Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

10 de dezembro de 2014

Bolacha Completa - Áfrico (2002)

Não poderia ser mais oportuna a ocasião para incluir este na série Bolacha Completa. Enquanto refletimos sobre os rumos da canção,  fica cada vez mais evidente a sua pujança, a sua capacidade de metamorfosear-se à medida que novos desafios impostos pelos contextos mutantes em que se dão sua criação e escuta. O que me impressiona é a capacidade dos compositores de encontrar soluções diversas e instigantes para a equação tradição x inovação, em que não haja dogmatismo, mas também não se recaia em total descompromisso. Hoje caminhei por um parque um tanto inusitado aqui de Belo Horizonte, o Julien Rien (quem quiser saber mais, aqui), basicamente feito de escadarias articulando pequenos recantos e pracinhas, toques de cimento no meio do arvoredo. São ramificações, sejam as das árvores, sejam as das escadarias, que me sugerem essa imagem combinando cultura e natureza. Num Brasil sempre às voltas com a grandiosidade de suas perdas e seus ganhos, a música popular se espalha qual floresta mesmo em tempos de seca e desmatamento. 

Vamos ao disco propriamente, que é a razão de ser da postagem, e para tanto aproveito como de costume as sintéticas e apuradas resenhas de meu parceiro Pablo Castro:
Ouvindo de novo as faixas do disco Áfrico, de Sergio Santos Perfil Lotado, lançado em 2002, que tinha escutado na época. Esse disco é um feito extraordinário, pela maneira como funde um apuro instrumental fantástico, vestindo canções de um arrojo rítmico que seria o desdobramento em últimas consequências das pulsões afro-brasileiras do Djavan, do Gil e do João Bosco, divisões melódicas incríveis, e letras de Paulo César Pinheiro, destilando o léxico índio-africano que se impregnou na língua brasileira.
Preciso estudar de novo sua obra , que é um elo importante de um tronco da MPB mais ligada na estilização desses ritmos, mas que no aspecto harmônico e formal também não é nada trivial.
Até porque terei o prazer de bater um papo com ele sobre sua música, na próxima sexta, dentro da programação da Mostra Cantautores.
Do site oficial Sérgio Santos vou citar a ficha técnica do disco [também é possível ouvir algumas faixas, acompanhadas das letras, além de comprar], indispensável para visualizarmos na escalação de tantos craques uma espécie de preâmbulo a todo refinamento que logo irá adentrar nossos ouvidos. 

FICHA TÉCNICA
Produzido por Rodolfo Stroeter
Violão, voz e arranjos: Sérgio Santos
Baixo acústico e elétrico: Rodolfo Stroeter
Bateria: Tutty Moreno
Piano: André Mehmari
Saxofones e Flautas: Teco Cardoso
Saxofone alto, Clarinete e arranjo em Áfrico: Nailor Proveta
Percussão: Marcos Suzano e Robertinho Silva
Vocais: Martinália, Ana Costa e Analimar

Participações Especiais
Grupo Uakti: Artur Andrés, Paulo Sérgio Santos, Décio Ramos, Josefina Cerqueira e Marco Antônio Guimarães, em Galanga Chico-Rei e Quilombola
Joyce, em Quilombola
Lenine, em Nossa Cor
Olivia Hime, em Vem Ver

Gravado e mixado no Estúdio Sarapuí (Biscoito Fino), por Gabriel Pinheiro, em setembro / outubro de 2001. Grupo Uakti gravado nos Estudio Bemol (Belo Horizonte), por Dirceu Cheib. Masterizado na Visom Digital, por Luiz Tornaghi.
Segue a minha faixa preferida e também é possível ouvi-lo aqui.

8 de dezembro de 2014

As derramadas lágrimas de Guinga

A noite de hoje está guardada e há de ser glosada nos compêndios da música popular brasileira. Histórias serão contadas sobre os antológicos shows de Zé Miguel Wisnik e Guinga na Mostra Cantautores, digna e pertinentemente coadjuvados por Rafael Martini e Pedro Carneiro, respectivamente. Eu mesmo pretendo ter várias pra contar. Mas até lá hão de surgir instantâneos oportunos e singelos, argutos e espontâneos. Sinto uma profunda necessidade de compartilhar com os leitores do blog este escrito pelo meu parceiro Pablo Castro :

 
Embebido da experiência intensa e profunda de ter podido estar nessa noite de gala, na estreia da quarta edição da Mostra Cantautores [confira site com programação completa] , em que se apresentaram dois luminares da canção brasileira, dois mestres absolutos , da mesma geração, e em certa medida opostos, em certa medida complementares, José Miguel Wisnik com sua dissecação graciosa da canção e das canções, as suas, loas afiadas como pérolas aos poucos, e as nossas, aquelas entranhadas no inconsciente coletivo do que somos;
Guinga, com seu charme carioca, a um mesmo tempo humilde e malicioso, contando anedotas e destilando outras obras primas absolutas, ora com Aldir, ora com Paulo César Pinheiro. O encontro das duas personalidades fundamentais do desenvolvimento dessa arte nas últimas décadas, talvez ainda mais que os baluartes esplêndidos da década de 1960, se dá num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, ou talvez no ponto exato do centro da Via Dutra, tão representativos são dos ethos paulista e carioca da canção nacional ... e se inscrevem na nossa memória.
A apresentação do arrojado e magnífico Rafael Martini, articulando com primor uma música expandida para além da letra, e para dentro dela, conjugada com a abertura de Pedro Carneiro, um cronista que casa Guinga com Rumo, ilustram, sem esforços, o nível das aventuras que a canção brasileira ainda reserva para os que se dignam a cultivá-la, a ouvi-la, e a guardá-la dentro de si, refutando miseravelmente a tese do fim da canção.
A canção popular é a verdadeira epopéia da cultura tupiniquim, e quem não faz idéia de por onde ela passa, está perdendo uma das melhores sensações de pertencer a esse lugar chamado Brasil.
Que essa noite tenha sido um dia 8 de dezembro me parece muito significativo, em que pese a influência de John e a onipresença luminosa de Tom.


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Guinga derramou sua canção e derramou lágrimas, fez chorar de chorar e chorar de rir. Para dar um gostinho de sal e doce do que foi a noite: essa história da bigamia, canção necessária, desnecessária, etc., foi um dos pontos altos da noite. Acabei de ver a Salmaso contanto a história também, noutro dia, noutro lugar. 


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Mais cedo, pensando no show de Guinga na Mostra Cantautores, encontrei essa maravilha de texto do Túlio Villaça [Guinga e a última canção do beco aqui]. E outro dia assisti um pedaço (tá difícil ver coisas inteiras) do show O fim da canção (Wisnik + Nestroviski + Tatit) que também me botou pra pensar nessas coisas. Há de merecer mais reflexão. Não consigo deixar de pensar que sair do beco implica refazer rotas também, não com pés nostálgicos, mas por ser possível retomar caminhos que eventualmente não foram percorridos até o fim. Se ali na frente houver outro beco, que haja. Do que for decantado no caminho, ficará o encanto. Sim, temos uma cena pujante. Como diz o Pablo, Eldorado subterrâneo da canção. A cobertura da imprensa tem que crescer, ampliar, multiplicar. De pouco adianta divulgar o evento e depois esquecer de novo desse manancial que flui forte já há tempos. É preciso construir público, abrir espaço nas rádios, nas tvs, nos palcos. E é louvável, mais que louvável, o trabalho da moçada que toca desde sempre a preciosa mostra Cantautores! Longa vida!

