Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

Produção Artística

Como uma das novidades do blog no ano de 2014, nessa página vou postar material referente à minha produção artística, especialmente letras, vídeos e áudios dedicados às canções que fiz ou vier a fazer, em parceria ou eventualmente solo. Para combinar mais com a proposta do blog, vou acrescentar histórias, lembranças, pequenos comentários que serão como pequenos exercícios reflexivos sobre o ato de compor e seu entorno simbólico e prático. Para acessar todos os textos dessa seção, clique aqui.



Ponto Oriental
Vou começar com Ponto Oriental, letra que depois foi musicada por meu parceiro Pablo Castro, talvez porque tenha alguns detalhes nela que valem alguma notas. Uma curiosidade, que é o fato de ter sido escrita direto no computador, num arquivo .txt, com certeza uma das primeiras que fiz assim. Um processo que tem uma certa praticidade e uma materialidade própria, até na forma de ver as palavras tomarem forma, muito diferente de escrever à mão.
Adeus do ator
Para a segunda canção da série, escolhi Adeus do ator. Dentre outras razões poderia citar o recente passamento do José Wilker, a quem o Pablo a dedicou ontem no show que realizou no Sesc Palladium. Lembro-me de ela ter sido dedicada a Walmor Chagas, Raul Cortez, Paulo Autran, e  mais recentemente ao Phillip Seymour Hoffman. Não sem uma certa ironia, curiosamente uma das inspirações centrais foi a morte de uma atriz, grande nome de nosso teatro: Cacilda Becker. O derrame cerebral que lhe acometeu em cena foi, num hiperbólico exercício de ficção, transformado na morte em pleno palco do personagem central da letra.

Carpe Diem
Retomo, depois de algum tempo, a série sobre as canções que escrevi, dessa vez falando um pouco sobre Carpe Diem, em que fiz a letra para música do Pablo Castro, bem a tempo de integrar a lista das que seriam gravadas no álbum A outra cidade (2003) [um pouco de sua história, aqui; para comprar - vale a pena! - aqui]. Na época da gravação do disco eu estava cheio de obrigações profissionais e domésticas, e não pude participar do processo na intensidade que gostaria. Mas certo dia calhou de estar com o Pablo e ele me apresentou, ao teclado, uma canção que a princípio recebera uma letra em inglês da qual ele não se lembrava. Uma parte já estava bem definida, a outra nem tanto. Gostei de cara da melodia e da harmonia, ouvindo ali o encontro das águas das obras dos Beatles e do Clube da Esquina, que ambos admiramos e tomamos como referência fundante do nosso fazer musical e experiência cultural.
{continuar a ler}

A Feira
Continuando a série, hoje vou escrever sobre A Feira. Há vários caminhos pelos quais as letras podem se encontrar com as canções. Esse aconteceu de forma bem peculiar. De certa forma, foi como se as duas fossem velhas conhecidas, andando pelo centro de Belo Horizonte, que acabaram se trombando casualmente. Então, vão gastar horas matando a saudade, botando a conversa em dia. Assim também comecei A Feira como um texto livre, vagamente sugestivo para uma canção. 

Baião nosso de cada dia
Seguindo em frente com essa série, motivado pelo dia de Iemanjá e minha recente passagem pela Bahia vou falar da canção Baião nosso de cada dia (música de Pablo Castro, letra de Luiz H. Garcia), que por muitos anos era carinhosamente conhecida por nós e o círculo composto pelos músicos que a tocavam e alguns amigos próximos como Baiãozinho, ou Baiãozim. O diminutivo e a sílaba "im" - índice de fala brasileira interiorana - eram elementos distintivos da canção. Relutei muito em adotar outro título que não esse que me parecia consagrado pelo uso. O Pablo insistiu na mudança e me venceu, um tanto pelo cansaço e outro tanto porque nas sucessivas tentativas de encontrar uma boa alternativa, acabei me inspirando na sacada de O patrão nosso de cada dia dos Secos & Molhados.
{continuar a ler} 

