Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

23 de junho de 2016

Gerente do mafuá?

É difícil fazer crítica cultural em tempos tão espinhosos. É preciso ter ferramentas analíticas adequadas e disposição para encarar um patrulhamento terrível, que atualmente tem vestido o manto da dita "apropriação cultural". Daí vou compartilhar esse exemplo inusitado, pouco usual, da atriz branca de séries e alguns filmes hollywoodianos que foi criticada nos Estados Unidos porque citou a letra de um rap de 1992 "Baby got back" - cuja recepção preconizava a valorização de traços corporais das negras - com a finalidade (narcisista, diga-se de passagem) de celebrar seu próprio corpo [aqui a matéria completa]. O que realmente me interessou foi a declaração do rapper Sir Mix-a-lot, autor da canção: "Escrevi essa canção não sobre uma batalha entre raças (...) eu queria que essas grandes revistas se abrissem e dissessem 'espere um pouco, essa pode não ser a única [forma] de beleza". Várias coisas a pensar, mas sobretudo ressalte-se a fluidez da música popular em circular em diferentes meios sociais, adquirir sentido para indivíduos de perfis variados, ser usada para manifestas opiniões e modificar a percepção social a respeito de um tema, propor mudanças de costume e comportamento.
É certamente necessário tomar qualquer objeto de análise na sua devida complexidade. A música popular, seja no que constitui sua confecção ou a partir do momento em que transita por diferentes meios, grupos sociais e temporalidades, pode até mesmo ser relida de forma incongruente com a que seus próprios autores a imaginaram. Justamente, li certa vez um artigo que trata dos diferentes usos de Imagine, de John Lennon, mencionando inclusive uma convenção do Partido Conservador britânico, no tempo da Tatcher, tocando a canção no início do evento. Um trabalho muito consistente a respeito dessas diferentes apropriações é o de
Louise MEINTJES - Paul Simon’s Graceland [álbum completo, aqui], South Africa, and the mediation of musical meaning. in: Ethnomusicology. Illinois: Illinois University Press, winter 1990, pp. 37-73. Obviamente as diferentes disputas em torno dessa interpretações envolvem relações de poder, como muito bem indica o genial Baião de Lacan de Guinga e Aldir.

"Eu fui pra Limoeiro e encontrei o Paul Simon lá
Tentando se proclamar
Gerente do mafuá"




19 de junho de 2016

A origem de classe na música popular não é o seu ponto final

Decidi escrever esse texto, retomando um tema que recentemente esteve em pauta desde o final de maio de 2016 em função do hediondo estupro coletivo que ocupou as atenções e rendeu muitos debates internéticos, embora como de costume não tenha se desdobrado em nenhuma medida que ultrapasse a dimensão tópica do caso. Surgiu então um debate em torno do que consistiria a chamada "cultura do estupro" e inevitavelmente, pela centralidade que ocupa em nossa vida cultural, de como a música popular participaria dela. Nesse debate era inevitável que o funk, com suas letras e coreografias que aludem explicitamente ao sexo, com conteúdo sexista e uma recorrente objetificação dos corpos, captasse boa parte das atenções. Foi especialmente ressaltado, num oportuníssimo post de facebook da cantora, instrumentista e compositora Juliana Perdigão, feito com a mesma contundência consequente que imprime à sua música, o envolvimento direto de crianças nas produções de funk*. Mas o que me chamou mesmo a atenção foram comentários comparando o teor dessas letras (muito pouco, efetivamente, se fala sobre a música ou mesmo as coreografias) com as de outros tempos e gêneros, como se todas incorrem no mesmo tipo de pecado. Sou obrigado a discordar. Colocar Noel Rosa e Vinícius de Moraes, Beatles, Racionais, entre outros, incluir insinuações e duplos sentidos do tempo do onça, qualquer metáfora do ato sexual em si, sem qualquer avaliação de teor, sem qualquer conhecimento efetivo do contexto de sua produção e recepção, é algo que nenhum historiador sério pode aceitar. Aliás, fazer isso é opção pela ignorância e isso não nos levará mais perto de enfrentar a cultura do estupro. É também uma violência simbólica, contra a própria história da música popular.


Talvez estejamos num momento em que a sensualidade tornou-se tão explicita que a sutileza de letras como a de Morena Tropicana (Alceu Valença) e tantas outras não enseja uma recepção que aciona esses códigos hoje. Me parece que atualmente certos gêneros (pode ser rock, funk, sertanejo universitário, etc.) interpelam a sexualidade do ouvinte através de menções diretas e explícitas - não usam nem mesmo os duplos sentidos infames como faziam os antigos axés e pagodes. E nesse sentido eu considero um conceito formado e não um preconceito, inclusive sobre a dimensão de classe dessas expressões. O sertanejo universitário, por exemplo, tem entre seus performers gente de origem de classe média e até alta. Me incomoda sobremaneira ver pesquisadores, professores, gente com formação, cair num relativismo supostamente includente que se escusa de fazer qualquer crítica consequente. Sobre isso já me expressei anteriormente comentando um texto escrito pelo Hermano Vianna:
É muito cômodo um cara que tem acesso, que recebeu uma educação superior de primeira, relativizar tudo, enquanto essa massa emergente também poderia se beneficiar muito do contato com outras expressões que não são de seu universo próximo, digamos assim, e que não precisam ser impostas, mas sim oferecidas. Sim, o fã "inculto" não compara Ai, se eu te pego com Jobim, até porque provavelmente ouviu Jobim no máximo na trilha de novela, e não tem a oportunidade efetiva de conhecer sua obra. E sim, isso o empobrece como ser humano, claro. Penso sempre que uma posição que preconiza a democratização e o diálogo cultural precisa ir além do mero reconhecimento, do identificado, e propor que as pessoas possam entrar em contato com o que é diferente delas, o que pode transformá-las. [completo, aqui]