7 de dezembro de 2014

Bolacha completa - Terra dos Pássaros (1980)

Bolacha completa - Toninho Horta & Orquestra Fantasma - Terra dos Pássaros (1980)

Um disco antológico por "n" motivos, Terra dos Pássaros merece figurar nas estantes de todos os interessados em música brasileira. Primeiro LP assinado individualmente por Toninho Horta, traz ainda o distintivo traço de ter sido produzido de forma independente durante 3 anos, a partir de sobras de horas de estúdio e tapes não utilizados por Milton Nascimento. O repertório forte reflete o acúmulo de canções - das quais podemos destacar Céu de Brasília, Dona Olímpia, Falso Inglês e Beijo Partido - e também a força das parcerias com autores como Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Cacaso. O título do disco, além de expressivo, sintetiza perfeitamente a concepção geral do LP, um extravaso de melodias voadoras e arranjos aéreos executados com auxílio de uma muito bem nomeada "orquestra fantasma", os acordes orquestrais cheios de cordas abertas, como andorinhas migrando em bando. Descobri, enquanto escrevia essa postagem, o ótimo artigo assinado por Thaís Lima Nicodemo e Rafael dos Santos, recém publicado na Per Musi no.30 Belo Horizonte jul./dez. 2014 [completo, aqui], para mim um ótimo exemplar do que pode ser uma boa pesquisa acadêmica em música popular. Traz inclusive relevantes elementos documentais, como trechos de entrevistas e a transcrição do encarte do LP, que reproduzo abaixo:

Este disco conseguiu povoar meus pensamentos nestes últimos três anos e sobreviver a todo tipo de alegrias e dificuldades, mas a variedade de condições de trabalho não impediu o desejo de realizar um disco como sempre idealizei. Com muita liberdade, ele se desenvolveu paralelo à minha maturidade como ser humano. As canções cantadas no final de uma juventude podem hoje representar apenas o registro de um sonho que custou a se realizar: a voz em Diana era só de guia e ficou definitiva com o passar do tempo. Não havia razão para tentar cantar outra vez, anos depois, mesmo que viesse melhorar a qualidade técnica, a dicção e o volume de som. Toda a emoção do início do disco, o Bituca [Milton Nascimento] dando as fitas pra gente, a porta sempre aberta, o mar através dos janelões do estúdio, cachorros entrando e saindo, todo esse clima estava na voz de Diana. Eu comecei despretensiosamente a gravar uma fita onde tocava e cantava minhas músicas, sem pensar que seria o princípio de uma aventura. Os amigos apareciam para visitar e acabavam gravando, as ideias iam fluindo e a gente estava partindo naturalmente para fazer um disco com produção própria sem cogitar as dificuldades que viriam pela frente. [grifos nossos] 

Escolhi citar alguns trechos que complementam bem o que estou querendo dizer:


Embora tenha se aprimorado tecnicamente ao longo dos anos que ultrapassam as demarcações desse trabalho, notamos que desde seu primeiro disco autoral, Toninho Horta possui uma concepção integrada de composição, podendo-se considerar a pluralidade uma das principais marcas distintivas de seu processo criativo. Suas composições possuem harmonias elaboradas, longas introduções instrumentais e interlúdios, e são permeadas por improvisos e contracantos, que dialogam, também, com os arranjos de base e orquestrais e com o conteúdo poético das letras. Essa particularidade é bastante aparente no álbum Terra dos Pássaros pelo fato de Horta ter participado de todas as etapas de criação, tocando diversos instrumentos, elaborando os arranjos de base e orquestrais e cantando. 

Tanto a integração da canção com o arranjo, como a alta densidade sonora, proporcionada pela soma de timbres diversos, que demarcam a produção do Clube da Esquina, distinguem a concepção composicional de Toninho Horta. Outro aspecto relevante de seu pensamento musical é a forte ligação com a canção, embora tenha adquirido grande reconhecimento de público e mídia por seus atributos de instrumentista. Horta dedicou-se à música instrumental em discos lançados durante o período em que viveu nos Estados Unidos, entre o final da década de 1980 e o final dos anos 1990, no entanto, a canção predomina como opção estética em seus discos autorais. Esse aspecto pode estar relacionado com sua maneira de compor. Conforme sua própria descrição, toca os acordes e o acompanhamento rítmico ao violão, enquanto canta as melodias em vocalize:

Nunca desenvolvi o lado de violão solo, sempre preferi utilizar a voz. Para compor eu canto as melodias junto com os acordes, então acabei virando cantor. Acho que isso virou uma marca do meu trabalho, esses vocalizes que faço. (HORTA, Toninho. In: GOMES & CARRILHO, 2007, p.25)

Sobre a produção do disco, propriamente, destaco:


No caso de Toninho Horta, o processo de elaboração de seu primeiro disco autoral teve início com sua participação como instrumentista nos álbuns Milton (Milton NASCIMENTO, 1976) e Promises of the Sun (Airto MOREIRA, 1976), nos Estados Unidos. As gravações do álbum Milton terminaram antes do tempo previsto, com horas de estúdio e fitas de gravação já pagas a serem utilizadas. Milton Nascimento cedeu o material remanescente a Toninho Horta, que começou a registrar suas canções. O letrista Ronaldo Bastos, produtor do disco de Milton Nascimento, associou-se a Horta na idealização e na produção de seu disco. Os mesmos músicos que tocaram no álbum Milton, como Raul de Souza (trombone), Robertinho Silva (bateira/ percussão), Airto Moreira (bateria/ percussão), Laudir de Oliveira (percussão), Novelli (contrabaixo) e Hugo Fattoruso (piano/ órgão/ sintetizadores), gravaram as bases de Terra dos Pássaros. Além dos músicos citados, Milton Nascimento cantou em duas faixas. Com essa ajuda inicial, Toninho Horta registrou as bases das canções e, junto com Ronaldo Bastos, retornou ao Brasil para apresentar o projeto a algumas gravadoras, que recusaram a proposta, devido à imprevisibilidade lucrativa da produção. Mesmo assim, decidiu dar continuidade à gravação de forma independente, entre julho de 1976 e setembro de 1979, destinando, paulatinamente, seus recursos financeiros para a realização do disco e acrescentando, aos poucos, instrumentos e detalhes às músicas. (...)  Ainda que tenha realizado seu disco de forma independente, após ter finalizado as gravações de Terra dos Pássaros, Horta conseguiu um acordo com a gravadora EMI-Odeon, que propôs a gravação de um novo álbum, comprometendo-se a prensar, distribuir e licenciar seu disco inaugural.(...) Assim, pode-se falar em um quadro de complementaridade que passou a existir entre a produção independente e as grandes gravadoras (DIAS, 2000, p.129)

Separei ainda o link para o depoimento de Toninho ao Museu Clube da Esquina [completo, aqui]. Um trechinho em que ele comenta duas canções do disco: “Diana”/ “Céu de Brasília”
A Diana era uma cachorra. Às vezes falo nos shows: “Vou tocar uma música chamada ‘Diana’, minha e de Fernando Brant. Se tiver alguma Diana na platéia, me desculpe, mas a música foi feita pra uma cachorrinha”. Com “Céu de Brasília” eu falei: “Tenho uma música que eu quero que chame ‘Céu de Brasília’”. Mas ele nunca tinha ido a Brasília. E fez uma letra que parecia que ele vivia em Brasília. Enfim. Vale dar grandes mordidas nessa bolacha.


