Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

22 de setembro de 2012

Falando das afinidades entre os Beatles e o Clube da Esquina

Falando das afinidades entre os Beatles e o Clube da Esquina, como não lembrar dessa versão insuperável de Norwegian Wood (Lennon/McCartney). Gravada originalmente em 1975 (lado B do compacto que trazia no A Caso você queira saber), depois teve as vozes regravadas (nem precisava...) para figurar no LP Sol de Primavera do Beto Guedes. Em seu depoimento ao Museu Clube da Esquina, Milton assinala que leu num artigo do New York Times "(...) que foi a melhor interpretação de música dos Beatles de todos os tempos". Em minha tese de doutorado escrevi algumas linhas tratando do assunto, que reproduzo abaixo:

"Em sua apreciação de alguns discos do Clube da Esquina, Robert PALMER começa intitulando seu artigo “Leste brasileiro exporta pop influente para o mundo” [para ver, passe por aqui] . Além de situar Minas no “leste”, comete o equívoco de relatar que Belo Horizonte - sua capital e uma das maiores cidades brasileiras - começou como cidade mineradora! A escolha do artigo parece até temerária. No entanto, logo adiante o autor diz que além do minério, seu outro principal produto de exportação é “(...) um grupo único de artistas que têm tido um importante impacto no jazz e na música popular, não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na Europa”. O autor prossegue buscando uma caracterização da música produzida pelo grupo, tenta mapear influências e misturas, que vão do folclore africano, europeu e brasileiro ao jazz moderno e rock dos anos 60. Mas constata que não há um rótulo para classificá-la. Consegue identificar um trabalho coletivo, mapeando compositores e instrumentistas, mas ao mesmo tempo consegue ressaltar suas diferenças. Considera o álbum duplo Clube da Esquina (1972) como “manifesto” do grupo. Num momento marcante, assinala a versão de Norwegian Wood (Lennon / McCartney) como uma das mais impressionantes colaborações do Clube. Curioso: para ressaltar a originalidade dos músicos “mineiros”, PALMER escolhe o que considera como uma “remodelação radical” da canção dos Beatles, ícones do pop. Aliás, a versão “despopiza” a canção, no sentido de lhe imputar uma profundidade emocional e um panorama sonoro complexo que desautorizam seu consumo apressado. Por fim, ele sentencia: as distinções de gênero tratadas como algo dado para os norte-americanos, simplesmente não se aplicam ao caso, pois os músicos de Belo Horizonte (pois ele ignora os vínculos diversos dos músicos com o interior do Estado) “tornam as categorias irrelevantes”. (GARCIA, 2007)

15 de setembro de 2012

Da cartola de um mago

Acabo de ler a notícia [completa, aqui] do lançamento do CD duplo “Carta de amor”, resultado da gravação de um show, realizado em abril de 1981, em Munique, pelo trio formado por  Egberto Gismonti, o saxofonista norueguês Jan Garbarek e o baixista norte-americano Charlie Haden. As fitas com o registro estavam esquecidas nos arquivos e foram encontradas pelo produtor e criador do renomado selo alemão ECM, Manfred Eicher. Corri na estante para buscar e ouvir o CD Folk Songs, do disco lançado em 1981. Num tempo não tão distante assim, CDs importados que não eram raros, edições especias, sei lá mais o quê, eram muuuuuito caros e não podia comprá-los. O jeito era contar com o auxílio indispensável do sebo mais sensacional que já conheci, o saudoso Páginas Antigas. Sem ele não teria como ter constituído a modesta coleção de discos e livros que me acompanha pela vida e pela profissão. Foi lá mesmo que ouvi o disco, num sábado como o de hoje. Ele tem aquela atmosfera única, que nos envolve completamente de forma que, enquanto estamos no invólucro de seus sons, o resto do mundo simplesmente deixa de existir. Não por acaso, o trio, devido ao primeiro álbum que gravou, ficou conhecido como "Mágico". Gismonti para mim é assim, capaz de gerar aquele instante em que somos tomados de tal forma pelo encanto que ficamos mudos, somente ouvindo. Ouçamos:

Silence

Mágico
 

Palhaço Equilibrista
 

7 de setembro de 2012

Mais uma lista...