Intuição
(...) adianto que não poderia, nem se eu tentasse, contar toda a história de Intuição. Prefiro e creio mais adequado fazer um exercício, recolher algo de reminiscência do impulso que deu origem a alguma coisa que foi ali uma espécie de crisálida, que depois de um tempo voltou como uma borboleta pronta, esvoaçando e pousando no meu ouvido. Estava ali contemplando aquela forma embrião, aquela primeira célula, aquelas notinhas se insinuando nas cordas do violão do Pablo. Pelo que me lembro era aniversário dele, uma festa no apê da Zoroastro Torres, muita, muita gente. Muita conversa animada. Não sei se ele já havia tateado aquela introdução antes, ou se foi ali, no meio do caos, que a larva se esgueirou pela madeira à procura de folhas. Sei que eu encontrei o papel, um dos vários cadernos de rascunho que mantínhamos ali entrando e saindo da vista. Então, literalmente, o vento soprou no meu ouvido: in-tu-i-ção. Enquanto o embrião de uma valsa brasileira se formava, em divisões celulares, foi surgindo o enredo, que era o desvendar de uma traição.{continuar a ler}

Moby Dick
Depois de algum tempo retomo essa série, procurando narrar um pouco a história por trás da criação das letras de canção que já escrevi. (...) Eu estava devendo desde uma postagem anterior tratando da literatura como inspiração para a canção [aqui] contar sobre Moby Dick. Lá se vão muitos anos, efetivamente mais de um década, desde sua feitura. Curioso que só agora, enquanto escrevo, a "irmandade" de Moby Dick e Carpe Diem se revela esclarecedora do processo criativo... a outra também fala de mar e igualmente teve como fagulha um romance, o Robinson Crusoé de Defoe. Mas se antes foi fagulha, aqui o raio caiu com voltagem altíssima, na sua fulgura matando a charada de uma vez. Era tratar de converter o épico embate entre o capitão Ahab e o cachalote branco do romance de Melville, datado de 1851, numa letra de canção com poucos minutos de duração. {continuar a ler}

Coisas Vãs
No caso de "Coisas Vãs" até que não tenho do que me queixar, tenho aqui comigo alguns esboços escritos na velha agenda ano 2 mil que ainda me serve de caderno, mais duas versões diferentes da final em arquivos txt - acho que essa mania de gravar nesse formato não perdi porque lembra vagamente papel datilografado - e ainda uma antiga gravação em MP3 datada de 2005. É provável que as primeiras versões da canção datem de 2003, 2004. Mas não pretendo entupir esse relato de exemplificações sobre mudanças de versos, palavras aqui e ali. Vou apenas me servir disso na medida em que me permita contar um pouco sobre a feitura da letra. De início, direi antes de mais nada que foi muito trabalhosa. Vejo aqui versões enormes, com muitas ideias e partes descartadas.  {continuar a ler}

Reinvento
Falamos mais um pouco sobre a forma e ele me mandou o que já havia feito da letra. Aparentemente a tarefa de arrematar algo tão encaminhado é fácil. É só seguir a linha, sem complicar - e de fato foi coisa de uns dois dias. Mas é preciso encontrar uma porta de entrada, e um jeito de andar pela casa em fase final de arrumação, sem tirar os móveis que estão no lugar. Decidi, ainda na conversa, que entraria pelas citações, ensejadas pelo mote da influência do Clube da Esquina, bem explicitada na retomada do verso de Brant "meu caminho é de pedra".{continuar a ler}