1 de dezembro de 2014

Na lata, Tom Zé!

Vira Lata na Via Láctea, novo disco de Tom Zé, é uma verdadeira sonda mambembe lançada às profundezas da galáxia canção.Se tem um filme com esse nome passando no cinema, é usurpado, é equivocado, é desviado, pois o único disco voador que merece o título é esse: interestelar. E assim, brincando entre as palavras e as estrelas, Tom Zé capta com antenas atentas o que nos atenta a todos.Obras-primas instantâneas como Pour Elis - encontro com o ET de Três Pontas - provam que a canção não morrerá nem mesmo se o planeta Terra morrer, porque ela já foi, há muito tempo, pro espaço.



Entrevista de Tom Zé sobre o disco, aqui

Texto de apresentação do próprio:
Desde 76 os discos que faço têm sido cozinhados numa só panela e por um só assunto-tema. Agora, lembrando a arquitetura das igrejas românicas do século XI, este cd se apresenta com Capelas Irradiantes, construídas em torno de uma edificação central, cada uma abrigando uma parte do culto – aqui cantado e profano. As Capelas Irradiantes (nome que a gente repete com prazer) foram construídas em estilo e arquitetura muito variados e nós, neste disco, embora recorrendo apenas a texturas sonoras, também atacamos o tédio com bárbara ojeriza*. Não foi um plano. Diante da arrancada que a direção artística de Marcus Preto engatou, a forma irradiante se impôs com a presença de estilos apartados como os de Milton Nascimento, Criolo, Tim Bernardes, Trupe Chá de Boldo e Caetano Veloso (a primeira parceria que fazemos e - cantamos juntos). Elis Regina inspirou a presença de Milton: eu transformara em canção um texto escrito por Fernando Faro, como introdução de um vídeo, no primeiro aniversário da morte dela. Marcelo Segreto e sua Filarmônica de Pasárgada, Tim Bernardes (O Terno) e a Trupe Chá de Boldo, ao lado de Tatá Aeroplano e Gustavo Galo, trouxeram para o disco a Geração Y, esta já no ensaio geral do que Santaella chama de pós-humano. Nessa puxada, podemos chamar a vestimenta feita por Kiko Dinucci – arranjos secos e descarnados – para Retrato na Praça da Sé e o samba-editorialista Banca de jornal – uma pós-partitura-em-crise. O disco foi gravado por essas diversas bandas e cantores, mas vou lançá-lo e arrodear o planeta com o meu próprio conjunto: Daniel Maia, produtor, técnico, alguns arranjos, guitarra, violão e baixo; Cristina Carneiro, teclado e vocal; Jarbas Mariz, viola de 12, cavaco, percussão e vocal; Felipe Alves, contrabaixo, violão, cavaco e vocal; e na bateria, o calouro da banda, Rogério Bastos, também tratado por Rogério Duprato. TOM ZÉ


[N.E.] compartilho também o texto do colega pesquisador e blogueiro Leonardo Davino, que em seu Lendo Canção tratou do disco e em especial da faixa "Banca de Jornal" [aqui]

30 de novembro de 2014

Recuso + aceito, tropicalíssima ambiguidade

Enquanto preparo minhas considerações para uma banca sobre o tropicalismo de Caetano e o cinema de Glauber amanhã na Escola de Música da UFMG, me deparo com esse texto de Gil no Pasquim que não conhecia. Agora me chama atenção pelo embate que assume com o MIS ao recusar o prêmio Golfinho de Ouro. Se tiver tempo farei um post maior no Massa Crítica. Por agora, fica a curiosidade. Olha um trecho : "O que meu pai precisa saber é que o museu sempre esteve contra o meu gorjeio, que sempre achou desnaturado, desarmonioso, inautêntico e incômodo; sempre esteve contra tudo que na música, no disco e na TV, tenha tido um sentido de abertura compatível com a liberdade criativa de um povo novo e fogoso como o brasileiro. Pelo que sei as aristocráticas e puritanas prateleiras do museu não guardaram até hoje um só programa do Chacrinha, o mais lindo que alguém jamais pôde encontrar em qualquer televisão do mundo". Texto completo, aqui


 

4 de novembro de 2014

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 2a. parte

Retomando agora, após permanecer em estado de hibernação e enfrentar uma longa seca, a nova lista de mais 30 canções geniais do Clube da Esquina retorna em grande estilo, para embalar, com as costumeiras análises minuciosas de meu grande parceiro e amigo Pablo Castro. Sem mais delongas!
6. Aqui, oh!
Agora, de Toninho Horta e Fernando Brant, samba acelerado e molhado de tempero harmônico que só Toninho sabe fazer :
A ironia dissimulada da letra de Aqui, oh! pode levar o ouvinte a se enganar, julgando ser um samba mineiro exaltação ; trata-se, na verdade, de uma crítica sagaz a Minas Gerais, onde “alegria é guardada em cofres, catedrais “ , “ tem benção de Deus todo aquele que trabalha no escritório”, onde “um caminhão leve quem ficou por vinte anos ou mais” ... os desníveis e o sentido profundamente vertical das montanhas são traduzidos pela austeridade, a severidade do julgamento, o rigor da moral cristã, a condenação ao “trabalho sério”, a vida dignificada na penitência da avareza , no recolhimento e na apropriação sacramental da riqueza, e a humilhação de ter que ir a pé até o “pai”, figura suprema da encarnação da autoridade e dos deveres de um homem de bem. Até mesmo a redenção do amor encontrado na varanda, que representaria um escape desse universo rígido e opressor, em modulação na harmonia, é subitamente enquadrada na mesma equação em que tudo o mais é posto, como mais um dos frutos benditos concedidos pelo senhor ao homem honrado que cumpre suas obrigações. ( Em “Ele Falava Nisso Todo Dia”, de Gil, o protagonista da narrativa tem um destino tragicômico , em decorrência da busca incessante da segurança financeira ...) O eu lírico dessa canção se compraz com a ironia de sua mirada a Minas, sem cair no amaldiçoamento de Crônica da Casa Assassinada , do romancista Lúcio Cardoso, para quem Minas , segundo suas palavras, deveria ser simbolicamente destruída, por ser fonte de repressão atávica, mas também longe de uma louvação ufanista banal ; Minas aparece aqui como espelho de sinais ambíguos e invertidos da vida que se preconiza e aquela que, de fato, se vive, ainda que a pé e sem um tostão.
Toda essa ambigüidade e profusão de sentidos é expressa pelas harmonias altamente temperadas de Toninho Horta, embora encadeadas em firme quadratura , num tom de Mi Maior ; a forma já menos clássica, com uma parte A de 20 compassos , desembocando em uma breve parte B , modulada para Fá Sustenido, “na varanda eu vejo o meu amor”, em seis compassos, seguida por uma espécie de estribilho : “bendito é o fruto dessas Minas Gerais” .
Interessante notar como o movimento pendular dos dois primeiros acordes da música, E7M(9) e C7M(13)(9), depois dá lugar a um tempo mais longo de E7M , seguido por um Lá alterado , A7(9)(#11)(13) , depois do que o ritmo harmônico se acelera . O percurso harmônico insinua uma modulação não-confirmada para Sol Maior, com Am7(9) e D7(13) , quando o que vem é a cascata de dominantes, G#7(13), G#7(b13), C#7(11)(9) , C#7(b9)(#11) , e voltando ao tom por meio da sequência F#m(7)(9) ( Segundo grau do campo harmônico de Mi Maior) , G#m7(9) ( Terceiro grau alterado, pela nona justa, do mesmo campo harmônico) , Am7(9) (Quarto grau menor) e B7(11)(b9) (Quinto grau dominante do homônimo Mi Menor) . e voltamos, brevemente ao tom de Mi, para mais uma volta ao dominante do dominante do dominante (C#7(b9) ) e enfatizamos mais tempo o Dominante do Dominante, F#7(9)(13). Esse acorde tem um sentido irônico, quase jocoso, o que enfatiza a mensagem provocativa da letra. E ele é repetido como um amuleto modal para os vários compassos de improviso que costumam preencher essa canção, transformada por muitas vezes em tema para improvisação.
A primeira versão dessa canção saiu no disco da igrejinha, o Milton Nascimento de 1969, com o próprio Toninho no violão e no contracanto; de fato, essa era a primeira composição dele a ser gravada por Bituca, de uma série de pérolas, e também traz a assinatura do então jovem Fernando Brant. Mais tarde, em 1983, Toninho lançaria uma versão de Aqui, oh! no seu segundo disco, já com uma instrumentação mais recheada e virtuosística a provar o desafio de improvisar sobre tão elaborada harmonia. De todos os membros do Clube, o único a fazer frequentemente sambas foi o Toninho, mas sambas tão molhados de sua concepção harmônica, que passaram despercebidos aos guetos tradicionais do gênero.

