Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

21 de abril de 2019

No estúdio com Thiakov - Yes, it is

Novo texto da coluna No estúdio com Thiakov. Degustem!


Produzindo os Beatles
Yes it is (Lennon/McCartney)
Passei alguns dias um pouco angustiado por ter ouvido os saudosos Anthology e outras versões inacabadas da música "Yes it is" sem muito entender porque a inicial agressividade da banda como um todo (que sempre começava a vasculhar e pré-lapidar as canções de uma maneira muito root, tosca, quase infantil) havia parcialmente se dissolvido. Peraí, vou dar uma digredida leve aqui: depois de me aprofundar por anos nas gravações bootleg concluí que eles tocam todas, todas as músicas iguais antes de tocarem diferentemente...kkkk
Voltando ao Yes it is, o que foi acontecendo com essa balada que foi classificada pelo próprio autor como um auto-plágio de This Boy que não deu muito certo?
Cheguei ao Segóvia. Isso mesmo, o guitarrista flamenco espanhol. E ao Ramirez, o luthier que fez o violão em homenagem ao guitarrista.
Depois de lutar com meus fones de ouvido, queimar uma brenfa e ficar refletindo, tive um dejavan e wow! John Lennon encosta seu Gibson folk de aço para o lado e pega um (sabe-se lá como) RAMIREZ pra tocar com a pontinha dos dedos a base singela do que viria a se tornar a bela canção. O timbre de nylon tocado com as mãos desnudas trouxe um lirismo doce e suave que tanto me emocionava sem que eu soubesse o porquê, e algum anjo, creio que o anjo George Martin, deve tê-lo instruído a tocar alguns acordes com sétima maior e quartinhas, amaciando mais ainda o terreno.
Cheguei à pedra filosofal desta canção. Claro que as duas guitarras do Harrison tocadas com um pedal de volume (que faz a nota não ter ataque e soar apenas ao fim) complementam e muito o astral suave da balada mas sem dúvida "Yes it is" para mim simboliza o momento exato de quebra estética do reino do yeah-yeah-yeah para o reino do bigode-LSD. A partir daí, como descreveu o engenheiro de som dos Beatles Geoff Emerick, a voz de Lennon se tornou cada vez mais e mais onírica, sonâmbula, nebulosa...e nunca mais voltou até quem sabe com uma dose da "shes so heavy".




Obs: não posso deixar de mencionar um aspecto energético desta música. Sempre senti que tinha, como outras, o astral do pôr-do-sol, a energia prânica do lusco-fusco. Acertei. Descobri que a gravaram entre 17 e 19h.

Obs 2: nem falei sobre os vocais.... mas nem precisa falar muito a não ser o prêmio de honra ao mérito para George Harrison devido aos saltos gigantes na melodia. Ponto pra ele.


Por Thiakov

6 de abril de 2019

No estúdio com Thiakov - She Loves You

Inaugurando hoje essa coluna (bissexta, eventual, na periodicidade que pintar) "No estúdio com Thiakov". Artista de múltiplos talentos, cantautor, instrumentista, produtor, poeta, agitador cultural - saca o currículo e o som dele - e eis aí um cara que está literalmente em casa dentro do estúdio. Compartilhamos o amor pelos Beatles e também já aprontamos algumas parcerias musicais que por enquanto estão no casulo, mas qualquer hora podem bater asas por aí.


Produzindo os Beatles
She Loves You (Lennoy/McCartney)

Vieram me dizer que os Beatles, quando em vias de yeah-yeah-yeah, eram simplórios, ingênuos, prosélitos. Antes de sequer mencionar a turnê alemã em hamburgo pós-guerra, nas ruas mais barra-pesadas que tinha por lá, já refutei dizendo, eram velhos, letrados, iniciados, não duvide que já havia suficiente refinamento estético que tornou-se ainda mais puro com o tempo e os LSDs. A minha primeira fonte argumentativa foi "She loves you" e como essa música já deixava abertas as portas do futuro harmônico-quântico do grupo. Então, vamos lá.
She loves you começa com o refrão. Por si só já é um atrevimento. Um susto de bateria no surdo do Ringo e refrão. O refrão é cantado todo em uníssono exceto a última nota (yeah!) que vem com uma abertura na sexta maior, algo bem inédito numa harmonia pop da época, não nos gospels americanos, mas certamente no pop-rock britânico. Saindo dele ouvimos um riff blues-rock com terça menor e quarta aumentada de passagem, deixando claro que não era pra ser tão bonitinho assim.
Quando John e Paul cantam "she said she loves you" - toda a música é interpretada em um uníssono que se quebra por ora em duetos contrapontísticos - George ataca a melodia já conhecida do "yeah yeah yeah", desta vez na guitarra, em oitavas, duas vezes seguidas e então vem um acorde surpresa, o quarto grau menor, triste, de empréstimo da harmonia homônima, precedendo a reintrusão do riff blues do Harrison.
O refrão só torna a ocorrer quando já se ouviu duas estrofes e o desdobramento final se dá com um coda altivo, repetindo a última frase "with a love like that", parando no fatídico quarto grau menor afim de seguir rumo à explosão final com uma fermata pré-estabelecida e um apogeu na palavra "Glad!" e por fim "yeah yeah yeah" com guitarra solo, vocais e sextas maiores. Número um nas paradas.

