual ele diz: “Eu estou muito esperançoso. Eu sou uma pessoa otimista. Eu tenho uma esperança de que o Brasil vai dar certo. Tudo o que acontece agora aponta para um futuro melhor. A gente não pode garantir, porque o governo ainda não está atuando, está apenas se formando, mas estou esperançoso” [para ver o vídeo, aqui]. A isto se seguiu um destemperado ataque virtual que não se restringiu à declaração, transformando em alvo sua pessoa e sua obra - a que ele respondeu. Como é difícil as pessoas entenderem das falhas daqueles em quem projetam, erroneamente, uma infalibilidade. Djavan se equivoca como todos nós podemos. E como Toquinho pode. E amanhã imagino que é razoável esperar que ambos, e tantos outros, se arrependam. Aliás, é das melhores coisas que podemos esperar pois os que caíram no engodo do fakeado poderão nos ajudar a refazer o que foi desfeito. É uma imaturidade. O amor, a admiração por uma obra, pelo artista, depende de entender sua humanidade.
Para piorar, aqueles que promovem qualquer tentativa de ponderação, nos quais me incluo, são também atacados em doses maiores ou menores de fúria santa daqueles que se outorgam o papel de policiais morais e ideológicos das redes sociais. Isto é bastante revelador de que o está morrendo é a capacidade crítica. As pessoas adotam um binarismo que, no final, será insuportável para elas mesmas. Falta ler um tiquinho. De repente só O alienista de Machado já as ajudaria a ver como o mundo é bem mais complicado do que elas querem achar. Querem atribuir aos que defendem distinguir e dar proporção entre uma opinião política criticável e a avaliação do que o artista criou por toda uma carreira a pecha de cumplicidade. Há uma aplicação muito equivocada dessa expressão "passar pano". Parece mais que se trata de um verdadeiro santo sudário. Ninguém está deixando de criticar, lamentar, discordar da fala de Djavan, que é péssima mesmo se contextualizada, uma vez que ele se contradiz ao se afirmar antibelicista e depositar expectativas no governo que começou. Isto está explícito. Isso, dito, ser um bom compositor não torna ninguém infalível. Qualquer ser humano se equivoca às vezes, e tomar uma entrevista como suficiente para anular uma obra inteira , uma vida inteira, é desmedido. Fazer crítica é ter medida, e não aplicar julgamentos que parecem partidos de divindades que supostamente estariam acima (!?) da falha que é própria da condição humana. Djavan, como todos nós, pode desentender inclusive de si mesmo. Na capa do disco, ele nos mira (e também se mira, pois ela seguramente é espelho diante dele) como esfinge, cuja música merece um ouvido que tente decifrá-la e devorá-la. Entre a terra e o céu, há Djavãos. Não devemos nos tornar surdos porque um deles fala o que não queremos ouvir. Ouçamos todos.



27 de setembro de 2017

A canção e o humor contra a violência

Entre os dias 2 e 4 de outubro próximo, na Escola de Arquitetura da UFMG, acontecerá o Colóquio Internacional O humor contra a violência na cidade. Juntamente com a colega Miriam Hermeto, do Departamento de História da UFMG, coordeno a sessão A canção e o humor contra a violência [todos os detalhes aqui]. 


Uma versão resumida da apresentação:
A canção popular se define basicamente na refinada coordenação entre música e letra, imbricadas a ponto de configurarem um ente único. Nas relações entre o formato-canção e o meio urbano, definem-se espaços de produção, circulação e consumo, estabelecendo as ligações entre seus artífices, os mediadores culturais e o público. Assim, a canção tem sido tratada como um híbrido: produto de mercado, obra de arte, expressão de representações sociais e elemento catalisador de sociabilidades. Sempre foi uma forma de pensar o social e seus conflitos, inclusive a violência, desenvolvendo uma tradição crítica marcada por recursos expressivos, como o humor, em suas diversas tonalidades: a farsa, a ironia, o sarcasmo, a sátira, o humor negro, a paródia, o nonsense, entre outros. Ressalta-se que o recurso da crítica, na linguagem cancional, emerge não apenas nas palavras, mas na relação entre texto e elementos sonoros, como melodias, ritmos, timbres, ruídos, harmonias, arranjos, citações, etc.


Procurando sair um pouco da rotina dos formatos tradicionais de eventos acadêmicos, decidimos montar uma sessão que partisse do princípio de que dedicaríamos um tempo maior para a audição e debate, após apresentações mais curtas dos 4 convidados:


As sonoridades do humor, com Guilherme Castro, Doutor em fundamentos teóricos aplicados à produção musical pela UNICAMP e Mestre em sonologia/música e tecnologia pela UFMG. Professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e da UEMG. Compositor, guitarrista, vocalista e produtor musical.