Aqui , Oh! ( Toninho Horta e Fernando Brant)

Oh Minas Gerais
Um caminhão leva quem ficou
Ou vinte anos, ou mais
Eu iria a pé
Oh, meu amor
Eu iria até meu pai
Sem um tostão
Em Minas Gerais a alegria é
Guardada em cofres, catedrais
Na varanda eu vejo o meu amor
Tem bênção de Deus
Todo aquele que trabalha no escritório
Bendito é o fruto (x3)
dessas Minas Gerais
(Minas Gerais...)




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7. Nascente ( Flávio Venturini – Murilo Antunes )
Balada suprema de Flávio Venturini e Murilo Antunes, já eternizada em dezenas de releituras, Nascente lhes valeu o convite para o ingresso no restrito grupo de compositores gravados por Milton Nascimento, na década de 70, quando, depois da estréia em gravação do primeiro disco de Beto Guedes, A Página do Relâmpago Elétrico, de 77, ela foi regravada no Clube da Esquina II , no ano seguinte, com participação vocal do próprio Flávio , e arranjo do grande Francis Hime.
Mas a versão que tenho como base é mesmo a primeira, de Beto, em que este canta seu falsete metálico e executa a bateria, o compositor Flávio no órgão, Novelli ao piano, Nelson Ângelo ao violão e Toninho Horta no baixo e na orquestração. A introdução se vale de ataques repentinos e suspense que vai sendo cautelosamente criado pela alternância de piano, violão, órgão e os pratos do cantor. Essa introdução, que depois volta sob a função de interlúdio instrumental, é essencial para o efeito que a melodia vocal causa ao entrar a voz : atacando, depois de um salto, dramaticamente a quarta justa da escala do tom recém-descoberto Sol Maior, o começo da melodia é já uma espécie de apogeu antecipado, de uma força incomum para a primeira frase vocal.
A letra, de um erotismo a um mesmo tempo incandescente e contido, vagueia entre metáforas visuais, quando a “estrela” aponta a nota mais aguda e alta da tessitura melódica, e surpreende pelo cume de seu salto ; nada é devidamente desentranhado desse rol de imagens que seja mais prosaico ; ao contrário, o sentimento da canção jorra muito além do que qualquer racionalização pudesse explicar. E Nascente é uma das baladas com maior carga de emoção que pode acometer um cantor : as poucas e sintéticas frases da música tem em cada nota uma densidade emotiva fora do comum.
A forma também é engenhosa, embora também firmemente ancorada em quadraturas. A introdução nos leva a um passeio de Mi Menor até a clarificação de Sol Maior, seu relativo, em 8 lentos compassos , cada um nos respectivos acordes : Em7 / F#m7 / F7M / F#m7 / D7M/F# / F7M(9) / Em7(9) / Eb6(b5) / D7(4)(9) . Então, a voz entra “clareando” , em appogiatura da quarta para a terça maior, em duas notas longas , de meio compasso cada. Segue-se uma inclinação para o relativo Mi Menor, a partir do qual o ritmo harmônico dobra e mais uma vez se inclina para o mesmo Mi Menor. Dessa vez, a descendente do baixo nos leva a C7M( quarto grau), alternando com C#m7(b5), e proporcionando uma ambigüidade clássica entre um tom maior e seu relativo menor, no caso, Sol Maior e Mi Menor. Logo em seguida, temos a repetição do desenvolvimento da parte A, a partir do momento em que aparece o Mi Menor. Trata-se de um efeito formal sutil , distintivo, e nada vulgar, de fazer o giro na canção sem voltar sempre no mesmo começo do ciclo.
Nascente carrega em si , dessa forma, os méritos de seu grande sucesso, e aponta , de certa forma, a direção de seu compositor : baladas românticas tomadas de grandes metáforas visuais e jorros de emoção melódica e alguma ambigüidade harmônica. Tanto é assim que Flávio Venturini, assim que saiu do 14 Bis, lançou um disco tendo ela como canção-título, inaugurando uma bem sucedida carreira muito pautada já por essa canção. "

Nascente ( Flávio Venturini - Murilo Antunes )

Clareia manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente, pérola do céu refletindo teus olhos
A luz do dia a contemplar teu corpo
Sedento, louco de prazer e desejos
Ardentes




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8. Bodas ( Milton Nascimento e Ruy Guerra)
O cineasta, poeta , dramaturgo e letrista Ruy Guerra era parceiro de Milton Nascimento, antes e depois de escrever a peça censurada Calabar*, ao lado de Chico Buarque e assina algumas das letras mais violentas** contra a ditadura militar que figuram no cancioneiro do Clube da Esquina. Destacam-se Canto Latino, E Daí, e Bodas.
O sax-tenor Paulo Moura imita as trombetas do inferno que foi a invasão das Américas pelos europeus, e um ataque imperial de Robertinho Silva em seus tambores é transmutado em momento mágico pelo phaser da guitarra de Toninho Horta, enquanto Bituca anuncia : Chegou num porto um canhão, dentro de uma canhoneira , neira, neira, neira , neira ...
O eco das terminações de tais ícones da tecnologia bélica, os índices da riqueza e da violência, da rainha ao capitão, a pólvora e a taça de prata, todos esses objetos que representam a fome que eles tinham de cacau e sangue, reproduzem os desdobramentos nunca apagados de toda a opressão e do genocídio que o processo de colonização significou, a despeito de tudo ter sido feito em nome do Senhor. Não se mata assim uma única vez, e a volta e a repetição de cada um desses golpes é amplificada pelo canto quase grito de Milton, nas grimpas de sua voz retumbante.
“Deus” aparece aqui no seu verdadeiro papel de salvaguarda moral para todos os tipos de atrocidades cometidas em nome da bandeira inglesa, e de tantas outras. A Corte atenta e faminta pelo cacau dessa mata, mata , mata , mata , é , por fim, satisfeita.
Os acordes giram em torno de Si Bemol Maior, com aparições de Fá Maior, Sol Menor, e Dó com Sétima suspenso , e Mi bemol Maior. Diríamos que a tonalidade oscila, no percurso da canção, entre Si Bemol Maior e Fá Maior, com uma breve passagem por Sol Maior ( Minha vida e minha morte ...) Mas essa canção não passa por uma resolução progressiva de tensões hamônicas, antes usando, longamente, cada acorde como uma cena épica e dramática do que conta a letra. O recurso do eco indefinido, a falta de pulso regular, a introdução cerimonial e a violência do canto nos levam direto a um lugar-tempo histórico onde ainda lateja a dor de tanto sangue derramado em nome da moral e dos bons costumes.
Bem apropriado para o momento histórico que estamos vivendo. 