Aos réus
Foi nesses dias, de um outubro um tanto sonâmbulo, que o meu parceiro Raul Mariano me propôs a tarefa de desenvolver uma letra a partir do que já iniciara. Deixo ele mesmo contar:
 "Aos réus nasceu da ideia de compor um afrosamba apocalíptico, falando desse estado de coisas, desse mal-estar coletivo, que vivemos agora. A canção é tocada com o mizão afinado em ré, uma afinação muito usada por baluartes como Baden Powell. Iniciei essa letra tomado por um sentimento de impotência diante dos inúmeros episódios negativos que o Brasil tem vivido nos últimos dois anos no campo social, econômico, político. Com algumas estrofes e a melodia quase toda pronta, convidei o Balu [apelido de longa data deste que vos escreve] para "fazer a coisa crescer" e ele, como de praxe, concluiu a letra brilhantemente. Inclusive trazendo o refrão que ainda não havia." {continuar a ler}

Ocupai, ocupai
A nossa preocupação maior era evitar fazer uma letra muito "datada", no sentido de se apegar muito a fatos e nomes em baila no momento da criação, caminho tomado por muitas marchinhas. Tomar os políticos locais como foco era praticamente inevitável naquele momento. O imperativo "Ocupai" era uma forma de ir um pouco além, fazendo essa ligação com as mobilizações espalhadas pelo mundo que tinham como mote a ocupação dos espaços públicos. Ao mesmo tempo era a brincadeira da sonoridade coincidente como o inglês Ocupy. {continuar a ler}

O povo prometido

O mote estava ali e eu não poderia deixar de segui-lo. Era uma canção já redondinha, no formato A-A-B, repetido 3 vezes. Partindo de uma arguta apropriação do mote bíblico da terra prometida, a letra propunha uma visada de longo alcance sobre a História, partindo das cruzadas e caminhando rumo à colonização - ia até o "idílio dos tupinambás" - e sugeria uma leitura crítica que desembocaria numa outra promessa. Meu trabalho portanto era conduzir adiante esse esforço de síntese - o que é a canção senão síntese? Nesse sentido o historiador teve que se permitir muitas licenças poéticas, caso contrário iria ter que escrever um livro e não uma letra de música. Consegui fazer o foco ir se deslocando entre a História do Brasil e contextos mais amplos, ainda que definitivamente pesando mais pra cá. É certamente uma interpretação muito crua e altamente politizada, provavelmente panfletária, que apela sem constrangimento para a saída da revolução popular e lança mão de um sem número de imagens recorrentes na tradição das canções de protesto e do engajamento político na arte. Sem culpa nenhuma, diga-se de passagem. É meio uma mistura de discurso de Antônio Conselheiro em filme de Gláuber Rocha com trechos de Caio Prado Jr. discutidos na cantina da Fafich.{continuar a ler}

Cidade de Aço
Comecei a pensar em toda uma tradição do cancioneiro popular sobre migrantes, êxodo rural, a dureza da vida nas grandes metrópoles para quem saiu da sua terra em busca de dias melhores. Usei nas estrofes iniciais o esquema ABBA, ou seja, rimas interpoladas. e no refrão fui menos formalista, ainda que haja rimas intercaladas. Enfim, é um lance muito simples e direto, uma canção engajada bem básica. Quando o Raul me pediu um material para arriscarmos sair uma canção, remexi no baú e encontrei essa, que tinha sido feita por volta de 10 anos antes, na época. A gente nunca sabe quando essa semente vai brotar. Me impressionei logo pois não demorou muito pra ele me devolver uma primeira investida na feitura da canção. Ouvi, curti o balanço, mas achei que não era por ali. E aí pinta aquele momento chave em que descobrimos se a parceria funciona ou não, quando a gente precisa falar o que pensa para o parceiro e sentir que há uma confiança mútua, feita para encarar de peito aberto as dúvidas e desafios da criação. Expliquei melhor o que tinha imaginado musicalmente enquanto escrevia e o Raul captou muito bem, tanto que logo em seguida veio com o andamento e interpretação mais afinada ao que eu tinha pensado. {continuar a ler}