A canção como mediadora dos conflitos sociais, com Makely Ka, Poeta, cantor, violonista, produtor cultural e compositor.

À la lanterne: humor e violência na Paris sob a Revolução de 1789, com Allysson Lima, Mestre e graduado em História pela UFMG.

“Nós vamos invadir sua praia”: violência social e marginalização geográfica na cidade do Rio de Janeiro, com Bruno Vinícius de Morais, Doutorando, mestre e graduado em História pela UFMG.
Só pra dar o gostinho montei aqui uma lista com algumas das canções que iremos debater na sessão:









P.S. Síntese do evento:

Corri pra não perder o ônibus e chegar em tempo na Escola de Arquitetura para coordenar junto com Miriam Hermeto a sessão musical do colóquio O humor contra a violência na cidade, contando com uma escalação de prima na mesa com Guilherme Castro Allysson Lima Bruno Vinícius de Morais e Makely Ka, o prestimoso apoio da Maria Letícia Ticle e demais colegas da organização. Com a proposta de fugir, ainda que parcialmente, do lugar comum das mesas acadêmicas, promovendo a coloquialidade, passeamos por diversas épocas, contextos e gêneros, ouvimos de tudo um pouco, de marcha revolucionária francesa a rock brasileiro e samba de breque, falou-se de Mozart a Rincon Sapiência, cantou-se alguma coisa, de introdução de Bohemian Rhapsody a refrão de pagode. Que esse ecletismo não engane os desavisados. Análises argutas puseram a nu os conflitos sociais, as querelas estéticas, as disputas políticas, demonstrando como a canção tem enorme energia centrípeta, capturando em seus termos os embates e deles participando tantas vezes exercendo pelo humor formas de mediação que sugerem acomodações mas também alguma forma de violência, que pode ser do tipo que demole as convenções e os mitos, dessacraliza os grandes e dá voz aos silenciados. Esse humor que é um recurso indispensável para a vida democrática, hoje tão ameaçada.

1 de agosto de 2016

O primeiro grande show beneficente faz 45 anos - Concerto para Bangladesh

Há tempos penso em criar uma série compartilhando impressões e material sobre shows de música popular que marcaram época, e eventualmente os que eu mesmo assistir ou que seja resenhado por colunista convidado. Ainda não sei qual a forma definitiva, mas pensei em aproveitar a efeméride para começar pelo Concerto para Bangladesh, pioneira iniciativa de fazer um grande concerto de música popular para arrecadar fundos em apoio a uma causa humanitária. George Harrison inclusive compôs a canção de nome "Bangla Desh" para narrar como o apelo de seu amigo e mestre musical, o sitarista Ravi Shankar, lhe inspirou a realizar tal concerto, para o qual convidou grandes nomes da música popular anglófona, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russell, entre outros. Certamente a maior performance ao vivo de Harrison após o fim dos Beatles, realizada no momento de pico artístico em sua carreira, após o lançamento do álbum triplo All things must pass e o sucesso do single My Sweet Lord. 


Incorporei a playlist abaixo com muito material do show, infelizmente não há um vídeo único com o show na íntegra circulando livremente:


17 de fevereiro de 2016

Leite derramado

Já faz parte da rotina de quem atua no campo da cultura e acompanha de perto as políticas (e a falta delas), as leis de incentivo e as discussões geradas pela forma como funcionam topar de frente com notícias incômodas a respeito de financiamentos exorbitantes e questionáveis, destinados a artistas consagrados por público e / ou crítica. A bola da vez é a proposta biografia da cantora Cláudia Leitte, contemplada em 100% do projeto para captar R$ 355.927,00 para a publicação de uma tiragem de 2000 exemplares [notícia, aqui]. Para tecer algumas considerações, acabei acessando dados do projeto pelo SalicNet [acesse e busque por palavras-chave como livro cláudia leitte], sistema do ministério da cultura que apoia a operacionalização dos projetos que envolvem renúncia fiscal. 

Descobre-se ali que não se trata exatamente de uma biografia, mas "de um livro com entrevista exclusiva da cantora Claudia Leitte para a jornalista Jaqueline Gonzales que será compilado e editado pela jornalista. Além da entrevista exclusiva, o livro terá letras e partituras dos principais sucessos, além de fotos exclusivas de toda a carreira e a biografia da cantora, em português e inglês". 