*N.E. Me ocorre que o recurso de remeter ao tempo histórico da colonização tratando simultaneamente dos conflitos próprios daqueles tempos de chumbo constitui não uma semelhança entre Bodas e a peça Calabar, mas também um ponto de convergência entre várias canções populares do período. Um ponto a ser devidamente explorado pelos historiadores, para além do recurso didático - muito válido, diga-se de passagem - de recorrer a estas canções para interpretar a leitura que fazem do período em questão. 

** N.E. Quanto a isso remeto o leitor à análise comparativa proposta por Túlio Villaça entre Bodas e Mathilda Mother do Pink Floyd, em seu ótimo blog Sobre a canção [aqui]


 
Bodas 

chegou no porto um canhão
dentro de uma canhoneira, neira, neira...
tem um capitão calado
de uma tristeza indefesa, esa, esa...
deus salve sua chegada
deus salve a sua beleza
chegou no porto um canhão
de repente matou tudo, tudo, tudo...
capitão senta na mesa
com sua fome e tristeza, esa, esa...
deus salve sua rainha
deus salve a bandeira inglesa
minha vida e minha sorte
numa bandeja de prata, prata, prata...
eu daria à corte atenta
com o cacau dessa mata, mata, mata...
daria à corte e à rainha
numa bandeja de prata, prata, prata...
pra ver o capitão sorrindo
foi-se embora a canhoneira
sua pólvora e seu canhão, canhão, canhão...
porão e barriga cheia
vai mais triste o capitão
levando cacau e sangue, sangue, sangue...
deus salve sua rainha
deus salve a fome que ele tinha.

https://www.youtube.com/watch?v=lurFsYB3peE
https://www.youtube.com/watch?v=fOxPv9vDlLM

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 9. Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

A despeito de ser um compositor que costuma navegar as águas mais profundas e tortuosas das páginas da música popular, Milton Nascimento tem um canal fino de acesso ao mais infantil das cirandas de roda, capaz de desenhar as melodias mais singelas em acordes perfeitos, sob as quais ocorrem as mais heterodoxas passagens rítmicas sem que se aperceba delas, tal a integridade da frase melódica e da forma. Em certas ocasiões, a simplicidade formal é incrível, como nesta pérola, que consiste na simples reexposição de uma frase "a" e uma variação dela, "a´". Em Raça vemos esse mesmo minimalismo melódico.
Claro que esse aspecto hai-cai da melodia é dirimido pela longa introdução de sua gravação primeira, no disco Minas, com as sinuosidades do sax de Nivaldo Ornellas e a felliniana ambientação musical e percussiva que segue, interrompidas pelo canto idílico de crianças no jardim de infância, em Fá Maior; desse jardim somos catapultados de súbito uma quarta acima, em Si Bemol, tom que vai predominar daí até quase o fim, com o surreal falsete miltoniano em suas pontas mais agudas. Um coro sacro sustenta a primeira estrofe que enuncia o último ponto da estrada de ferro que ligava Minas à Bahia*; a estrada de ferro, antes índice máximo da tecnologia mundial dos transportes, curiosamente aparece como elemento da natureza, da paisagem já tomada, e agora despido de sua força-vital ; “mandaram arrancar”. Em torno da estrada de ferro todo um cenário se constitui e se desvanece , e vai se perdendo numa nostalgia que se verifica, também, em Saudade dos Aviões da Panair, também letra de Fernando Brant. Os meios de transporte "ultrapassados", como o bonde, o trem, e os antigos aviões, são tomados como eixo lírico de toda uma visão de mundo que tem no Brasil - e no interior do país - seu centro geográfico. A passagem do tempo impele um trabalho contínuo de destruição e ressignificação do que antes era progresso e hoje é nostalgia ; mas esse tempo histórico não é tido como natural, e o sub-texto da canção é uma condenação velada ao desenvolvimentismo do Brasil Grande, com suas Transamazônicas e o sucateamento das ferrovias, ao mesmo tempo que a Feira Moderna da televisão nacional anunciava o encurtamento das distâncias, enquanto outras só se alargavam.
Notável, voltando aos aspectos estritamente musicais, é o solo desenvolto e de arribação de Nivaldo Ornellas, assim como a articulação entre bateria, Paulo Braga, baixo elétrico, Novelli, e piano elétrico, Wagner Tiso, para a levada pop de uma música tão idiossincrática em sua métrica: um compasso de 4/4 é seguido de um de 5/4, em ambas as frases da melodia; porém a acentuação sugere outras possibilidades de divisão de compassos, como um compasso de 4/4, um de ¾ e um de 2/4 . E é incrível como as platéias mais leigas nunca se confundem com isso, como a reafirmar a naturalidade da divisão melódica. Cantigas de roda com esse tipo de característica não ocorrem a qualquer compositor.
Regravada uma infinidade de vezes, trata-se de uma das mais consagradas loas da dupla Nascimento e Brant, e é natural que a grandeza da música se justifique por sua simplicidade misteriosa e reveladora.


*N.E. A Estrada de Ferro Bahia Minas (EFBM) era uma linha ferroviária brasileira que ligava o norte de Minas Gerais com a cidade de Caravelas no litoral sul da Bahia. Teve como diretriz a ligação do arraial de Ponta de Areia, próximo a cidade de Caravelas, à cidade de Araçuai no interior de Minas Gerais,numa extensão de aproximadamente 600 km. (Rodney Vogel no You Tube).  Cabe lembrar que Fernando Brant, à serviço da revista O cruzeiro, produziu o texto de foto-reportagem a respeito do encerramento das atividades da linha, que segundo o próprio lhe inspirou a criar a letra da canção.

https://www.youtube.com/watch?v=kXABM6vuCmM
https://www.youtube.com/watch?v=L2AI5S76WIg
https://www.youtube.com/watch?v=eApasQ8a1Zs
https://www.youtube.com/watch?v=GNhMmdbNqso
https://www.youtube.com/watch?v=ebCi2x48U6c
https://www.youtube.com/watch?v=V7snPl8L6Zg
https://www.youtube.com/watch?v=OYV11DtFPWI [com imagens do trajeto Bahia-Minas]

Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

Ponta de areia ponto final
Da Bahia-Minas estrada natural

Que ligava Minas ao porto ao mar
Caminho de ferro mandaram arrancar

Velho maquinista com seu boné
Lembra do povo alegre que vinha cortejar
 
Maria fumaça não canta mais
Para moças flores janelas e quintais

Na praça vazia um grito um ai
Casas esquecidas viúvas nos portais



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10. Uma Canção ( Lô Borges e Ronaldo Bastos)
O cancioneiro nacional é repleto de meta-canções extraordinárias, desde Feitio de Oração, de Noel Rosa e Vadico, até Festa Imodesta de Caetano Veloso, desde O Compositor Me Disse , de Gilberto Gil até Corrente, de Chico Buarque, para não falar na sensacional Letra de Música, de Kristoff Silva e Makely Ka, célebre no nosso eldorado subterrâneo. “Enquanto o ouvido duvida o olho trabalha, dilatando a pupila pra ver nublado brotar a lágrima” . Poucas são tão singelas quando Uma Canção, lamento em Mi Menor cantado com ecos joãogilbertianos por Lô Borges, enquanto dedilha seu violão de cordas de aço e assobia a melodia despreocupadamente.
O lirismo melancólico, inscrito no cromatismo melódico descendente inicial, em campo claro de Mi Menor, passando pelo sexto e quarto graus ( Dó e Lá Menor) , é dos mais distintos, ilustrado por inspiradas imagens pontuais que apontam para o caráter sintético do objeto canção. A leveza que sustenta o peso, o raio que penetra o desvão, o cheiro que carrega o tempo, e lâmina de tal precisão: imagens cristalinas na descrição do ato de compor, lapidar um objeto fugaz, abstrato e ao mesmo tempo depositário de tanto sentido.
A valsa flui enquanto o desenho harmônico acumula graus de suspense e resoluções diferidas, como em A7(9), e aquela dicção típica de Lô se encontra nas equilibradas alternâncias entre graus conjuntos e saltos ; no aspecto forma, temos apenas um A com algumas variações no fim de sua segunda seção, que tem uma extensão de 14 compassos, na seguinte disposição : 3+4+4+3 . Essa extensão muda, assim como a resolução harmônica, ao fim da terceira estrofe, e ainda numa outra variação para o fim da música, com aparições elegantes de empréstimos modais do modo frígio e a resolução no homônimo maior. Coisa de gênio. Das suas maiores baladas, Uma Canção adquiriu monumental reputação em rodas de violão de amantes da música mineira.

Uma Canção (Lô Borges e Ronaldo Bastos)



Uma canção é leve e pode sustentar
Toda emoção
Que pesa demais
E num passe de mágica faz voar
É gota d'água e faz transbordar
Vai na enchente arrastando
O que pode transformar
Em nuvem do céu
Da inundação
Uma canção é clara e pode penetrar
Negro desvão
Que um raio de sol
Com a súbita chama faz clarear
Um viajante que se fez perder
Por sua estrela se inicia
Nos mistérios de querer
A lâmina ser
De tal precisão
Qualquer pessoa pode assoviar
A voz humana se decifra
Quando canta por prazer
De juntos trilharmos uma canção
Uma canção é lenha e pode consumir
Uma paixão, um caso de amor
Que o som das palavras vai traduzir
É rima simples e retém calor
Se ilumina quando toca uma pessoa
Que se quer bem perto da brasa do coração
Uma canção tem cheiro e pode transportar
Uma fração de um tempo qualquer
Que a gente viveu num outro lugar
É diamante para lapidar
Na pedra bruta segue o veio da beleza
Quando faz soar cristalina revelação...

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11 de outubro de 2014

De nuevo en la esquina

Amanhã parto para Salvador, rumo ao XI Congresso da IASPM-AL. Como já havia comentado aqui, irei dividir com o caro colega Lauro Meller a coordenação de um simpósio sobre Beatles, agora acumulando juntos também a coordenação de um outro sobre rock e heavy metal (esse bem mais a praia dele que a minha) em função das dificuldades operacionais de deslocamento dos colegas que o fariam. Enquanto preparo o material me lembrei que há poucos dias divulguei pela internet um antigo texto, fruto da minha pesquisa de mestrado, que foi publicado em espanhol pela revista mexicana Anuario de Espacios Urbanos.
Quando se pesquisa um tema por tanto tempo às vezes nos interrogamos sobre a pertinência de continuar a fazê-lo. Aí vejo tanta gente me procurando, me pedindo orientação, cópia dos trabalhos, trocando ideias, e me animo. Hoje o cenário é diferente de quando iniciei, com muitos estudos em diversas áreas do conhecimento abordando a música popular e o Clube da Esquina. Por esse motivo mesmo, segue: 

De nuevo en la esquina los hombres están: práticas musicales y sociabilidades urbanas

28 de setembro de 2014

Recomendação do blog - Cafe Songbook



Cafe Songbook - site devotado ao grande cancioneiro popular estadunidense. 
 
Ótimo achado do meu parceiro Pablo Castro, de quem cito a apresentação a seguir:

É difícil para nós , que nascemos por volta de meio século depois desses standards serem criados, entender que o auge da canção americana foi durante as décadas de 1930 e 1940. Letristas e compositores maravilhosos, procedimentos musicais que formam a espinha dorsal das investigações artísticas da forma sintética da canção, e sua relação virtuosa com o meio instrumental : tudo isso vem de então.No site, para cada música, há links para várias versões de cada um desses clássicos, e sessões sobre crítica, história, referências à literatura do assunto, em suma, uma coisa enriquecedora sobre a grande canção americana.




Da apresentação do site:

"Cafe Songbook is A Virtual Cafe devoted to the songs of The Great American Songbook, the songwriters who created them and the artists who perform them. The term "The Great American Songbook" has several iterations. There is the long form as just stated and the shorter versions, "American Songbook" and just "The Songbook."[...] Cafe Songbook is like most music cafe's in that it has its stage, albeit virtual one, on which the music is performed; however, unlike most cafes and clubs, it is not a place where one featured entertainer or group performs a slate of of songs, but rather where one song is presented by a slate of performers."

Acesse: aqui 

 

22 de setembro de 2014

Dançando com os ouvidos


Chico Buarque e Edu Lobo cantam "Ciranda da bailarina" no programa "Te lo do io il Brasile" de 1984 (RAI TV - Itália)




Ciranda da bailarina (Edu Lobo/Chico Buarque) do musical O Grande Circo Místico [conheça, aqui]. Espetáculo marcante, conjugando dança, música, circo, teatro e poesia. O tempo hoje tá curto mas qualquer hora pinta um texto aqui sobre ele. Mas acabei encontrando esses vídeos, intimistas, motivado pelo comentário feito por uma querida colega pesquisadora, com quem já tive muita satisfação em trabalhar, a Carla Corradi, relatando que estava transcrevendo uma entrevista concedida por uma bailarina. Me senti imediatamente dançando com os ouvidos...


Procurando bem todo mundo tem pereba,
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira, verruga, nem frieira
Nem falta de maneira ela não tem

Futucando bem, todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho,
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida, nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem

Não livra ninguém,
Todo mundo tem remela quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem

Medo de subir, gente
Medo de cair,gente, medo de vertigem quem não tem?

Confessando bem,
Todo mundo faz pecado, logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem

Sujo atrás da orelha, bigode de groselha
Calcinha um pouco velha ela não tem
O padre também pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina

Reparando bem todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília, goteira na vasilha
Problema na família, quem não tem?

Procurando bem...
Todo mundo tem...
Procurando bem...


(Outro vídeo, também de 1984, salvo engano extraído daquela série de dvds do Chico)


30 de agosto de 2014

Bolacha Completa - Elis Ao Vivo (1995)

Em mais uma postagem da série Bolacha Completa, compartilho com os leitores do Massa Crítica MPB o belo texto escrito pelo Alberto Campos, companheiro das navegações noturnas nas digitais redes pesqueiras da boa prosa e da boa música popular. Só posso agradecê-lo por emprestar ao blog essa pérola que fabricou no ventre de sua audição interior. 

