Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

23 de março de 2019

O pop unicórnico

Parece ser um fenômeno recorrente da História da Cultura que, se de um lado haverão aquelas expressões que tentarão expressar o mais acuradamente possível aquilo que se pode chamar de zeitgeist, ou visão de mundo, imaginário, enfim, o que busca de algum modo capturar o que podem modos socialmente compartilhados de traduzir a experiência social num determinado contexto histórico (portanto, de forma sincrônica, como poderia pensar junto com Carl Schorske), haverá também resíduos ou retomadas de outras que, desse modo, retornam do fundo dos oceanos do esquecimento cultural no refluxo de uma vaga nostálgica. Evidentemente, haverá aí algum grau de anacronismo, mas simultaneamente esse movimento na diacronia revela um dos muitos modos pelos quais o passado não morre simplesmente, não por completo. Caberá à crítica da História da Cultura compreender o que representa, no presente, a reentrada de meteoros que pareciam há muito resfriados. Seja qual for a razão, terá que revelar o nexo, que mesmo esquecido não desvanece por completo, entre duas épocas, sejam elas mais ou menos distantes entre si. 
E nos tempos correntes, e já desde pelo menos os anos 1960s, o fenômeno cultural da nostalgia se intensificou na forma que tomou inserido na indústria cultural e na configuração do "modo" pós-moderno da experiência histórica, em que um presente onívoro e regorgitante absorve e despeja incessantemente versões recicladas de fragmentos do passado e reedições do futuro distópico cuja distância em relação à atualidade parece reduzida a quase nada. Vencida a confiança inabalável que a modernidade promovia em relação a um supostamente inevitável "novo", somos compensados pela insistente reapresentação do "antigo" recoberto de por uma camada de sonho e açúcar. 
O recente frisson em torno do retorno da dupla Sandy e Júnior nada mais é que uma demonstração empírica dessa busca pelo conforto de "reconsumir" o que já foi consumado [notícias a respeito: aqui e aqui]. Ruminar (o que também seria próprio dos unicórnios caso existissem) é o estágio atual do entretenimento em escala planetária. Não vou, claro, gastar os meus dedos fazendo discussão do pretenso show, dos comentários das colunas de imprensa que dificilmente poderemos chamar de crítica. A música de Sandy e Júnior não merece muito mais comentário que isso. Sua longevidade terá sido muito mais em função do conhecimento das engrenagens que literalmente herdaram do pai Xororó, mais do que qualquer eventual habilidade musical. A dupla, entre outras tantas "atrações" montadas pela indústria fonográfica e jabafaraônica dos anos 1990 para atender o mercado infanto-juvenil e adolescente, cujo maior fenômeno de vendagem foi Xuxa, nada tem a acrescentar do ponto de vista do que pode durar para além de espasmódicas vontades acionadas nessa chave retrô. Especialmente diante de um patrimônio inestimável de canções, desde aquelas folclóricas ou de domínio público, onde encontramos pérolas de admirável lirismo, passando pelo repertório impecável composto e apresentado para o público infantojuvenil pela nata dos nossos criadores, especialmente entre os anos 1970-80, e chegando a trabalhos recentes inspirados encabeçados pelo duo Palavra Cantada. 
Adolescentes, via de regra, tornaram-se o público preferencial do pop de ocasião, e talvez tenha sido naquela geração que qualquer fio da meada possível entre os repertórios históricos da música brasileira, tão bem defendido pelos protagonistas da Era dos Festivais, inovadores que jamais descuidaram - nem mesmo os iconoclastas tropicalistas - desse elo com o repertório do passado. Não é coincidência que isso tenha sido concomitante ao esfarelamento das instâncias de consagração crítica para grande público que promoviam, todas elas obliteradas pelo ethos do sucesso de circunstância, ainda que hoje se tente fazer, também desses, uma afirmação de lastro na memória social. Diante do caos da crise, da dissolução dos valores, das incertezas pós-modernas, consumidores abonados e desnorteados buscam uma volta ao útero do pop unicórnico de sua infância. 