Inquietação
Se muita coisa não correu como eu queria neste ano de 2017, tenho muito o que celebrar nas minhas atividades musicais. Compus muito, com vários e novos parceiros. Isso propiciou uma diversificação de estilos, de processos e de trocas, enriquecendo enormemente minha atividade de criação. E tudo isso acompanhado de preciosas amizades, complementando a mútua aproximação artística. Para mim uma coisa anda junto da outra, parceria junto com amizade é fundamental. Uma dessas coisas que aprendi sendo fã de Clube da Esquina. Alias, poucos eu conheço que são tão fãs quanto esse meu jovem parceiro, Artur Araújo, cearense que trilhou a estrada pra Minas e já pode se considerar mineiro por adoção. Além de talentoso, ele é muito dedicado à carreira, e vejo ele cada vez mais seguindo os rumos que a música lhe propõe. Ele tem esse dinamismo, essa busca. {continuar a ler}

Por todo universo
Pra contar a história da letra dessa canção eu poderia começar de tantos pontos diferentes no tempo... [...] Eis que, no final de julho, o Pablo me telefona cheio de novidades, dentre elas a que motiva essa postagem, ou seja, que estava compondo uma canção com o Lô. Quase fiquei sem fala - quase, porque imediatamente perguntei se já tinha letra. Ele tinha começado, mas não estava propriamente satisfeito. Não hesitei, me prontificando a entrar na história e dar prosseguimento. Nos últimos tempos temos feito algumas canções assim, e pelo entendimento de tantos anos de parceria e amizade não há mistério nisso. Dessa vez, porém, um ingrediente a mais, e que ingrediente. Tremendamente generoso o Lô, nessa história toda. Quis trabalhar rápido, como se fosse preciso colocar logo a mão no troféu, não deixar escapar a oportunidade. Como pontos de partida, a gravação caseira, Pablo e Lô tocando a canção ainda sem letra, um A e um B e a partícula final lançada pelo Lô. E a parte da letra iniciada pelo Pablo, de que mantive até alguns versos inteiros (como Ávido, virei fiel/A cada sua aparição ), a ideia de usar proparoxítonas ( súbito, cálido, ávido, e depois lancei mais algumas, como órbita, átomos, partículas) e o tema romântico, contudo sem pieguice. Mas ainda faltava aquele conceito pra amarrar, sem o qual dificilmente eu consigo trabalhar. Foi pintando a temática sideral, muito forte na obra do Lô, e por ser a astronomia um assunto que curto desde a infância, enquanto o Pablo sempre teve uma ligação com astrologia.{continuar a ler}


Pra tocar um blue

Faz tempo que não escrevo para esta seção e hoje me veio direto num flash esse raio partido diretamente do início da década de 1990 (...) Mal sabia eu então o grande espaço que a música popular viria ocupar em meu futuro, mas já estava de algum modo fisgado pela ideia de ser mais que meramente um ouvinte. E com algum tempo de convivência no pátio do colégio, tinha feito amizade com um sujeito de longos cabelos, atitude rebelde, e, sobretudo, muito inteligente e talentoso. Enquanto eu era ali um iniciante, Pablo Castro já tinha anos de palco, banda, canções de sua própria lavra. A banda em questão, baseada em Juiz de Fora, se chamava Delirium Tremmens, era formada por ele, seu primo Aluísio Ribeiro (esquematicamente eles se dividiam entre as guitarras solo e base, mas tocavam outros instrumentos também), Messias Lott no baixo e Luciano Baptista na bateria. (...) Em meio a muitos acontecimentos que inflariam demais esse texto, o negócio é que a banda venceu um concorrido concurso promovido pelo Jornal do Brasil, em 1993, cujo prêmio era gravar uma demo no Rio de Janeiro. Nesse ínterim, o Pablo estava compondo um rock danado - bem acima da média, cá entre nós - com um riff bem elaborado, uma forma interessante, uma levada empolgante e energética, como os leitores poderão comprovar ouvindo e assistindo a performance do Delirium Tremmens.{continuar a ler}