O sertanejo universitário em sua forma atual não vem de baixo. Professores universitários celebram o funk. Pagodeiros fazem show no Palácio das Artes cobrando ingresso de mil reais. João da Baiana ganhou um pandeiro de presente com dedicatória de um senador da República, que mostrava aos policiais para evitar ser preso. Enfim, em se tratando de música popular no Brasil a coisa se mistura e se rearranja de formas imprevisíveis, algumas vezes muito bonitas e outras horrorosas. Se há um viés de classe na rejeição ao funk, não sei bem onde ele funciona. Não é no Chalezinho e outras boates mauricinhas de BH, por exemplo. E quanto vcs acham que amealham os grandes nomes do funk em seus shows, hein? A afirmação "funk é cultura" é tão vazia quanto "machismo é cultura", por exemplo, porque afinal já sabemos perfeitamente que todo o jogo de representações e embate simbólico se dá no âmbito da cultura. A pergunta, afinal, é o que representa o funk culturalmente? Enfim, a origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Sendo assim, não podemos fugir à responsabilidade de fazer uma análise ética e estética de qualquer gênero que seja, ou, no fundo, de qualquer expressão. Sem parâmetro, caímos no vazio, ou , mais ainda, deixamos o MERCADO falando sozinho. Que tal?

Na verdade é muito mais polêmico atualmente ressaltar, sem paternalismo, o grau profundo de objetificação da mulher e do homem, a ausência de sutileza para se tratar do sexo e etc. (como já disse, pode ser no funk, no sertanejo universitário, no rock, não vem ao caso o gênero). E mais, sem nove horas, vamos ser bem francos, alguém, na história desse mundo, estuprou ao som de Vinícius de Moraes? ???? Obviamente o funk não é o centro do qual emana a misoginia, a violência, a pedofilia. Mas perder de vista o nível de articulação dele com essas coisas, na prática, me parece um grande equívoco. Não se trata também de um raciocínio 'adorniano' de superior x inferior, mas ao mesmo tempo sim é socialmente válido, relevante, reconhecer o bem que o apuro estético faz ao nosso corpo e nossa alma. O custo desse relativismo é muito alto, porque no fim vamos cair na política, não é? Queremos para nós e para os outros o que o ser humano tem de melhor ou não? Queremos preservar direitos ou não? Isso depende de uma defesa de valores e no limite é preciso dizer sim o que é ruim. Fazemos isso em casa e na sala de aula, todo santo dia. Se formos nós, professores, gente que teve por um ou outro caminho na vida acesso às coisas feitas com apuro, com alguma sutileza, se formos nós verdadeiros Pilatos que lavam as mãos diante da exposição das novas gerações a tanta coisa ruim (90% do funk incluído, 100% do sertanejo universitário, etc...) então fudeu. Pra mim não tem nada mais preconceituoso do que esse relativismo que no limite permite sem contraponto que o mercado dite as regras do que serão as expressões culturais mais penetrantes no dia a dia das crianças. 

A barbárie tem um antídoto, chama-se civilização - obviamente a melhor civilização comporta um debate intenso sobre como ela deva ser. O que muita gente não entende é que estabelecer parâmetros consensuais e razoáveis para exercemos todos a liberdade é a própria condição do exercício da liberdade em sociedade. Tudo que estamos vivendo hj tem a ver com essa dificuldade, é a exacerbação do individualismo sem freio que não aceita reconhecer qq limite onde quer que seja. Estamos em 2016, não em 1930 - mas parece que queremos regredir até sei lá quando. O relativismo que referenda um discurso qualquer sem verificar suas consequências práticas é intelectualmente irresponsável. 