A rádio Eldorado FM, o Estadao.com e o jornal ‘O Estado de S. Paulo’ acabaram de realizar uma enquete aberta ao público, perguntando qual o melhor álbum brasileiro da história. Com mais de 25 mil votos de  computados, Ventura, da banda Los Hermanos, foi o vencedor, com 2.816 votos [veja o “Top 10” e uma breve entrevista com Marcelo Camelo aqui]. Os organizadores fizeram uma lista prévia com 30 álbuns [aqui] e depois os internautas escolheram o seu preferido dentro da mesma. Mesmo essa listagem prévia traz vários problemas e poderia ter escrito sobre eles. Mas agora não compensa. Essas listas feitas com enquetes são cheias de falhas, mas uma boa parte diminuiria com uma simples alteração no enunciado: os "x" discos brasileiros preferidos pelos leitores desse jornal, ou pelos internautas, em todos os tempos. Acho que essas enquetes não promovem uma apreciação do melhor, e sim medem preferência, de uma forma totalmente impossível de se qualificar. Enquanto eu voto pensando numa série de critérios, outro está votando pensando noutros (não preciso entrar no mérito desses critérios, apenas indico que não tem como garantir que todos estejam votando da mesma forma). Dessa forma o resultado é tolo, pois transforma numa simples soma coisas de ordem diferente. Ou seja, no fundo, não quer dizer muita coisa. Mas o pesquisador pode ser instigado justamente por isso, para ver o que consegue extrair.
Conseguiram colocar 11 discos entre os 10+. Se fizessem como é lógico, com um empate "subtraindo" a posição seguinte, Tropicália ficaria em 10° e o Roberto Carlos fora. Isso é muito suspeito, considerando as relações interessadas entre as rádios e as gravadoras. Não há, na lista toda um único disco independente, mesmo que haja artistas que possam ser considerados "alternativos". Qualquer lista dessa é, também, um produto de mercado.
O texto de avaliação do 1° colocado incorre em inconsistências significativas. Diz ao final que "(...) O disco foi bem recebido pela crítica, mas teve pouca repercussão popular. Com Ventura, a banda conquistou amplo prestígio, virou fenômeno pop e viu sua legião de fãs multiplicar em larga escala.". Não dá pra entender, certo? O autor faz no fundo uma avaliação anacrônica, atribuindo à repercussão do disco fatos bem posteriores de seu lançamento. O que ele deveria ter constatado, basicamente, é que Ventura está em primeiro na enquente porque a geração que tende a votar nele tem um convívio muito cotidiano e familiarizado a com internet. Não é, nem de longe, o melhor, e se considerarmos o peso cultural não pode ser equiparado ao Chega de Saudade, por exemplo, que nem entre os 10 ficou. O fator geracional pesa demais nessa listagem, inclusive na prévia. Enquanto ele é o único dos anos 2000, temos um disco dos Titãs e outro do Legião Urbana na década de 1980, e todos os outros são da década de 1970. Será que antes não foi gravado nada melhor? Não é por acaso. A sonoridade dos 1970 aparece hoje como referência forte em muitas bandas e compositores jovens, refletindo também nas preferências de seus ouvintes. Curioso pois a apreciação feita na própria época é muito marcada por expressões como esgotamento, crise criativa, impasse, etc. Vi muito esse tipo de relato na pesquisa de mestrado. Naquele momento, era grande a percepção que contrastava a produção com a que marcara a década anterior, já no rastro da Bossa Nova, com a emergência da MPB e depois o Tropicalismo. Fiz toda uma discussão mostrando como a crítica dos 1970 queria avaliar a produção da época com a medida do passado, esperando um novo "movimento". Poderia continuar "espremendo", mas em resumo, independente de achar muito interessante o Clube da Esquina em segundo, considero essa enquete aí extremamente enviesada e seu maior valor é provocar reflexões que possam ir além de suas fraquezas.