Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de junho de 2013

Bolacha Completa - Diamante bruto materializado em vinil ("Disco do Tênis", Lô Borges - 1972)


Em grande sintonia com o tempo presente, um instantâneo das angústia e desejos da juventude nos anos de chumbo grosso. Inspirado pelo amigo feicibuquiano "Arquivos Vinis" e pelos dias que correm resolvi ajuntar aqui algum material sobre o "Disco do Tênis". 
Para começar, um depoimento do próprio Lô, tão despojado quanto a própria capa do disco:
"Então eu botei um tênis na capa, exatamente porque eu queria pegar estrada, para simbolizar o que é que eu queria fazer e foi exatamente o que eu fiz: peguei a estrada depois do disco do tênis. Ele acabou virando um disco cult, não sei o que lá, tem gente que acha que o disco do tênis foi o melhor disco que eu fiz. Eu acho que é o disco mais caótico que eu fiz, mas é… Tem ali canções legais, porque quando você é levado a compor muita coisa ao mesmo tempo, você fica meio massacrado com aquilo e você tem um residual de talento ali, você acaba tirando aquele talento que você tem dentro de você, mas tirando a fórceps, é um negócio meio brutal, o nascimento das canções era um negócio meio assim, pá, pá, eu digo, tem que surgir, eu tive que puxar mesmo com força o novelo ali pras canções terem sentido e aí eu fiz um disco que eu escuto hoje eu gosto das canções, é, a maioria das letras que eu fiz eu não gosto, é, eu gosto das canções, da sonoridade do disco e gosto do… Eu gosto desse disco e não gosto da minha voz. É porque é uma voz muito, sabe o cara saindo da adolescência para idade madura? Fica ããããã, então é aquela voz assim que você não sabe se é uma criança que está cantando ou se é um adulto, a voz fica no meio. Eu gosto das composições, eu gosto. As letras eu não gosto muito, mas é um disco que no geral eu acho um disco interessante e eu agradeço a Odeon por ter me botado essa pilha de fazer um disco. Só que eu fiz um disco completamente diferente do que eles esperavam, mas tudo bem, foi o que foi possível ser feito." (extraído do site Museu Clube da Esquina - depoimento completo, aqui)
Engraçado essa coisa do ponto de vista do autor. Eu, que sou letrista, acho essas letras, especialmente as dele, viscerais, espontâneas, geniais a seu modo. Para mim quem melhor resenhou esse disco foi meu colega historiador, Ronald Polito, e esse texto dele (originalmente publicado no Estado de Minas em 1997) é uma verdadeira aula de crítica. Deixo aqui uma pequena amostra e o convite para os leitores lerem na íntegra [aqui]   
Pois este disco compõe um microcosmo. Anotando pequenas vivências ou projeções, ajuizando experiências passadas e presentes, mapeando opções de comportamento e reação, o que vemos é um roteiro fragmentado de uma subjetividade que busca o isolamento, de uma personalidade intimista, insubmissa e, mesmo, agressiva, quando precisa manter sua integridade ameaçada. A música, por outro lado, tendo sua própria linguagem e orientação, comparece geralmente em sistemática sintonia ou em contra-voz com os apelos da fala, quando esta se faz presente. Porque também há o tempo só para a música, onde toda palavra seria ruído. Coisa incomum na MPB do período, com tendência a uma super-valorização da letra das canções. (POLITO, 1997)



A capa do disco, claro, tem uma história particular que merece nota. Vou deixar por agora o depoimento do Cafi, autor das fotos e da capa:
Eu lembro, por exemplo, do Lô, que estava todo chateado, e eu fiz aquela capa com ele dos dois tênis, porque ele tinha dois tênis velhos. A gente não conseguia achar uma foto do Lô, então disse assim: “Por que não vamos fazer com o tênis?”. Aí fizemos com o tênis, não sei se foi uma idéia do Marcinho na época, foi uma coisa que surgiu. Dessa capa, até hoje, nego vem me falar em Londres; neguinho adora essa capa. A capa ficou muito atrelada a um tipo de sentimento, não era uma embalagem de um sabonete, era uma embalagem de um outro conteúdo estético, então ela tomou coisas assim. (extraído do site Museu Clube da Esquina - depoimento completo, aqui)
Para encerrar a postagem deixo uma das faces brilhantes desse diamante bruto materializado em vinil:

Pra onde vai você?