O sistema enquadra-o no Art.18 parag. 3° "b) livros de valor artístico, literário ou humanístico", mas basta ler essa síntese para considerar que se trata, antes de mais nada, de uma peça publicitária com a pretensão de promover a cantora internacionalmente. Empreendimento a que ela poderia legitimamente se lançar por conta própria, levando-se em conta os cachês altos que cobra por show, ou com parceiros privados que certamente se interessariam em ajudá-la a vender tal peça editorial. Embora o relativismo desavisado que tanto convém a esse tipo de empreendedor possa ser evocado para absolver Cláudia Leitte e sua carreira de um julgamento de VALOR (pois é 'valor' o conceito explicitado no Art.18), são ostensivas e patéticas as piruetas retóricas necessárias para convencer alguém de que o projeto em questão atende esses critérios. Como os recursos são finitos e existe um mecanismo de seleção, para o qual inclusive supõe-se que o ministério seleciona avaliadores abalizados, é inevitável que sejam feitos juízos. Para acrescentar ainda mais contundência ao argumento, vejamos na totalidade o parágrafo:
 § 3o As doações e os patrocínios na produção cultural, a que se refere o § 1o, atenderão exclusivamente aos seguintes segmentos: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
a) artes cênicas; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
b) livros de valor artístico, literário ou humanístico; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
c) música erudita ou instrumental; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
d) exposições de artes visuais; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
e) doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para a manutenção desses acervos; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
f) produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; e (Incluída pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
g) preservação do patrimônio cultural material e imaterial. (Incluída pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
h) construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes. (Incluído pela Lei nº 11.646, de 2008)
Fica nítido que o espírito geral da lei é financiar expressões que a princípio não seriam viabilizadas por seu interesse mercadológico. E a lei, quando trata de música, considera financiável a música erudita ou instrumental. Não vou discutir aqui se é acertado ou não [poderei fazê-lo noutro momento] mas depreende-se que o foco é para estas manifestações. Mais um elemento que dificulta enxergar o valor artístico maior dessa entrevista exclusiva a ser publicada seguida de acompanhamentos. O ponto aqui não é dizer se Cláudia Leitte é uma artista - efetivamente ela é, independentemente da qualidade do que ela faz - mas sim se a referida proposta editorial tem "valor" nos termos da lei para ser aprovada em detrimento de outras. Efetivamente não é o caso, e para isso contribuí, o que digo sem qualquer intenção de constranger pessoalmente a cantora, que a biografia dela ou seus feitos como artista não alcançam uma dimensão cultural, histórica ou estética suficiente para justificar que o Estado permita que seja gasto dinheiro público com a tal impressão. Repare-se ainda que o projeto está autorizado a captar para renúncia fiscal 100% do valor aprovado - lembrando que o valor solicitado foi R$ 540.000,00. Vendo o valor, já em si exorbitante para uma tiragem pequena, acaba pairando sobre esse tipo de projeto uma sombra que obscurece a lógica da seleção pois parece que não vem ao caso o ajuste entre o montante solicitado e a natureza da proposta no que tange à sua aprovação. No máximo o que se faz são aqueles cortes "pré-fabricados", que aparentemente são como álibis plantados para que se justifique o ministério quando alguém questionar a discrepância: "mas nós até cortamos"... 
Vejo tudo isso e me assombro com a constatação de que enquanto um projeto desse deverá facilmente realizar a captação, o acervo de Edu Lobo sob a guarda do Instituto Tom Jobim não conseguiu fazê-lo e assim não pode ser digitalizado para que se torne acessível gratuitamente pela internet. Enfim, as leis de incentivo baseadas em renúncia fiscal promovem muitas distorções, e críticas bem mais densas do que essas que rapidamente arregimentei para avaliar um caso já foram feitas. Neste caso aqui já é leite derramado*. Esperamos providências há anos, mas trata-se, fundamentalmente, de um esquema que permite retorno certo na forma de publicidade que as empresas realizam com o dinheiro dos cidadãos e ainda lhes devolvem, via de regra, aquilo que o mercado já lhes propicia por sua própria conta, ou seja, a renúncia, do ponto de vista público (favor não confundir com massa, ou com público consumidor) - é o único ponto de vista que conta quando a finalidade e o dinheiro são públicos - não compensa. 