Ao vencedor, as laranjas
Minha nova marchinha em parceria com Pablo Castro já devidamente inscrita para o nosso adorado concurso "Mestre Jonas", é obviamente "inspirada" por tudo isso daí, mas seu paraninfo, por dizer assim, é Machado de Assis, e o professor homenageado é Chico Buarque.[...] Ocorre que eu estava lendo Quincas Borba, de Machado, e ao pensar na consagrada frase usada por seu personagem título, "ao vencedor, as batatas", espécie de máxima que compõe sua sátira do darwinismo social, me ocorreu a adaptação à cor em voga no atual noticiário brasileiro. Ao mesmo tempo andava rondando meus ouvidos desde o final do ano passado a trilha de Calabar e enquanto eu tateava as rimas para laranja eu sentia subentendida alguma melodia sincopada que me lembrava vagamente "Boi voador não pode" [...] Dele mesmo ainda surrupiei, com todo respeito e reverência, o larápio rastaquera de "A foto da capa", e o título de um de seus livros, por sua vez emprestado de uma consagrada expressão da sabedoria popular. Em busca de uma atmosfera propositadamente antiquada, empreguei muitos vocábulos e fraseados em desuso que, se funcionam para criar a sensação retrógrada que remete ironicamente ao reacionarismo corrente, deixam a letra meio inacessível, com jeito pedante, o que paradoxalmente dificulta sua popularização, anseio próprio do espírito das marchinhas. {continuar a ler}

Veneno remédio
Na minha atividade de letrista eu sempre penso em temas que os compositores que admiro trataram e sobre os quais um dia quero versar. Um deles, claro, tinha que ser o futebol. Eu sou um fã confesso e absoluto do choro 1x0 de Pixinguinha e Benedito Lacerda, que depois veio a ser arrematado com uma letra insuperável do genial Nelson Angelo. Sou meramente o escalador subindo as encostas desses gigantes, mas eu queria cumprir a tarefa sendo minimamente diferente, e pensei assim de falar de um ângulo meio inusitado sobre o assunto: o de um torcedor atribulado vendo na tevê o jogo de seu time em péssimo desempenho desportivo. Parceria é sobretudo sintonia, e creio que em matéria de tom de humor eu e o Maurício Ribeiro compartilhamos um bocado. Exaltar clubes, jogadores, e até partidas, muita gente já fez. Falar do fracasso parecia um rumo diferente, e divertido, a tomar. Talvez um diabinho uniformizado, sentado no meu ombro esquerdo, com voz de Aldir Blanc e parentesco com José Trajano, tenha me soprado umas ideias: “bandeira de uma figa/ torresmo de barriga/traz lá mais outro Sonrisal”, provavelmente é coisa dele. {continuar a ler}

Samba em três 
Podemos nesse caso observar que "Samba em Três" é um "metatítulo" que simultaneamente dá identidade E analisa o objeto musical que embala, na medida que ressalta esse caractere distintivo de sua lavra, ou seja, de que se trata de um samba em compasso ternário, raro para o gênero, mas com antecedentes, ao feitio de Cravo e Canela, por exemplo. Sob o signo da síncope, estrofes muito econômicas e serelepes saltitavam em meus ouvidos. A sugestão de algo caribenho talvez tenha sido reforçada por esse recurso ao arquivo do repertório bituquiano, especialmente a versão gravada no disco Milton (1976) em terras da América do Norte. Ao mesmo tempo, a melodia sugeria versos curtos, com pouco "espaço" para digressões e especulações às quais às vezes me lanço. Senti que era preferível perseguir um estilo mais "telegráfico", livre e associativo, com frases soltas e ligadas pela temática, sem necessariamente apresentar uma sequência narrativa lógica.{continuar a ler}