Pra onde vai você?
Que pressa você tem?
O sangue nas paredes nunca foi o seu!

P.S. 2015
Relendo a postagem acabei achando melhor trocar o título. 

P.S. 2016

Resolvi incluir o link para a Ficha Técnica

P.S. 2017 - Bolacha Completa

O caríssimo amigo, guitarrista, violonista, compositor, comandante em chefe do Confraria Home Studio, Guilherme De Marco, atualmente compondo a banda que, sob a direção musical de meu parceiro Pablo Castro, acompanha Lô Borges no show que apresenta uma reconstituição em alta fidelidade do 'Disco do Tênis' (ainda farei uma postagem exclusiva sobre isso) me enviou esse certeiro texto em que destrincha o disco conjugando a audição de músico atenta aos aspectos propriamente sonoros com um olhar sensível para as letras, ambos conectados a uma compreensão do cenário político e cultural em que surgiu. Com a finalidade de potencializar a leitura, decidi inseri-lo de modo a modificar o status dessa antiga postagem. O recurso de ir acumulando textos e comentários (sempre devidamente creditados) me parece um dos mais atraentes do formato blog. Agradeço imensamente ao Guilherme essa contribuição que alargou as passadas do Tênis pelo Massa Crítica. Vamos ao texto:


"O lendário Disco do Tênis é uma expressão da contracultura dos anos 1960/70 no Brasil extremamente rica em nuances. Nas entrelinhas das faixas e da sonoridade do álbum, estão presentes a contestação a uma cultura conservadora, de um modo geral, e aos horrores da ditadura militar no Brasil e da sociedade que via nessa aberração algo normal (“O sangue nas paredes nunca foi o seu”, diz a letra de “Pra onde vai você”).  As experiências psicodélicas dos estados alterados de consciência, a exploração de timbres e misturas sonoras inesperadas, a famigerada guitarra elétrica pegando pesado e convivendo com as levadas jazzísticas, violão de nylon tocado com palheta, sons de cravo, órgão, pianos e as marcas do rock britânico dos Beatles, do progressivo...  Isso indica uma ruptura com modelos pré-estabelecidos de fazer músicas, de produção fonográfica e de vida.

Se, por um lado, há a constatação de que estamos em uma “cultura anti-vida que, no entanto, existe para comandar a vida”, como dizia Artaud, por outro lado, há a resistência, que caminha no sentido da valorização dos prazeres gratuitos e humanos essenciais que nunca podem ser roubados, como a amizade, a criação artística coletiva, o compartilhamento das experiências, a ampliação dos horizontes da percepção, a própria linguagem da sensibilidade,  a proposta de uma realidade mais comunitária, a lembrança de que somos seres sensíveis e de que a natureza, o amor e a amizade são belezas primordiais e fundamentais.  
No entanto, a partir da visão crítica da cultura tradicional conservadora da sociedade, há também uma espécie de desilusão.  A tristeza de viver em uma realidade política cruel e sanguinária, que retira direitos e restringe os espaços da sociedade civil, que tortura e  “desaparece” pessoas, deixa a sensibilidade desses jovens calejada (“Como o machado, que despreza o perfume do sândalo”).
O que sobra pra conseguir sobreviver nessas condições? A arte, o amor, o estímulo à sensibilidade pelo contato com a natureza  e/ou as experiências lisérgicas, a sensação de liberdade de cair na estrada e sobretudo, a amizade. A contracultura aparece, assim, como uma forma de resistência à desumanização e de união entre os jovens daquele período.
O Disco do Tênis é uma obra do Lô produzida entre amigos, dentro desse contexto. A espontaneidade dos arranjos e colaborações de todos, a forma de produzir, em um processo sem um rígido direcionamento estético e comercial, somadas à liberdade criativa que isso acarretou no resultado sonoro do álbum, fizeram com que ele se transformasse em uma lenda, uma crítica à sociedade, mas, muito além disso, um retrato da época e dos anseios por mais liberdade e mais humanidade dessa geração de jovens do início dos anos 1970."
Guilherme De Marco