19 de março de 2019

VENENO REMÉDIO


Foi numa noite de domingo, em alguma das antológicas edições do projeto Palcomeu, promovida por iniciativa do parceiro Maurício Ribeiro na acolhedora então residência dele e da sua amada Camila no bairro Santa Inês.  Em meio a uns bebericos da saborosa cerveja Artesana, então produzida pela arte do próprio em consórcio com Edson Fernando e Paulim Sartori, músicos igualmente versados nos respectivos instrumentos e no ofício de produzir tal adorada beberagem, que recebi a incumbência de letrar duas de suas criações para que se tornassem canções, e, por consequência, nossas primeiras parcerias.
Uma delas tinha uma melodia divertida, um clima de roda de samba, ainda que não fosse propriamente um. Era uma aventura sincopada por vezes subvertida por umas notas mais longas que pareciam aquele último fio de uma conversa que se estende anormalmente depois de emissões mais curtas de opinião. Ela insinuava uma prosa bem prosaica, ainda que melodiosa, e de luneta na torre de observação eu antevia os desafios da prosódia, um mar enorme pela frente até chegar a alguma terra firme.
Sem maiores indicações por parte do parceiro, dei uma custada pra saber sobre o que falar. Mas uma antiga ambição e a coincidência de torcermos os dois pelo mesmo clube (o Cruzeiro, de tantas páginas heroicas imortais, mas que na época andava perigando um pouco – felizmente não caiu) acabaram me levando ao mote. Na minha atividade de letrista eu sempre penso em temas que os compositores que admiro trataram e sobre os quais um dia quero versar. Um deles, claro, tinha que ser o futebol. Eu sou um fã confesso e absoluto do choro 1x0 de Pixinguinha e Benedito Lacerda, que depois veio a ser arrematado com uma letra insuperável do genial Nelson Angelo. Sou meramente o escalador subindo as encostas desses gigantes, mas eu queria cumprir a tarefa sendo minimamente diferente, e pensei assim de falar de um ângulo meio inusitado sobre o assunto: o de um torcedor atribulado vendo na tevê o jogo de seu time em péssimo desempenho desportivo. Parceria é sobretudo sintonia, e creio que em matéria de tom de humor eu e o Maurício compartilhamos um bocado. Exaltar clubes, jogadores, e até partidas, muita gente já fez. Falar do fracasso parecia um rumo diferente, e divertido, a tomar. Talvez um diabinho uniformizado, sentado no meu ombro esquerdo, com voz de Aldir Blanc e parentesco com José Trajano, tenha me soprado umas ideias: “bandeira de uma figa/ torresmo de barriga/
traz lá mais outro Sonrisal”, provavelmente é coisa dele.
Assim, fui praticamente descrevendo as agruras de um torcedor fanático que vê seu time em maus lençóis o tempo todo, sofrendo, comendo, torcendo, numa orgia emocional em pleno Purgatório. Exagerei, certamente, criando uma espécie de “tipo ideal” de um modo de torcer que provavelmente é adotado em diferentes intensidades por muitos apreciadores do ludopédio. Imaginei esse “eu lírico” desatinado reclamando com seu entorno e prioritariamente com a própria televisão. Eu mesmo faço isso e provavelmente me acharia ridículo se pudesse me olhar de fora da situação. Fui preenchendo a forma com a verborragia futebolística de praxe, até chegar no B que funciona meio como refrão mais pela letra, porque musicalmente é mais uma ponte dentro da estrutura AABA’ + AABA’ + A’’. Essa passagem chamava algum tipo de contraparte da letra, como se a voz do bom senso quisesse intervir, recomendando cuidado ao torcedor sobressaltado. Me veio então de súbito a figura do Sócrates, o “doutor”, rebatendo a caracterização do “eu lírico” como um “doente”. De quebra isso me deu o lance capital da pelada toda, que foi o verso do título “Veneno remédio”, com a emenda de primeira “o ludopédio, panaceia”, ou seja, consegui homenagear o livro do mestre Zé Miguel Wisnik – verdadeiro tratado sobre a paradoxal relação entre o Brasil e o Futebol que havia lido pouco antes – e achar rimas internas consequentes e difíceis sem comprometer a prosódia. E aí, curiosamente, penei para achar ‘capital’, mas que resolve e de algum modo captura o linguajar de locutores mais velhos. Finalmente o último “A” precisava da ideia de retorno ao começo, porém não por completo, já que a melodia acabava diferente. Voltamos ao cenário inicial, mas no final da partida o desespero leva o fanático a abandonar sua análise exigente pelo apelo ao sobrenatural – tão presente no imaginário futebolístico nacional. Foram alguns anos até a canção finalmente chegar a sua forma definitiva e gravada, com muito esmero por esse timaço escalado junto com o próprio Maurício, com Edson Fernando, Ygor Rajão e a querida Juliana Perdigão que cantou tão magnificamente quanto eu tinha imaginado. Enfim, tai, e que a bola continue rolando e a gente se inspirando com o futebol e a vida para compor. Esse certamente é o meu veneno remédio.



