Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

7 de julho de 2017

Sonhos acordes 2 - Não sei se tu me sonhas ou se sonho pelos dois?

Na segunda edição da série Sonhos acordes, tenho o prazer de publicar aqui o texto do compositor, arranjador, pianista, professor, sujeito de vários predicados, Rafael Macedo [confiram aqui o soundcloud dele], a quem agradeço de milhão. Inspirado num papo que começou num relato do igualmente adjetivável Felipe José, amigo em comum, ele me saiu com esse sonho inesperado e espirituoso, cujos aspectos alegóricos, metafóricos, subliminares, líricos e surreais, deixo aos leitores e leitoras a diversão de decifrar. Sem mais.

Não sei se tu me sonhas ou se sonho pelos dois?
por Rafael Macedo

Seria muito pouco provável acordar dizendo que sonhei com Bach e esperar que alguém entre meus caros amigxs considere surpreendente esta seleção do meu inconsciente. Ainda que sob o pretexto de que ouvira, no sonho, uma obra inédita do nosso querido mestre.
Mas, imagine agora comigo, se desse eu um salto da cama dizendo à minha companheira (no meu caso é mesmo companheira) que sonhei com Tiririca e que no sonho ele me mostrava uma peça nova – sim, peça – para orquestra sinfônica e coro misto. Com um tinteiro em punho Tiririca gargalhava ao me contar a novidade. Mas não era aquela gargalhada jocosa e debochada, que ficou notoriamente conhecida em ramo que excede ao da música, como sabemos. O idiossincrático sorriso parecia vir de suas entranhas, afinal, revelava ser fruto de uma descoberta para o próprio. Seu sorriso talvez fosse o acúmulo de muitos e muitos dias antes daquele no qual nos encontramos em meu sonho: mas naquele dia, em especial, o rapaz estava com a mente pululante de ideias novas, de sonoridades nunca antes desejadas por seu espírito praieiro e cearense.
O quarto dele, em meu sonho, estava repleto de partituras suas e de outros compositores; rascunhos e pequenas notas também se embaralhavam naquela textura impalpável que desconfio ser comum a todos os sonhos. No entanto, além de uma nova relação com a música, o compositor parecia estar também enrolado nas páginas da história da arte europeia. Citava Shakespeare com a mesma naturalidade com que dizia se emocionar profundamente ao ver, um sem número de vezes, o quadro “Impressão, nascer do sol”, de Monet; principalmente porque aquela névoa o lembrava de uma tarde de Tiririca com Roberta, sua primeira esposa. Ambos enfeitiçados por aquele mar enfumaçado, enamorados pela primeira vez. Lembro-me de ter estranhado bastante aquela lembrança por parte dele, aquela mistura bizarra de França com Ceará. Enfim, só pode ser um sonho, pensei.
Seguindo naquele quarto, já levemente desesperado com situação absurda como essa, desconfiava de que realmente se tratava de um sonho – como muitas vezes me acontece. Ao mesmo tempo, e nem sei como, sentia que aquilo tudo não podia ser um sonho: estava escutando a voz dele com uma nitidez quase dolorida para minha lucidez onírica habitual.
No meio dessa sensação tive a impressão de que ouvira minha companheira sair do banheiro, ainda que simultaneamente tivesse certeza de que alguém entrara no quarto dele. Foi aí que disparou: “Rapaz, fiquei maluco com isso tudo depois que sonhei com um tal de João, Juan, uma coisa assim. Um cabeludo, aliás, um perucudo com a cara das mais sérias. E num é que o cabra tocava um instrumento dum tamanho, nunca vi igual, e com um som dum tamanho...do tamanho do instrumento mesmo. Depois de ouvir aquilo acordei outro, viu , Florentino”.



O famigerado sucesso Florentina, de Tiririca. E para fechar, o próprio Rafael Macedo, apresentando em 2012 no festival Palavra Som.


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