Um yeah inconteste. Pré-lacração, pós-elvis.
obs: logo vou fazer um textão sobre a sessão de gravação dessa mesma música, sessão essa que foi o divisor de águas dos estúdios abbey road e da relação do quarteto com a fama.

Por Thiakov 




3 de abril de 2019

Entre cordas, paralelos e meridianos: Toninho Horta e Pat Metheny


Como de hábito, excelente análise do meu parceiro Pablo Castro das relações geopolíticas, simbólicas e materiais que perpassam o intercâmbio entre os músicos populares. Através desse caso exemplar e um inevitável paralelo, enseja a reflexão sobre o que é ser mineiro e brasileiro no mundo, e as respostas que a música popular encontra para esta pergunta candente.



O caso da influência mineira na música de Pat Metheny é ilustrativo da nossa condição de periferia-tesouro: o guitarrista americano ouviu nos discos de Milton Nascimento o talento incrível de Toninho Horta na guitarra. Bebeu na fonte, ouviu tudo que pôde, tirou as harmonias, veio ao Brasil, conheceu Toninho, fez uma participação no segundo disco do brasileiro. Absorveu o timbre, o estilo, a capacidade de mesclar, na improvisação, frases junto com voicings, visitou a esquina do Clube da Esquina, trouxe a banda toda, inclusive o incrível tecladista Lyle Mays. Chegou a dizer que gravaria um disco com Toninho, mas a história morreu.

O artista americano é mais virtuoso, com recursos atléticos, e mais eclético, e sua obra abraça um leque ampliado de estilizações. Mas a influência da Toninho está clara em todos os seus principais discos posteriores ao seu encontro com o mestre brasileiro, a começar pelo timbre de guitarra, e pelos toques harmônicos que aprendeu com Toninho. Embora ele tenha citado Toninho em algumas entrevistas, a impressão que se tem é que ele cita menos do que devia. Lembra um pouco a relação de Stan Getz com João Gilberto e Tom Jobim ...

Pat se tornou um dos artistas de música instrumental mais bem sucedidos de todos os tempos, seus shows são caros e concorridos, e ele goza de um prestígio internacional raro. Ele tem o mérito de ter feito música instrumental que flertava com o pop mas não perdia seu conteúdo harmônico melódico, e onde a exuberância de sua improvisação se dava de maneira natural. Trata-se de uma música 'oceânica', que remete ao território inaugurado por Toninho Horta e os mineiros do Clube da Esquina.




Toninho também se beneficiou dessa relação, conseguiu abrir um caminho no mercado internacional , iniciou uma série de discos elegantes na gravadora Verve, e hoje é condecorado em Berkley e roda o mundo com grande frequência, embora prefira morar no Brasil, para a nossa felicidade.

Entretanto, no mundo hierárquico da música instrumental, inclusive entre a maior parte dos instrumentistas brasileiros, fica a impressão de que Pat é maior que Toninho. Evidente que não concordo com isso não apenas pela precedência do brasileiro, mas porque sua composição me parece bem mais consistente, brilhante , incisiva , do que a do americano. As composições de Toninho estão repletas de autoralidade e novidade, as de Pat, nem tanto. É só comparar disco a disco a qualidade das composições, pra mim fica patente que o Toninho é mais compositor.

Por outro lado, os discos de Toninho tem menos variedade estilística, enquanto os de Pat tem mais abertura a estilos variados. A música americana sempre foi muito mais interessada em "impressionar", no sentido de afiar uma performance e uma sonoridade que não deixe dúvidas e normalmente não deixa muito espaço para o devaneio. Já a música brasileira é menos direta, menos impositiva, mais reflexiva, e portanto menos formatada para o mercado. Porém, me parece mais frutífera a longo prazo. Não me entendam mal , Pat Metheny é um monstro, um grande artista, porém suspeito que alguns dos seus discos envelhecerão mais rapidamente enquanto os de Toninho permanecerão pertinentes por muitos e muitos anos.
Por Pablo Castro