Veneno remédio (Mauricio Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)

Foi mais um domingo bem sem graça
Vendo jogo na tevê e esse meu time que não sai nem falta faz
Não passa essa retranca nem tabela
Lá vai mais outro chute de donzela

Outra bola fora logo agora
que demora do volante, tão distante que não marca o lateral
Que falta faz um meia cerebral
Um atacante com tiro fatal

A pressão vai mal, tome cuidado que tá fraco o coração, doutor já receitou
Veneno remédio, o ludopédio panaceia capital, a droga da paixão

Ó meu bem cuidado com essa taça
que perigo que desgraça, ninguém pensa com a cabeça pra atacar
assim meu coração atribulado
não güenta ver mais pênalti anulado
bandeira de uma figa, torresmo de barriga
traz lá mais outro Sonrisal

Lançamento errado pro ponteiro
o desespero só aumenta e nem cerveja alivia a aflição
se formos pra segunda divisão
meu plano não tem cobertura não

Soco do goleiro pra escanteio
que proposta defensiva, lance feio, o zagueiro é um animal
eu tomo dose de contra-indicado
afasta esse ameaça aqui do lado

A pressão vai mal, tome cuidado que tá fraco o coração, doutor já receitou
Veneno remédio, o ludopédio panacéia capital, a droga da paixão

Pelamordedeus, falta de raça,
E outro trago de cachaça, só assim pra tolerar essa pelada
Impedimento bem na hora errada
Eu grito e minha veia tá saltada
bandeira de uma figa, torresmo de barriga
traz lá mais outro Sonrisal

Foi mais um domingo um sofrimento
Vendo jogo na tevê e esse momento do meu time não dá pé
Não sobe posição nessa tabela
A bola espirra e bate na canela
Apela pra qualquer pajé

7 de março de 2019

São verde e rosa as multidões

Em algum momento antes deste carnaval, ouvi, numa bela gravação [aqui], o samba-enredo da Mangueira, e pressenti que ele daria o que falar e que teria grandes chances de ser coroado campeão com uma correspondente exibição no Sambódromo. "Histórias pra ninar gente grande", foi escrito a seis por Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Tomaz Miranda, Vitor Arantes Nunes, Sílvio Moreira Filho e Ronie Oliveira. O enredo do carnavalesco Leandro Vieira [aqui o texto geral] destaca o protagonismo do que chamou de "heróis do barracão", os populares, subalternos,negros, índios, mulatos, aqueles que os livros tradicionais da História dita "oficial" não costumam mencionar, e muito menos nominar individualmente. Claro, no atual contexto histórico, a apoteose da Mangueira - daquele tipo de vitória incontestável que está sendo celebrada inclusive pelos torcedores mais fanáticos de agremiações rivais - se recobre de imenso significado, ante as despirocadas, os crimes e perversidades de um governo e seu presidente que agem para destruir os direitos, o patrimônio e até mesmo a imagem do país. Mas, sobretudo numa visada de maior fôlego, representa uma página heroica das lutas pela conquista de um Brasil que não exclua a parcela majoritária de sua população da condição plena de cidadãos.
Mesmo não sendo um estudioso dedicado do carnaval carioca e brasileiro, como historiador da música popular, e como compositor, me sinto compelido a arriscar algumas linhas sobre este samba, certamente a espinha dorsal de qualquer desfile de Escola, e desta feita articulado de uma forma praticamente impecável a todo resto que compõe o espetáculo multimidiático. Não vou ficar esmiuçando detalhes e avaliações de jurados especializados, e prefiro incorporar o VT da transmissão, seguido da letra, para que o leitor faça a devida apreciação, se ainda não teve a oportunidade.




Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas 
pros teus heróis de barracões

Dos Brasis que se faz um país 
de Lecis, jamelões

São verde e rosa as multidões
 

Brasil, 
meu nego deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra
 

Brasil, 
meu dengo a Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento


Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato
 

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar
de Aracati

Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Brasil, chegou a vez


De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

A sofisticação em letra e música é tal que certamente deixarei passar muita coisa. Vou procurar pontuar o que posso, na confluência entre música popular e História, que é onde efetivamente tenho algo a dizer. Em outras oportunidades já comentei sobre tal relação nos sambas-enredo [aqui], e cumpre notar que a Mangueira segue na picada que a Paraíso do Tuiuti abriu ano passado, como escrevi neste mesmo blog [aqui]. Investiguei ali a configuração do samba-enredo crítico, que em alguma medida se aproveita do avanço da historiografia para ir além do marco de exaltação e mistificação de suas contrapartes tradicionais. Neste sentido, ele propõe uma interpretação histórica a contrapena (vou me permitir essa mordida antropofágica na expressão benjaminiana 'a contrapelo') e assume isso explicitamente na sua própria expressão cancional - anunciando que vai contar "(...)A história que a história não conta/ O avesso do mesmo lugar", e que vai falar do esquecido, do silenciado, dos "versos que o livro apagou". Essa (in)versão da perspectiva interpretativa (recurso simbólico cuja associação ao carnaval já rendeu muitas páginas de teoria social) é bem marcada em dois episódios históricos chave, surradamente celebrados em tantos carnavais: o descobrimento e a abolição, relidos o primeiro como invasão e a segunda como resultado de lutas várias e não da benevolência da princesa (metonímia da elite imperial). Num acontecimento musical que certamente entrará para os anais dos desfiles, o arranjo da bateria expressa musicalmente essa operação, que o estudioso Luiz Antonio Simas descreveu [via facebook] com conhecimento de causa tão grande que só me cabe citá-lo:

"Detalhe da bateria da Mangueira. Ela faz uma bossa de marcha militar na preparação do refrão. Só que aí a marcha militar saí e entra uma muzenza tocada nos atabaques! A muzenza é um ritmo tocado nos candomblés de caboclo! A muzenza se impõe sobre a marcha militar! O enredo contado por uma bateria! Putaquepariu. Desculpem as exclamações." . 
 
A história oficial, aquela que enaltece, que ergue monumentos, que emoldura os retratos dos vencedores, costumeira fonte de tantos enredos de exaltação, é contestada. Não se trata de uma alternância maniqueísta, simplista. Falar do ponto de vista dos vencidos não é colocá-los como vencedores, e sim revelar melhor o saldo dos embates. Longe de qualquer idílio, é de sangue e ossos que se trata o que é a vitória de uns e derrota de outros. Este é o conceito que as alas e alegorias demonstram visualmente de modo brilhante. Posso destacar a Comissão de Frente e a alegoria do 2º carro, saída diretamente das intervenções que vêm sendo feitas por indígenas e demais ativistas engajados em sua causa sobre o Monumento às Bandeiras. A violência dos apagamentos é enfrentada nas presenças físicas, na pessoa da Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, ou de Hildegard Angel, cuja mãe e irmão - gente que "foi de aço nos anos de chumbo" - foram mortos pela ditadura militar (lamentavelmente a Fátima Bernardes se acovardou no comentário que fez a respeito durante a transmissão), já na parte final do desfile. Numa nota marginal, como que para nos lembrar que o desfile mais lindo, crítico, etc., ainda assim está integrado no grande negócio capitalista que virou o carnaval, as moças que empurravam os carros exibiam os cabelos alisados pela marca que envergavam nas camisetas. Las contradiciones del Capital...

