Surgiu de súbito a oportunidade de rever o primeiro capítulo da clássica novela Que rei sou eu?, do distante 1989. As recordações de momentos divertidos que se mesclam às lembranças difusas de um tempo de descoberta da política, das ideias socialistas, do ateismo, do ímpeto juvenil, se reembaralham ao ver o folhetim televisivo ao lado da filha já universitária, de espírito aberto para o novo indepentente de "atual" ou "antigo". Para além de toda fórmula reside além uma mostra, por menor que seja, da vocação parodística brasileira, e do poder de sua cultura de interpretar os sinais vigentes e deixar resíduos que dão a ler algo do passado que escapou aos meus olhos adolescentes, mas também os fragmentos de um espelho a interrogar nosso presente. Ao fabular um Brasil como pastiche de reino europeu e imaginar a saída de seus impasses e misérias através de arremedos de revoluções, tramas palacianas, príncipes bastardos messiânicos e déspotas esclarecidos, a novela da Globo traçou o prelúdio dos anos da dita nova república sob a Constituição de 88, obviamente que valendo mais olhar o miolo do que o desfecho da trama, que conclui apenas uma das direções sugeridas.
De quebra recordei o tempo em que as trilhas acomodavam obras de nota como Espanhola (F. Venturini e Guarabyra), Flecha (Marcos Viana) e Raça de Heróis (Guilherme Arantes).
Sente o rufar dos tambores
Ouve os metais que anunciam
Um cavalgar de coragem
Todo temor silencia
Nosso reino é assim
Território sagrado
Pra sempre
Resiste em nós
Uma certeza de aço
Sela os portões desse reino
E não há dor nem cansaço
Todo sofrer é pequeno
Nosso reino é assim
Território sagrado
Pra sempre
Resiste em nós
Raça de Heróis
Virá salvar a Terra
Raça de heróis, heróis, heróis
Eis que ao postar o vídeo da última canção (que incorporo logo acima com letra - a partitura com cifra pode ser consultada no site oficial do cantautor, aqui), o amigo blogueiro Túlio Villaça comentou o seguinte:
"Essa música do Guilherme Arantes é muito bonita, mas eu tenho medo dela. Foi feita de encomenda para a novela, mas o subtexto dela é protofascista total."
Ele ainda acrescentou:
"Cara, Que Rei Sou eu era a novela das 7 na eleição do Collor em 1989... Não tenho nenhuma acusação pessoal ao Guilherme Arantes, mas a canção foi a trilha sonora da novela em que um príncipe prometido de uma antiga linhagem vinha salvar o país".
Da primeira afirmação discordei, com a outra basicamente concordei, e considerando a rara oportunidade de expandir uma reflexão a partir dessa provocação inicial, vou procurar sistematizar e fazer alguns adendos ao que redargui, a seguir:
Não tenho medo nenhum. Primeiro, no contexto tanto da criação dela quanto do restante da obra do Guilherme Arantes, não faz sentido esse receio. Ela captura um sentido romântico do século XIX, empregado nos folhetins de capa e espada, e também uma das fontes culturais do nacionalismo que redefiniu o mapa da Europa. Não é por acaso que a inspiração medieval permeia o romantismo do XIX, romances como os de Walter Scott, por exemplo. Há uma idealização daquela época, que também ressurge entre bandas de rock progressivo que influenciaram G. Arantes claramente, como se percebe desde a introdução. O tom épico é alicerçado numa harmonia relativamente simples mas interessante, na melodia cativante e bem urdida numa forma com verso, parte "b" (ou ponte) que literalmente ergue o cálice do santo graal até ser arrematada num refrão inesquecível, em que o arranjo cresce com coro, metais, cordas, teclados. Uma bela canção que serve perfeitamente como tema de ação e aventura ao mesmo tempo que expressa o ethos do grupo de rebeldes populares a quem acompanha, e mesmo assim funciona perfeitamente se ouvida fora desse meio e contexto específicos. Eu tinha visto o G. Arantes tocá-la outro dia em live que promove seu novo disco, A desordem dos templários, e como o amigo Alberto Júnior salientou em comentário do facebook, é um universo "medieval" que o compositor visita com frequência.
Enfim, os signos da cultura estão sempre em disputa, por isso não podemos perder suas possibilidades polissêmicas. Se o fascismo se apropriou do romantismo - sim - também o fizeram todos os estados nacionais com uma profusão de perspectivas ideológicas, porém comungando a estratégia de identificar povo e terra. Há cartazes britânicos da 2a. Guerra de convocação da população às armas que tem a mesma estética dos nazistas e dos soviéticos, só que representando cavaleiros. Quem derrotou o fascismo na 2a Guerra foi sobretudo o nacionalismo, era muito mais um embate entre nações imperialistas concorrentes que qualquer outra coisa, se formos bem objetivos. E esse sentimento, obviamente, é um rearranjo de vinculos simbólicos entre humanos e territórios que existe desde que as populações se sedentarizaram. O heroísmo é um clichê narrativo que data dos primórdios da humanidade. Se não tomarmos cuidado qualquer representação política dessa relação vira "proto-fascista". Além disso, ela foi lida ali no contexto da redemocratização, a novela como um todo, desembocando num embate entre dois messianismos, o neoliberal do caçador de marajás e o popular reformista do líder sindical. Ela se encaixa perfeitamente no mito politico sebastianista, qualquer messianismo, ou então no imaginário revolucionário, que também não se pode chamar de proto-fascista. Aliás, o príncipe é o cúmulo da fantasia centrista tradicional brasileira, ele é criado entre os pobres, pela dona do bordéu.
Por fim, não é para causar preocupação, onde uma canção dessa toca atualmente? Eu me preocuparia muito mais com o manancial de odes reacionárias e capitalistas selvagens que marcam presença forte nos gêneros de sucesso amplamente distribuídos pelos meios massivos.
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