À musa
A ideia de fazer uma letra para uma música dessas era encrenca - da boa! Às vezes a proposição acontece numa conversa e fica assim num limbo por um tempo, em "banho maria", como dizemos aqui. Mas não foi o caso! Benji logo me manda uma...  a belíssima "Folhas ao vento" (Leaves in the wind) que figurava em versão instrumental justamente no disco que viera lançar, Chorando sete cores. Como sempre, quando se inicia uma parceria nova, fico cheio de dedos e quero me entender, sobretudo quanto aos métodos e prazos, porque é importante um entendimento cristalino sobre essas coisas. Para mim é a base sem a qual não pode surgir o entrosamento necessário. Depois é tentar decifrar uma intenção, ouvindo a música e falando sobre ela com o parceiro. O Benji me deixou à vontade, mas eu estava era preocupado com a incumbência. Tanto que me esmerei uns meses até que, no final de maio, tinha uma primeira versão completa.   {continuar a ler}

Arembepe
Tenho a felicidade de ser premiado com melodias maravilhosas por parceiros que, cada qual com seu estilo, seu traço, conseguem aliar inspiração e esmero, tornando a minha vida relativamente fácil na hora de escrever a letra.O Artur é do Ceará - ainda que, como mineiro adotivo que se tornou deve compreender bastante bem o que nós dessa terra de montanhas sentimos diante das imensidões azuis - e a sugestão na levada, no sabor da melodia, na delicada cama harmônica na qual nossos ouvidos deitam como se numa rede, tudo me sugeriu um tema praieiro, caymmiano, e eu lembrei de uma viagem em família à terra onde nasceu a Clarita Gonzaga (que bateu essa foto minha com nossos filhos), e de algumas histórias que ela já me contara sobre esse point da hippice brasileira e internacional: Arembepe. {continuar a ler}

Às cegas
O título estava embutido no nome do arquivo MP3 que o Maurício Ribeiro, autor da música, me mandou. Um título assim, "às cegas" e "à seco", pode ser a fagulha para a criação, mas pode também bloquear tudo. A melodia tinha lirismo mas também era meio soturna. Como na anterior eu considerei que acertei a mão sem maiores indicações, resolvi ir em frente. Lancei mão de um recurso que tenho usado com alguma frequência, buscar algum texto previamente elaborado que não virou nada, do qual eu possa extrair alguma coisa. Encontrei então esse refugo intitulado "Soslaio", de onde pincei versos como "ferpa no assoalho", "ruga de uma velha", "pulga atrás da orelha", ou palavras como "caramujo" e o "soslaio" do título.O verso da velha acabou se tornando o ponto nevrálgico da escrita. "Às cegas" acabou sendo bastante literal, dentro da narrativa que fui construindo sobre o estado decadente da minha personagem. A música me remetia ainda às tristes baladas macartneyanas sobre separação e solidão do disco Revolver, For no one e Eleanor Rigby, e obviamente tracei um retrato da velhice como condição solitária e frágil.{continuar a ler}

Ao que já nasceu
Letra é imprevisível, já acertei tudo de primeira, em cinco, dez minutos, e já fiquei revendo o negócio por anos até a batida final no martelo. Dentre umas quatro primeiras que estávamos trabalhando, teve uma que eu resolvi deixar quieta e fazer por último. Era uma pequena joia e eu queria aguardar o momento certo, estar mais afinado na parceria para acertar a mão. Enfim, entre papos longos e curtos, mesclando o assunto de trabalho e o papo que é fundamental para que a gente vá se entendendo, falamos às vezes sobre filhos, Daniel na condição de "recém-papai", eu já tendo uma história bem comprida nessa de paternidade. Acabei me dando conta um dia que a singela melodia sem letra merecia ser uma celebração da vida, do nascimento, da própria criação e do nosso pequeno papel no teatro da existência. Quando eu acho o mote assim, costumo aproveitar essa chama acesa no instante mesmo, deixo espalhar o que pegar fogo mesmo e depois, se for preciso, aí vou apagar o incêndio. {continuar a ler}