*P.S. "Não foi leite derramado"
Hoje saiu a notícia do arquivamento do projeto, a pedido do proponente. Sem dúvida efeito da enorme pressão feita através das críticas que circularam nas redes sociais, na qual esse blog modestamente deixou sua contribuição. No grosso, não faz muita diferença, mas essas pequenas escaramuças dão a medida de que ainda é possível fazer alguma frente aos desvirtuamentos e equívocos na aplicação dos recursos públicos, aqui no caso, na área da Cultura. Vale sim comemorar essa pequena vitória, mas continua a luta para que as políticas públicas sejam democráticas e efetivas, bem concebidas e aplicadas. 



9 de fevereiro de 2016

O Clube da Esquina no repertório de Simone

Quando escrevia minha tese de doutorado imaginei fazer uma extensa pesquisa cercando as gravações por diferentes intérpretes das canções de membros do Clube da Esquina. Doutorando adora inventar projetos que não são factíveis para criar obstáculos mil à conclusão da tese. É inevitável. Enfim, em algum momento o prazo falou mais alto e tive que transformar isso em uma investida bem mais limitada e possível, elegendo alguns intérpretes e álbuns com o intuito de demonstrar - creio que de forma bem sucedida - como o Clube da Esquina alcançou grande penetração no cenário da MPB na década de 1970. A pesquisa precisa desses ajustes, e neles acabamos muitas vezes compensando o fato de não termos voado tão alto quanto gostaríamos com alguns rasantes bem significativos. Mas fica sempre aquele gostinho de incompletude, com o qual todo pesquisador precisa aprender a conviver, e eventualmente guardar como combustível para uma futura arremetida. Eis que me deparei hoje com essa playlist disponibilizada pelo Gustavo Matavelli, colega frequentador de uma página sobre o Clube no facebook, elencando 17 canções do repertório da cantora Simone escritas por participantes da constelação de craques agremiada na imagem prosaica da esquina. Deu vontade de retomar algumas postagens e complementar alguma coisa por aqui.
Algumas observações iniciais que são interessantes para situar a constituição desse repertório. Primeiro é que Simone, ainda em início de carreira, foi imediatamente contratada pela EMI-Odeon, que era a gravadora que tinha sob contrato toda linha de frente do Clube, havia lançado o álbum duplo Clube da Esquina e eleito Milton Nascimento e seus amigos como núcleo duro de seu cast de prestígio, ou seja, aqueles artistas que se acreditava que representariam, mesmo que sem grandes vendagens de discos, o estofo para constituir o patrimônio de excelência musical dentro do mercado fonográfico. Simone contava com um produtor de extrema competência, conhecedor de repertório e compositor de mérito próprio, Hermínio Bello de Carvalho, para produzir seus 4 primeiros discos, sendo que no último, Gotas D'água (1975), ele dividiu a tarefa com ninguém menos que Milton Nascimento. Recupero um trecho da minha tese que já citei em postagem anterior sobre o Clube no repertório de intérpretes femininas [aqui].

O disco de Simone Gotas d’água (EMI, 1975) traz Milton como co-produtor, além de participar cantando e tocando piano em Gota D’água (Chico Buarque) e ceder duas canções feitas com Fernando Brant (Outubro e Idolatrada). Wagner Tiso, além de tocar piano e órgão em várias faixas, fez arranjos para 5 canções. A concepção da capa foi feita por Ronaldo Bastos e Cafi, o “fotógrafo oficial” do Clube. No repertório, compositores que começavam a conquistar espaço, como a dupla João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaga Jr. (que ainda não assinava Gonzaguinha) e uma parceria de Tavinho Moura e Murilo Antunes. Na parte instrumental, a presença dos integrantes do Som Imaginário, na formação que contava com Nivaldo Ornelas, Novelli, Paulo Braga, Toninho Horta e o já citado Wagner Tiso. (GARCIA, 2007, 230-231)


Essa proximidade toda se reflete não apenas na escolha de repertório, mas na arregimentação de músicos (Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes, Nelson Angelo, Nivaldo Ornellas, entre outros, figuram em várias faixas), concepção de arranjos, etc. Vejamos por exemplo a ficha técnica da antológica gravação de Gota D'água (Chico Buarque):
  • Wagner Tiso (Órgão e Piano)
  • Novelli (Baixo Elétrico)
  • Toninho Horta (Guitarra)
  • Paulinho (Bateria)
  • Chico Batera (Efeitos de Percussão)
  • Nivaldo Ornellas (Flauta)
  • Milton Nascimento (Voz/Piano)
  • Arranjo: Wagner Tiso

Escolhi propositadamente uma canção que não foi composta por membro do Clube, mas cuja assinatura ficaria evidente. É relevante assinalar que esse momento de forte aproximação entre Chico e Milton, então dos dois mais populares artistas da MPB, foi acompanhado de perto por Simone, que inclusive gravou a 1a. parceria deles, Primeiro de Maio [mais detalhes nesta postagem do blog]. Esse laço se reforça no LP Face a face, como é possível notar analisando o repertório completo: apenas 3 das canções não são ou de Chico ou de alguém do Clube. E mais, é como uma pequena prévia de Clube da Esquina 2, com o qual compartilha 4 canções.