Como de praxe, a bolacha completa:
  

Quem cala sobre teu corpo

Enquanto a conjuntura política efervescente e angustiante que estamos vivendo foi tomando conta de tudo e o tempo parecia cada vez mais escasso para fazer as coisas, bolei e desembolei várias postagens para o blog, a maioria delas pensando a relação entre música popular e engajamento político. Pensei em começar uma série especial, para dar uma agitada no blog, que vem sofrendo com minha falta de tempo. Quanto a isso o segundo semestre se aproxima, com muita expectativa para novidades. Bem no meio desse turbilhão um acontecimento deveras trágico se impôs no horizonte, e me motivou, entristecido e indignado, a fazer essa postagem. Deu no jornal:

"Morreu no fim da noite desta quarta-feira (26), o jovem que caiu do viaduto José de Alencar, na avenida Antonio Carlos, durante os confrontos entre a Polícia Militar (PM) e os vândalos infiltrados nas manifestações que acontecem em Belo Horizonte. O metalúrgico Douglas Henrique de Oliveira Souza, de 21 anos, caiu de uma altura de aproximadamente 6m, em um vão que existe no viaduto. Do mesmo local, outras quatro pessoas caíram durante os protestos.

O jovem foi socorrido pelos bombeiros e levado de helicóptero, em estado gravíssimo, para o Hospital João XXIII. Douglas teve perda de massa encefálica, passou por diversas cirurgias durante a noite, mas não resistiu aos ferimentos. Esta é a primeira morte contabilizada em consequência dos protestos que tomaram as ruas da capital desde a última semana." reportagem completa, aqui

Uma colega da universidade me dissera dois dias antes que estavam procurando o Edson (Luis). Encontraram. Como tá difícil fazer essa homenagem, recorro à História e a palavras escritas em outro tempo, por outras razões, escritas sob o peso da sombra daquele Edson.  Que o jovem Douglas encontre lugar também na História que fazemos, para que sua a morte absurda não seja acompanhada do fúnebre silêncio do esquecimento.

"Ao tratar da morte do estudante Edson Luís alguns anos depois, os músicos do Clube a transformaram numa alegoria do “corpo político” dos cidadãos. O silêncio assume a face de sua morte. Se o anjo da história não pode recolher os mortos, cabe ao historiador materialista redimi-lo para que a derrota não se cumpra duas vezes. Romper o silêncio, gritando, instaura vida. O relógio no chão avisa a hora, o tempo do agora, a hora em que cada um é chamado a gritar, a preencher o espaço vazio com um som, o grito que é a caveira da voz, o primeiro som do recém-nascido e o último dos moribundos – a ressonância da vida na morte. A interrupção é feita por raios de efeitos de guitarras, e feita pela sensação do alarme de incêndio, alertando contra o perigo de que todos se calem e aceitem o curso inexorável da história" (GARCIA, 2000):

Menino(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)

“Quem cala sobre teu corpo / Consente na tua morte /
Talhada a ferro e fogo / Nas profundezas do corte / Que a bala riscou no peito 

Quem cala morre contigo / Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça / Batendo, avisando a hora / Que a raiva traçou no tempo 

No incêndio repetindo / O brilho de teu cabelo / Quem grita vive contigo”





Ficha técnica:
Violão e voz: Milton Nascimento / Guitarra: Nelson Ângelo
Baixo acústico: Novelli / Guitarras(efeitos): N. Ângelo e T. Horta
Bateria: Robertinho Silva / Órgão: João Donato[1]



[1] L.P. Geraes. Rio de Janeiro: EMI, 1976.

Referência Bibliográfica:

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2000 (dissertação de mestrado). [acesso aqui]