*Links: normalmente eu incorporo o player na postagem mas nesse caso eu vou me poupar e também evitar repercutir uma coisa tão degradante. Mas se alguém tiver alguma dúvida da gravidade do assunto, basta clicar e assistir esses ou dezenas de outros:


16 de junho de 2016

A crise, a crítica e a onda fofa


Há tempos se fala, entre os criadores e estudiosos no mais amplo aspecto do campo artístico/cultural, na carência crônica em matéria de crítica de alcance público. Chegamos a ver, inclusive, artigos que tratam justamente disso. Recentemente, foi muito saudado como exemplo de crítica um texto de Lorenzo Mammi, "A era do disco" [completo, aqui]. Parte de seu impacto, na verdade, talvez se deva mais a essa carência, uma vez que sua tese central, de que o LP é uma forma de arte, já estava enunciada há mais de 50 anos. Eu mesmo, quando escrevi minha dissertação, fiz a análise de Clube da Esquina (álbum duplo, 1972) na esteira do que já havia sido escrito sobre discos como Tropicália e Sgt. Pepper's (aliás, o incontornável objeto sim-identificado para tratar do assunto, como o próprio Mammi reconhece) repetindo, e eventualmente acrescentando alguma coisa, em relação a essa perspectiva. 

O exercício da crítica em tempos atuais tornou-se por demais dificultoso, e, salvo honrosas exceções, acaba por depender também de uma figura que talvez não tenha paralelo na maior parte das cenas musicais pelo mundo afora, que é o crítico-compositor. Temos provavelmente o privilégio de contar com figuras como Caetano Veloso, Luiz Tatit e José Miguel Wisnik exercendo esse papel. No entanto, para uns mais e outros menos, esse lugar não deixa de estabelecer um certo nível de tensão entre sua atuação entre pares e a tarefa de falar do trabalho deles. As leituras mais argutas, as análises mais profundas, o comentário mais generoso ou a opinião mais aguda, todos ficam à mercê de algum incômodo que possam vir a causar.

Os meios massivos, por outro lado, pelo alto grau de comprometimento com engrenagens comerciais, não propiciam via de regra um espaço profissional para o exercício independente da crítica, por parte de jornalistas ou profissionais de formação diversa com domínio e experiência para exercer efetivamente a função de críticos. Formam-se se assim consensos fáceis e um ambiente de tapinha nas costas, embebido em altas doses de correção política.

Isso dito, acho digno de nota (e também tremendamente arriscado) que meu parceiro Pablo Castro  venha dedicando parte de seu tempo à tarefa da crítica, com frutos que é possível conferir aqui mesmo no blog em diversas postagens, e especialmente na lista "As 30 + geniais do Clube da Esquina". Por isso pensei ser oportuno republicar aqui dois textos dele bastante exemplares em relação ao assunto da postagem de hoje.   

Por Pablo Castro: 
Sobre a recepção da crítica
O que mais me encuca é a atitude defendida por vários artistas, segundo a qual a crítica só é válida se for positiva, caso contrário constitui uma espécie de traição classista aos companheiros que vivem a vida difícil de artista. Essa posição implica várias problemáticas e contradições inerentes à própria vida de artista, e tapa o sol com a peneira em mais de um aspecto. Por um lado, uma arte sem crítica é uma arte que já perdeu qualquer elo com o próprio conceito de arte ; em segundo lugar, enaltecer o espírito de companheirismo entre artistas é importante, mas negar que todos os artistas atuam em alguma forma de mercado (como de resto todos os indivíduos de uma sociedade capitalista) e nesse sentido estão competindo, tanto pelo público, quanto pelo prestígio, quanto pelas aprovações em editais, é pura hipocrisia. Isso não significa que qualquer crítica ou qualquer forma de crítica seja validada a priori, mas o oposto disso também deve valer, qual seja, que a possibilidade de crítica , ainda que sob a forma de galhofa, é vital para o desenvolvimento de qualquer campo artístico, e tanto melhor se essa crítica for pública do que escamoteada, porque na arena pública ela pode ser debatida, em tese.

Sobre a 'onda fofa' da nova MPB
No contexto , fazer crítica musical enquanto o sistema político está em plena implosão pode parecer pueril, despropositado e inconveniente, sobretudo quando o enunciador da crítica é ele também um músico.
Mas ainda assim vou falar: acho essa onda fofa no que se chama de nova MPB um porre, e é a expressão maior da bolha em que se tornou esse recorte super localizado que pretende alçar uma amplitude que a MPB já teve mas não tem mais, não por culpa dela, mas por efeito da sabotagem internacional e corporativa que lhe foi feita sistematicamente desde 1985, pra marcar uma data.
Adoro a delicadeza, eu mesmo me esmero em fazer coisas delicadas, mas esse hedonismo em redomas com perfume é a antítese de tudo que realmente se fez perene na produção da moderna canção brasileira : além da ousadia formal, tanto na música quanto na letra, quanto nos seus aspectos de expansão, arranjo, interpretação, gravação, fonografia, etc, a MPB sempre tensionou as questões sociais e culturais, regionais e nacionais, políticas e antropológicas, de uma forma brilhante, para agora se restringir a um paraíso artificial e estéril, asséptico e bunda mole de um romantismo burguês que não leva a lugar nenhum.
É preciso ir além da adequação letra e música, da inteligência dos efeitos de produção sonora, dos timbres modernos, pra fazer jus à moderna tradição do maior cancioneiro do planeta, sobretudo num momento histórico surreal que estamos vivendo.
É preferível ousar e exagerar do que se conformar com uma felicidade de plástico enlatada para consumo gourmet.