1. "Face a Face" (Sueli Costa / Cacaso)
2. "Primeiro de Maio" (Milton Nascimento / Chico Buarque)
3. "Reis e Rainhas do Maracatu" (Milton Nascimento / Novelli / Nelson Angelo / Fran)
4. "O Que Será" (Chico Buarque)
5. "Céu de Brasília" (Toninho Horta / Fernando Brant)
6. "Paixão e Fé" (Tavinho Moura / Fernando Brant)
7. "Jura Secreta" (Sueli Costa / Abel Silva)
8. "Valsa Rancho" (Chico Buarque / Francis Hime)
9. "Canoa, Canoa" (Nelson Angelo / Fernando Brant)
10. "Começaria Tudo Outra Vez" (Gonzaguinha)

Justamente em meados da década de 1970, a MPB passou a atingir um público mais amplo, especialmente a partir da consolidação do 'circuito universitário', forma de criação e consolidação de público extremamente importante no momento político em que vivia o país. Nos repertórios desses primeiros discos de Simone vemos também a constante presença de compositores que emergiram nesse contexto, como a dupla João Bosco/Aldir Blanc, Ivan Lins e Gonzaguinha. Aqui não cabe agora mas acredito ser razoável intuir que seus discos seguiam em boa medida o que seria a 'receita de bolo' estabelecida por Elis Regina, obviamente com variações e evidentemente sem a mesma força para lançar e alçar novos compositores.  O peso do Clube em seu trabalho, especialmente visível nesse período entre meados de 1970 e meados dos 1980 é sensível, mesmo depois de ter mudado de gravadora. Note-se que a faixa seu disco Cigarra (1978) é a canção homônima de Milton e Ronaldo Bastos, certamente escrita para ela. Nesse rol podemos colocar também Mulher da vida e Amor e paixão (ambas de M.Nascimento e F. Brant). Outro detalhe é o fato dela ter acesso e gravar em primeira mão algumas canções. Canoa, canoa (Nelson Angelo e Fernando Brant) ela gravou no disco Face a face em 1977, antes da gravação de Milton para o Clube da Esquina 2, e no mesmo disco fez a primeira gravação de Céu de Brasília (Toninho Horta e Fernando Brant). Não gravava apenas canções já conhecidas e/ou reconhecidas, como Outubro ou O sal da terra, mas também escolhas mais difíceis, como Coisas de balada (N. Angelo e F. Brant), O trem tá feio (Tavinho Moura e Murilo Antunes) ou Nenhum mistério (Lô Borges, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes). 
 Observando esse repertório, gostaria de notar ainda que a atribuição do rótulo de "cantora romântica" a Simone perde de vista o conjunto dos registros desse período de sua carreira, embora possa ter sido guiada por uma leitura de seus maiores sucessos. Mesmo não sendo o foco da  postagem, é relevante perceber a carga política e artística das escolhas de repertório e das performances de uma cantora que fazia parte do primeiro time de intérpretes da MPB na passagem daquela década. Canções como Itamarandiba, Primeiro de Maio, Povo da Raça Brasil, Outubro, entre várias da obra do Clube que gravou, comprovam isso. Sem querer me alongar, é perfeitamente identificável o engajamento dela na questão da redemocratização, se ainda faltar evidência, pelo impacto de ter sido a primeira a cantar Pra não dizer que não falei das flores (Vandré) após a censura liberá-la em 1979, e ter feito dela o registro mais emblemático excluindo-se o do próprio autor. Até hoje em manifestações de rua costuma-se ouvir a reprodução da gravação de Simone desse hino político e popular. 
Esse exercício, que ainda comportaria mais algum detalhamento, cumpre o objetivo a que se propôs mas também lança pequenos insights sobre o peso do repertório dentro da obra de uma intérprete, a forma como certos rótulos estabelecidos obscurecem nuances de uma determinada carreira e a importância de uma pesquisa para revisar perspectivas e abalar verdades estabelecidas.

A playlist: