Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

11 de agosto de 2020

Com o prato e a faca na mão: a ga(r)fe da Rolling Stone

 Após a apresentação ao vivo pela internet (vulgo "live") de Caetano Veloso e filhos na última sexta, a edição brasileira da revista Rolling Stone cometeu essa tremenda ga(r)fe:


Esse pequeno destaque se presta a uma análise que poderia até tomar o tamanho de um artigo. Como tantas vezes aqui no blog, o comentário oportuno, de ocasião, no calor do momento, tem sobretudo o objetivo de mostrar a relevância e capacidade de intervenção da história cultural e dos estudos sobre o patrimônio musical popular, sobretudo no contexto brasileiro. 

Constatar o desconhecimento desse patrimônio e da história da música popular no Brasil, por parte do autor da notinha, é imediato. Trata-se de alguém com nenhum repertório, nenhum mísero átomo de conhecimento sobre a tradição do samba-de-roda, seja no Recôncavo Baiano - onde fica Santo Amaro da Purificação, terra da família Veloso - seja do samba em geral, uma vez que esse "recurso" seguiu sendo usado em terras cariocas "desde que o samba é samba". Desconhece ainda que esta forma de se reapropriar de objetos do dia a dia para fazer música é recorrente desde tempos imemoriais. E finalmente, que a marca do improviso revela um tanto sobre a criatividade popular e as formas de desdobrar as evidências do precário, do provisório. Tensões sociais que as classes pobres desvelam e enfrentam nas táticas improváveis e soluções imprevistas que nascem da força do improviso. Nada há de inusitado, ou cômico, nem faltou instrumento e muito menos a habilidade de percussionista de Moreno poderia ser assim desconectada de sua aproximação orgânica com tal tradição, muito menos massacrada pelo clichê roto proferido aos borbotões por certo apresentador de programa televisivo. Uma resposta que Caetano já deixou dada há décadas para a Rolling Stone, eco da explosão do tropicalismo: "Vocês não estão entendendo nada, absolutamente nada!”


Lamentável que esteja se perdendo entre os que tem espaço em mídias (sejam digitais ou não) a capacidade de reconhecer seu próprio desconhecimento e pesquisar para informar  e formar melhor seus leitores, caindo facilmente nas armadilhas espetaculares de um tempo "homogêneo e vazio" (já dizia Benjamin, aliás um dos filósofos que mais bem tratou da tradição sem reificá-la, a meu ver), realçando que uma cultura desmemoriada exacerba a predileção pela barbárie. Sem História não temos perspectiva sobre quem fomos, somos, e para onde vamos. E para isso não se pode deixar tudo ao sabor do mercado, é preciso dedicar esforço e investimento públicos, é preciso reconhecer a centralidade da Cultura na construção de uma sociedade plural e justa. 

Daí a importância de manter registros preservados e difundir fontes para apreciação e conhecimento de feitos culturais como o "prato e faca". Em meio às objeções lançadas por gente que conhece do riscado vemos menções a Dona Edith do Prato, baiana de Santo Amaro que deixou belos registros dessa arte em disco, ou João da Baiana, um dos artífices maiores do samba brasileiro desde as rodas e terreiros do Rio de Janeiro. Em disco, em filme, em objetos, depoimentos, documentos, nossa produção cultural merece todo cuidado. Louve-se, por exemplo, o trabalho do MIS do Rio de Janeiro - que começou por João da Baiana sua coleção de "Depoimentos para a posteridade" e incorporou prato que ele tocava em seu acervo de objetos [aqui], as iniciativas da família Veloso - entre tantas gravar com Dona Edith [aqui], ou do compositor francês Pierre Barouh que entre outras contribuições dirigiu o belo documentário Saravah (1972). 

 

Eis a motivação central por trás da maioria dos projetos de pesquisa e trabalhos que conduzo na UFMG, atualmente reforçado por um esforço conjunto que se materializa no Grupo de Estudo SOMMUS (Som e Museologia), junto com estudantes de graduação e pós-graduação. Termos que reivindicar importância para estas coisas com tanto esforço é, em si, sintomático, porém cabe também aos pesquisadores participar do trabalho de superar essa ga(r)fe. 


9 de agosto de 2020

AO QUE JÁ NASCEU

Cada parceiro é uma conversa, cada parceria nova outra janela aberta. Certo dia eu tive uma grata surpresa de receber uma mensagem pela rede social. Era um moço lá do Rio, talentoso compositor, que eu não conhecia. Se apresentou, começamos a trocar uma ideia, me falou que tinha ouvido as canções em que eu fizera letra para músicas do Pablo Castro, a conversa foi fluindo, me mandou links para eu conferir o trabalho dele - que eu gostei de cara! Qualquer reserva mútua inicial foi sendo abandonada, e aí recebi com gosto o convite para letrar umas melodias - vencendo inclusive minha relutância com o trabalho exclusivamente por meios digitais. Desafio extra, tudo assim à distância, com mensagens trocadas pela rede social. Mas em nome da canção, da boa música, da amizade em torno disso e outros valores importantes, vale o esforço. Fomos e vamos fazendo e refazendo, como manda o figurino da ourivesaria da música popular brasileira. Letra é imprevisível, já acertei tudo de primeira, em cinco, dez minutos, e já fiquei revendo o negócio por anos até a batida final no martelo. Dentre umas quatro primeiras que estávamos trabalhando, teve uma que eu resolvi deixar quieta e fazer por último. Era uma pequena joia e eu queria aguardar o momento certo, estar mais afinado na parceria para acertar a mão. Enfim, entre papos longos e curtos, mesclando o assunto de trabalho e o papo que é fundamental para que a gente vá se entendendo, falamos às vezes sobre filhos, Daniel na condição de "recém-papai", eu já tendo uma história bem comprida nessa de paternidade. Acabei me dando conta um dia que a singela melodia sem letra merecia ser u
ma celebração da vida, do nascimento, da própria criação e do nosso pequeno papel no teatro da existência. Quando eu acho o mote assim, costumo aproveitar essa chama acesa no instante mesmo, deixo espalhar o que pegar fogo mesmo e depois, se for preciso, aí vou apagar o incêndio. Essa foi praticamente toda na primeira investida. Eu já andava brincando em outros escritos com esse contraste de substantivos, pensei no tema e comecei a listar vários assim, e ia selecionando os que me pareciam soar melhor com a música e combinar entre si. 
Uma das coisas que mais me emociona ao falar em paternidade é a lembrança dos momentos de descoberta, que nos primeiros meses de vida não são verbalizados. Acompanhar a criança enquanto o mundo se descortina para seus sentidos com sabor de novidades em sucessão emociona duplamente. Primeiro, só por perceber a alegria que ela sente. Aprendemos aí sobre esse amor imensurável que anula qualquer ego, qualquer importância de si. A nossa felicidade está, por completo, absorvida na da criança. E segundo, quando passa a euforia dessa sensação única, nos damos conta que desaprendemos com a idade a capturar essa explosão dos sentidos e tornamos o mundo sem surpresas. E assim as reações delas, desafiando tais certezas, promovem essa reaproximação com o mistério do planeta. 
 

Ao que já nasceu
música de Daniel Guimaraes, letra de Luiz Henrique Assis Garcia

Entre o riso e o choro
Entre o lenço e o ouro
Quem chegou promete alvorecer

Entre o azar e a sorte
entre o beijo e o corte
Quem já vem tem fome de viver

A manhã bailava em seu olhar
No afã de descobrir
Os sons em pleno ar

Pra canção palavras fui buscar
No vão que vi se abrir
Do céu ao vasto mar