Pau Brasil
A temática política sempre faz parte das minhas intenções na hora de fazer letras de canção, mesmo que não seja uma sugestão direta ou uma demanda explícita do parceiro que me manda a melodia. Lógico que isso não implicar em adotar uma forma de expressão panfletária, ideológica e manifesta. Mas a coisa não anda fácil no Brasil, temos convivido com tal intensidade de ocorrências absurdas em nosso cenário político que fica simplesmente impossível evitar essa tecla. Foi assim que nos idos de 2019 finalizei a letra dessa canção cuja música me foi mandada pelo parceiro Daniel Guimarães. Era um negócio que já puxava a contundência, uma coisa roqueira e até mesmo marcial, mas que ao mesmo tempo tinha uma segunda parte mais melodiosa que sugeria como que um comentário ou ponderação à primeira. Nesta mesma época, eu estava lendo as correspondências entre Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade, e pensando muito sobre a brasilidade e suas contradições. Ainda que tenha sido de outro Andrade, o Oswald, que tenha pintado a inspiração para o título e o mote geral da letra. {continuar a ler}

Santa Pirambeira
Mais um aniversário da terra natal. Belorizonte, Beagá, seja como for, é nossa. [...] Por uma feliz coincidência, meu grande parceiro Maurício Ribeiro fez uma "live" hoje direto da Espanha e tocou nossa mais recente parceira, "Santa Pirambeira", que nada mais é que um despretensioso sambinha cuja letra é uma homenagem a um bairro de Belo Horizonte, o Santo Antônio, o que mais gosto e onde morei a maior parte da minha vida, especialmente depois de adulto. Agora estou no bairro ao lado, mas é questão de metros. Ainda subo e desço várias de suas pirambeiras com frequência. [...] Queria muito fazer uma letra sobre esse pedaço da cidade, que fica na zona sul mas tem uma certa diversidade propiciada pela proximidade da Copasa e algumas repartições, escolas públicas, predinhos pequenos de condomínio barato, uma economia de bairro que ainda subsiste, casais de idosos persistentes em uma ou outra casa velha. O sambinha simpático, cheio de ginga e com a costumeira dose de variação melódica e formal do Maurício veio a calhar, me remetendo imediatamente a uma situação divertida, a imagem de uma mulher de salto alto descendo um morrão.{continuar a ler}

Deixa acontecer
Aproveitando o embalo vou fazer mais uma postagem no estilo "contando as letras". Mais uma das minhas parcerias com o Daniel Guimarães, feita totalmente à distância mas bem antes desse impositivo momento que infla indesejavelmente o apelo aos recursos digitais de comunicação. Foi uma das primeiras que fizemos. No intuito de compensar a falta do contato pessoal trocávamos longas mensagens através da rede. Enquanto ainda buscávamos um entrosamento que certamente veio com o tempo, eu procurava relatar com certa minúcia o que vinha à minha cabeça à medida que ia escrevendo. Tenho aqui algumas "anotações" que vou compartilhar para dar um pouco essa sensação de bastidor, de making of. Expressão que me veio a calhar aqui agora porque além de uma sugestão de que a princípio a música tinha sido a princípio sobre um personagem errante, e numa outra versão sobre uma tempestade, ela me soou desde sempre cinematográfica. {continuar a ler}

Valsa do Não-Lugar
Mais uma para essa coleção de relatos sobre a feitura das letras de canção que tenho feito pela vida. Essa é relativamente recente, composta salvo engano em 2018. Meu parceiro Pablo Castro me deu essa bela valsa e apenas um verso sugerido, "haverá um não lugar". Se o pano de fundo emocional era o amor perdido, a sugestão temática remetia ao universo das utopias. Era literalmente uma encomenda. Aconteceu de por volta dos dias em que recebi a gravação fui assistir a um show (não tenho certeza absoluta mas acho que foi de Luisa Lacerda e Giovanni Iasi, que aliás foi fino) na simpática Idea Casa de Cultura, teatrinho intimista numa casa tombada em que funciona na entrada uma pequena livraria. Pois ali me peguei a folhear, um pouco antes do espetáculo, História das terras e lugares lendários, erudita compilação do grande Umberto Eco, com textos comentados combinados a mapas e ilustrações belíssimas desse campo particular da invenção humana. Passeando entre Atlândida, Lemúria, Shangri-lá e o País da Cocanha, encontrei o mapa da mina, por assim dizer. Para mim funciona muito assim e depois que encontro o rumo já sei mais ou menos os caminhos a trilhar. {continuar a ler}