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Por Alberto Campos

Deixei a sala da casa na penumbra para melhor ouvir o disco póstumo Elis Ao Vivo (1995)*, um registro do show da cantora de 1977, grávida de 07 meses da Maria Rita. O som é limpo. Acho que a gravação mais bonita da canção Morro Velho está nesse registro. Elis se emociona e transparece tranquilidade, paz de espírito e o canto firme como se estivesse segura do futuro que lhe esperava. Ouço o disco e penso na gravidez como metáfora. A natureza nos fez um corpo masculino sem estrutura física para desenvolver o processo de gestação dos mamíferos. Daí, podemos ter o que vou chamar de gravidez poética. Ideias que guardamos consigo e não compreendemos. Ela vai sendo gestada sensivelmente e à nossa revelia, muitas vezes sendo percebida pelos outros, como algo em desenvolvimento, como algo que por vezes nos deixa melancólicos ou efusivos de modo inconstante. Penso nisso porque o dia de hoje me ofereceu muitas perguntas e poucas respostas. Vi a afetividade agressiva, artística e masculina de um artista de Roraima, que apresentou canções sobre o impulso tribal e indígena que há em todos nós, brasileiros, e tudo na linguagem de bateria+guitarra+percussão. Ouvi conversas sobre gravidez e sobre abortos, a balança que carrega de um lado o peso da vida e do outro o peso da morte. Ouvi conversas sobre maturidade e realização profissional. Dancei um pouco com todas estas ideias, admito. Mas elas permaneceram ainda em órbita. Vi imagens compartilhadas no facebook de lindas mulheres grávidas e suas expectativas radiantes sobre a glória da vida, a continuidade de todos nós. Tudo isso me comoveu. E voltei aos meus pensamentos de homem grávido que estou. Veio então a sensação de vertigem. A mesma sensação de quando temos febre alta na infância. Os olhos fechados e a percepção alterada de que o corpo se expandiu para todo o espaço da sala. A gravidez poética de um homem talvez possa soar confusa para quem racionaliza demais a experiência. Alguns poderão definir como torpor lisérgico com ironia. Podem dizer o que quiser. Mas não é nada disso. Elis Regina continua me conduzindo a universos expandidos de tranquilidade e segurança com sua voz. Já no final do disco, ela canta: "As coisas que eu sei de mim tentam vencer a distância e é como se aguardassem feridas numa ambulância. As pobres coisas que eu sei podem morrer, mas espero como se houvesse um sinal, sem sair do amarelo" (Transversal do Tempo). Ainda em estado de suspensão febril, a voz de Elis parece ser a companhia ideal. Parece haver uma cumplicidade entre a voz da cantora e os ouvidos deste homem grávido de pensamentos. Esse depoimento não pretende de jeito maneira ser alguma bandeira do anima masculino, nada disso. Quem me tem por perto sabe do azul, sabe do jeito de expressão. Não sei se haverá um parto de textos poéticos, rs, mas acho que vale à pena parar um pouco com a pressa dos dias, deitar na penumbra e ouvir esse disco da Elis Regina. Não precisa estar grávido. Mas, se estiver, talvez a gente se entenda. 

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* [Nota do editor] Elis ao vivo (1995) [ouvir completo, aqui] foi editado pela Velas a partir de gravação realizada no dia 25/07/1977, no Palácio de Convenções do Anhembi, SP, durante o programa O Fino da Música, da Rádio Jovem Pan, produzido por Zuza Homem de Mello. 

Faixas

1 Como nossos pais
(Belchior)
2 Travessia
(Milton Nascimento, Fernando Brant)
3 Morro Velho
(Milton Nascimento)
4 Romaria
(Renato Teixeira)
5 A dama do apocalipse
(Crispim, Natan Marques)
6 Colagem
(Cláudio Lucci)
7 Madalena
(Ronaldo Monteiro, Ivan Lins)
8 Qualquer dia
(Vitor Martins, Ivan Lins)
9 Cadeira vazia
(Alcides Gonçalves, Lupicínio Rodrigues)
10 Vida de bailarina
(Américo Seixas, Chocolate)
11 Triste
(Tom Jobim)
12 Dois pra lá, dois pra cá
(Aldir Blanc, João Bosco)
13 Mestre sala dos mares
(Aldir Blanc, João Bosco)
14 Transversal do tempo
(Aldir Blanc, João Bosco)
15 Cartomante
(Vitor Martins, Ivan Lins)

31 de julho de 2014

Pobre MPB rica

A MPB está pobre, diz Mônica Salmaso [entrevista em O Globo, aqui]


A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio. Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz — lamenta.


Entendo que quando ela diz isso os ouvidos dela estejam por demais voltados para os veículos tradicionais, rádio, tv, e o mainstream da indústria fonográfica. Se cabe ponderar que a MPB feita atualmente não se resume ao que ressaltam esses meios, de outro lado é uma fala sintomática que corrobora tantas outras na detecção dessa quebra da correia de transmissão que um dia ligou o que de mais inventivo era realizado em nossa música popular a um público amplo, que acessa esses veículos. Precisamos sim reconstruir esses vasos comunicantes entre o manancial de composições de altíssimo nível e o ouvinte de música popular para além de pequenos círculos.

Ainda não ouvi o disco novo dela todo, e por mais que goste da Salmaso e seja grande admirador tanto do Guinga quando do PC Pinheiro ainda é muito cedo pra dizer que importância tem ou não. Tem outra coisa, por experiência própria sei como lamentavelmente jornalistas e editores são bem capazes de pinçar certas coisas numa fala bem mais contextualizada e apresentá-las de modo que venda e repercuta, independente de serem a expressão correta do que a pessoa falou. Enfim, continuo achando que ela abordou o cenário maior, o mainstream mesmo, mas sendo assim espero que ela se manifeste para deixar mais claro o que disse. Com as redes sociais é possível ir além da superficialidade desses jornais de sempre.

Enquanto isso, não seria desvario sonhar que essa fala da Mônica seja retrucada com ofertas e sugestões que a animem a fruir com um pouco mais de delonga e paciência o que anda tocando nos eldorados subterrâneos digitais. Me parece que nas entrelinhas fica visível que ela não tem lá grande familiaridade com o meio em questão. Eu diria que, a essa altura, se quiser ser uma grande intérprete da música brasileira de hoje - e ela pode sê-lo - ela terá que se familiarizar ou buscar auxílio para tanto. Sem romantismo algum vamos ter que considerar que "garimpar" repertório é algo que mudou de figura com tantas plataformas eletrônicas que permitem que excelentes compositores possam, passando ao largo da lógica carcomida da indústria do disco, lançar ao léu e ao mar digital seus trabalhos para deleite dos argonautas dos oceanos internéticos. Ou senão, ainda é possível viajar, por o pé na estrada, procurar as pessoas, sentar e ouvir. Os intérpretes podem e devem ser aventureiros, arqueólogos do eldorado subterrâneo da canção a descobrir que a pobre MPB é rica de marré deci. 