Acho importante destacar que a História narrada não é "alternativa" como alguns comentários apressados sugeriram, é tão História quanto qualquer coisa que é digna desse nome. É preciso que se diga que a imagem de uma História não contada "nos livros" não pode ser tomada tão literalmente. A superação desse modelo de narrativa de heróis louvados e consagração de vencedores foi certamente a tônica da historiografia produzida ao longo do século XX. Diferentes escolas e vertentes elevaram a sujeitos as pessoas comuns, os populares, subalternos, derrotados - os especialistas as conhecem e para os leigos talvez se tornasse excessivo enumerar autores e trabalhos. Claro que estamos bem longe da disseminação do conhecimento histórico que gostaríamos de ver - o que o enredo salienta - mas é certo que o samba da Mangueira não tiraria a poeira dos porões e sairia do barracão sem dissertações, teses e livros escritos por historiadores nas últimas décadas, claro que ladeados pela memória que comunidades diversas, em um enfrentamento incessante, foram preservando e reescrevendo por sua própria conta - tradição que a Escola não deixa de reverenciar em figuras emblemáticas como Leci Brandão e Jamelão. Essa colaboração efetiva, foi explicitada inclusive nos textos escritos por professores/pesquisadores que figuraram no último carro. Para além dos livros didáticos, é preciso ainda dizer que uma visão crítica da História do Brasil é levada às salas de aula por milhares de professores que são formados pra isso, especialmente nas universidades públicas. Não é por acaso que hoje ações como Escola Sem Partidos, que o próprio governo federal intenta encampar, pretendem cercear estes professores. 

Por isso o título do enredo aperta mesmo o parafuso  ao apontar que as versões tradicionais "ninam gente grande", ou seja, fazem parte de um construto hegemônico que amortece a ira dos excluídos e os relega à condição de observadores passivos do protagonismo dos heróis emoldurados, das elites dirigentes. Indígenas, negros, mulatos, caboclos, mulheres, pobres, deixam de ser entidades abstratas para serem encarnados pelos nomes daqueles de quem agora é chegada a hora de ouvir as vozes e saber quem foram. O sentido profundamente político desse desafio à História que adormece (inevitável lembrar de certo verso do Hino Nacional) é reconhecer no recorte das grandes lutas populares um veio fundamental para a construção da nossa democracia - "na luta é que a gente se encontra". No giro altamente consequente que leva desse inventário não linear dos episódios de enfrentamento e dos heróis nomeados do povo ao seu autoreconhecimento - genialmente construído na reiteração de uma interpelação tão típica do samba exaltação "Brasil..." mas aqui transformada pelos índices da nossa hibridação cultural (meu nego, meu dengo) acrescido de um reflexo no espelho que suplanta qualquer tentativa de leitura amolecida da miscigenação e propõe um país no plural -  o próprio samba segue em sua forma como uma sucessão de alas, com transições melódicas para as partes seguintes sem repetição até nos conduzir de volta ao refrão em que a própria escola se mescla ao povo: "são verde e rosa as multidões". A Mangueira nos ensina que precisamos refundar tudo, refazer os termos da nossa  união. Não estamos só enfrentando fascistas. Estamos enfrentando, ainda, as entranhas da sociedade desigual que o escravismo colonial nos legou. Que nenhuma República, nem Nova, nem Velha, superou. Só é possível fazê-lo dando concretude política, social e econômica àquilo que a Cultura já sonhou, já anteviu.
Num episódio lamentável, que deprecia o mandato presidencial e tudo que cerca a condição de chefe de Estado, o atual ocupante do Palácio da Alvorada compartilhou um vídeo com material que pode ser considerado pornográfico, propagando-o como exemplo caluniosamente generalizado do que ocorre nos blocos de Carnaval. A fala do carnavalesco Leandro Vieira respondeu com propriedade a mais este ato repugnante do político com arminha na mão:

"É um recado político para o país todo, que tem que entender que isso aqui é importante. É um recado político também para o presidente mostrar que o carnaval é isso aqui. O carnaval é a festa do povo. O carnaval é cultura popular. O carnaval não é o que ele acha que é. O carnaval é isso. E ele deveria mostrar para o mundo o carnaval da Mangueira. O carnaval da arte, o carnaval da luta, o carnaval do povo, o carnaval da cultura popular." 

Entendo que só existe basicamente uma coisa impedindo firmemente que o projeto teocrático conservador nos costumes ultraliberal na economia tome conta do imaginário do brasileiro. Chama-se ... o carnaval, o carnaval, o carnaval... O Brasil precisa de um novo samba-enredo como Hino.