Supernova SG532
Recebi dele [Rafael Senra] a gravação com a melodia e um instrumental básico, exibindo já esse clima etéreo, essa inevitável sugestão do mote espacial, provisoriamente intitulada - por razões por demais óbvias - de "Tema Supertramp". De imediato, como ando fazendo, busquei algo previamente escrito que pudesse servir como estágio inicial do foguete. Encontrei um rascunho com o nome "Estratosférica". Tem sempre um misto de aventura e perigo ao brincarmos com as palavras maiores e ainda por cima proparoxítonas, pra fazer letras, ainda mais com uma proposta assim, em que a canção é o centro de gravidade mas existem longos braços instrumentais estendidos como uma galáxia sonora. Fiz um primeiro rascunho, sugerindo uma estrofe a mais, mas ela entrou em rota de colisão com um cinturão de asteroides além de Marte. Ficaram só seis versos para dar o recado!{continue a ler}

Fruto do trabalho
Essa tem uma história sinuosa, como o movimento da cobra. Começa que foi inspirada por um filme, Arábia, rodado aqui em Minas, produto daquela recente cena cinematográfica de Contagem, dentre os quais foi o que eu mais ouvi ser elogiado. É o retrato de uma fatia da história social do trabalho no Brasil contemporâneo. [...] Inspirado pelo que vi escrevi um poema, não faço tantos mas me arrisco [...] Mas quando o Dan começou a me enviar alguns temas de forte inspiração bituquiana, desfiando um rosário de influências afro-mineiras, eu me vi diante da sensação de que um deles encaixava perfeitamente com o poema. {continue a ler}

Machado elétrico
Mais uma das minhas parcerias com Daniel Guimarães. Essa foi a que mereceu mais revisões e reinvenções na letra. Quem se lança na tarefa de botar palavras na música que outra pessoa compôs tem que estar disposto à tarefa, que pode ser tanto um passeio de pedalinho quanto uma circunavegação do Cabo das Tormentas. No geral não será nem tão ameno nem tão dramático. {continue a ler}

Nova Arcádia
É portanto uma felicidade em dobro quando sai uma canção de um parceiro comigo, como acabou de acontecer com Nova arcádia, que fiz com Rafael Senra,  em seu disco O sereno da noite, ainda que "disco" hoje remeta sobretudo a um conceito que reúne canções num lançamento simultâneo, pois tornou-se cada vez mais raro e difícil lançar tal tipo de "objeto" em sua tradicional forma física. Aliás, é sobre isso que versará, entre outras coisas, a pesquisa de pós-doutorado que irei realizar a partir do meio do ano (assunto quiçá para outra postagem). 
Nova arcádia faz parte de uma primeira leva de parcerias nossas, que pelos meus registros começaram a tomar forma em 2017. Quem lê o blog portanto irá imediatamente perceber a distância que pode haver entre a composição e a gravação de uma canção, e olha que pode ser muito maior que isso. Mas a proposta aqui é falar de criação, então vamos lá. {continue a ler}
 
 





9 comentários:

  1. Obra-prima; apenas.

    ResponderExcluir
  2. Caramba pessoal! Sempre quis saber mais sobre essa canção. Ponto Oriental foi a primeira música que ouvi e me fisgou, no myspace do Pablo, há alguns anos. Essa letra já é incrível por si só. Depois de musicada então, ficou incrível. Parabéns procês!

    ResponderExcluir
  3. Só posso agradecer a escuta e leitura sensível de vocês, Paulim e Raul.

    ResponderExcluir
  4. saber a motivação da obra, seu caminho.. é quase como também estar criando. obrigado, Luiz.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grande Serginho, é mais um combustível pra todos nós que botamos a mão na massa da palavra.

      Excluir