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O debate desencadeado pela entrevista da Mônica Salmaso tem rendido até mais do que era provável, e pensei que seria válido ir compilando aqui algumas das principais observações e posições que vão aparecendo, e que irão sendo somadas pelos comentários que os leitores começam a deixar no blog. Muitas sublinham questões para as quais não atentei ou eventualmente trazem pontos de vista diversos do meu. Como em outras ocasiões, considero o blog uma forma de agrupar material documental e dar espaço à troca de ideias. Começo com trechos de um texto que o violonista, compositor, intérprete e arranjador Sérgio Santos [quem quiser pode conhecer aqui seus brilhantes trabalhos] publicou no facebook [completo, aqui], que ele gentilmente me autorizou a publicar, pelo que agradeço muito. Se ele foi interpelado sobre o assunto é porque, além de seu reconhecido mérito como músico, mostra-se um comentarista arguto, que realiza uma crítica cultural de muita propriedade, que percebo ser uma referência para quem atua e pensa na música popular brasileira.

Sérgio Santos:
"A entrevista de Mônica Salmaso essa semana no O Globo tem gerado uma série de posts e comentários aqui. Fui citado em vários, e por isso, além de ver importância no assunto, me sinto confortável para comentá-lo. Conheço Mônica desde a época dessa foto. Pelos meus cabelos pretos dá pra ver que tem tempo. Sei que ela ama o que eu faço, assim como eu amo o que ela faz. Mas ela nunca me gravou em seus discos. E isso nunca me aborreceu ou frustrou minimamente, porque sei como ela raciocina em seus trabalhos, sei como ela pensa a música. [...] Em primeiríssimo lugar, é preciso que se diga que o fato principal da entrevista, o assunto que a gerou, é o lançamento de um trabalho magnífico. Não se trata de Guinga e de Paulinho isoladamente, mas de uma obra conjunta que estaria (por razões inúmeras que não se cabe discutir) irremediavelmente condenada ao desconhecimento, ao limbo musical eterno, caso Mônica quando a descobriu não tivesse batalhado por lhe trazer à luz. Isso é um fato, não cabe discussão. Tive o privilégio de conhecer a totalidade dessa obra há muitos anos (das gravações da Mônica só conheço as 4 que ela publicou), e não tenho a menor dúvida de que essa obra dos dois compositores é DAS MAIS IMPORTANTES E FUNDAMENTAIS DA MÚSICA BRASILEIRA RECENTE!!! Ela faz parte do que melhor produzimos em música popular!!! Esse é o fato principal!!!! E parece que ninguém se ateve a ele suficientemente, antes de criticar a cantora que a desenterrou. Acaso alguém que concluiu da entrevista de Mônica que ela desconhece a melhor música que fazemos, já ouviu essa obra? Não uma música ou outra, mas essa obra? Duvido muitíssimo que a maioria a conheça, já que ela não era acessível!! Aí temos uma cantora que descobre esse repertório oculto, que se move até ele, que enfrenta os não poucos meandros que envolvem gravá-la, que a torna acessível, e essa mesma cantora é criticada por… desconhecer a melhor música brasileira!!! Ainda que ela tivesse sido infeliz na sua declaração, E NÃO FOI, acaso não seria esse assunto principal que a materia traz, relevante o suficiente para ilustrar o fato de que trata-se de alguém que suou e muito a camisa, exatamente para mostrar a melhor música que produzimos???? Não estaria suficientemente claro, então, a qual música Mônica se refere??

Ah, muitos dirão, mas é fácil graver Guinga e PCP, que já estão estabelecidos! Queria vê-la gravando artistas realmente novos, pouco conhecidos! Há até quem tenha feito listas deles, que deveriam ter sido citados na entrevista, para mostrar a Mônica que ela desconhece tanta novidade, que está presa ao passado, etc. E aí, dá-lhe citações e listas, e em muitas delas lá estava eu incluído! Perdão mas NUNCA considerei a criatividade uma questão geracional. Fazer música criativamente não é uma atribuição exclusiva para jovens nem para velhos. Nem para iniciantes nem para consagrados. Há setentões consagrados fazendo discos maravilhosos recentemente. Assim como uma pilha de discos lindos que ouço SEMPRE de um monte de iniciantes talentosíssimos, todos desconhecidos do grande público (não me crucifiquem por não citá-los!!). E daí? Da mesma forma há um monte de discos de artistas iniciantes sofríveis, POBRES de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. Assim como também fazem um monte de consagrados!! Repito: e daí? O universo que Mônica se insere, não distingue geração entre os criadores!!! Ah, dirão, mas ela deveria ter dito que essa música fantástica existe! Perdão, mas realizar vale menos que falar da existência?? Tenho certeza que a realização de um trabalho como o que ela agora lança, fala muito mais e vai favorecer muito mais a minha música e a música de quem esteve citado em tantas listas, do que se ela tivesse desfiado um rosário de citações.

O principal a se ver nessa polêmica é reconhecer que a música brasileira não poderia passar incólume a anos e anos de bombardeamento constante de lixo descartável. Isso não pode ter acontecido sistematicamente sem deixar marcas no comportamento do público, na sua capacidade de discernimento, na nossa forma de olhar para a nossa história cultural e musical, NA NOSSA CRIAÇÃO!!! Edu Lobo tinha 17 anos quando fez Ponteio. Por ele ser um gênio? Também! Mas por viver em um ambiente cultural com as referências necessárias para realizar o que realizou. É preciso uma miopia grave para não entender que essas referências, não apenas na música, mas na cultura em geral, não apenas no Brasil, mas no mundo, empobreceram sistematicamente. E é isso que faz com que todos que pensamos criativamente nos sintamos estranhos no ninho!! E essa falta de referências culturais, que foram substituídas pelo marketing, pelo peso da mídia e pelo lixo industrial, pesaram negativamente para o geral da criação artística no mundo todo, em todas as artes!! É a esse empobrecimento que Mônica se referiu. E ISSO NÃO MUDA PELO FATO DE HAVER UMA LEGIÃO OCULTA DE SOBREVIVENTES DESSE DILÚVIO DE MEDIOCRIDADE!!! Legião essa que luto dia após dia para fazer parte dela. E é preciso se ter muito claro que a chamada música independente, está apinhada, repleta, entupida, dessa mesma pobreza criativa que não é exclusividade do “mainstream”. Ela se espalha exatamente pela capacidade de divulgação e pelo espaço desproporcional que ocupa. Crer que a "independência" e a onipotência da internet garante a isenção estética, na minha modesta opinião é um grave erro, e bastante generalizado.

Fiz um post há alguns dias dizendo dessa mesma coisa, do meu cansaço e do desgaste que é enfrentar essa realidade POBRE diariamente!! Alguém acha rico o contexto que nos inserimos? Alguém acha instigante se mover no sistema geral desse mundinho ridículo de editais aos quais temos que nos submeter? Alguém é capaz de dizer que há riqueza nas possibilidades a que nossa profissão foi relegada? Principalmente, alguém é capaz de achar que isso não influencia esteticamente naquilo que se cria?? Nesse post, curiosamente ninguém me criticou. Pelo contrário! Talvez o tenham feito com Mônica pelo lugar que ela vem ocupando, e ocupa com a maior das justiças. De mim pelo menos não poderão dizer que sou “divo”, que estou na mídia, etc. Espero que não, que me rebatam com argumentos!! Pra terminar, tenho a maior das certezas de que TODOS os envolvidos nessa discussão JOGAM EXATAMENTE NO MESMO TIME!!! Talvez seja oportuno calibrar melhor a mira!!!"