Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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19 de junho de 2022

Que tal o samba do Chico?

Chico Buarque, mesmo quando "automático", mostra-se um cancionista no controle absoluto de todos os macetes dessa arte. É tudo tão redondo, desce tão macio, que a gente se rende na primeira audição. Claro, não dá pra comparar com Apesar de você ou Vai passar, inclusive porque a gente sabe que a correia de transmissão que os festivais e a força da MPB nas décadas de 1960-70 produziram já se rompeu, e o povo não vai sequer ouvir os acordes desse de Holanda, temperados com o bandolim do outro, o Hamilton. Som do bom, claro, é sempre um alento.

A mola mestra desse novo rebento de melodia fluente e gingada é a pergunta, na forma da informal interpelação, "que tal?" Interrogar, ao invés de afirmar, ainda que de maneira retórica, é um jeito malemolente de começar o papo. Com esse convite a uma mudança de ares, expressa através de metáforas simples, acessíveis, porém sem didatismo exagerado, o compositor quer mobilizar seu ouvinte, tirá-lo da placidez. Porém não faz uma convocação panfletária mergulhada em óleo quente e convicção, e sim um apelo ao lúdico, à dança, à festa, ao desafogo, ao esconjuro. Também evita cair no vocabulário "resistente" que se limita a reagir às intempéries, uma vez que propõe, olhando para o futuro, uma utopia a ser buscada. Reeditando sintética e sincreticamente tantos sonhos de Brasil que já foram sonhados, com toda a cornucópia dos signos do país do samba, do futebol, da cultura, da mistura. Sonho do qual gerações mais jovens muitas vezes desconfiam pelos motivos errados, engolindo sem deglutição alguma um corolário identitário gestado na terra dos guetos. No entanto é preciso também pontuar as contradições que moram na eterna ode ao país do futuro, especialmente nas rimas que remetem à Beleza pura de Caetano - e mais uma vez a tabela entre os dois parece azeitada quando lembramos que o baiano acabou de fazer Sem samba não dá, um elogio ambíguo como ele gosta a esse gênero basilar de nosso cancioneiro. "Não com dinheiro mas a Cultura" pode ser lido de tantas maneiras num país de milhões de analfabetos funcionais e desempregados, famintos e falidos, que não podemos fugir à contradição que desperta desse que é um dos versos mais acertivos da canção. No rol das derrotas, que Chico tem o juízo de mencionar mas não se ocupa em precisar, esta é uma das maiores. No final, o legado do partido de esquerda no governo, para o povo, não foi conclusivamente nem um nem outro. Dinheiro não. Cultura também não. Ou sim, diria Caetano? É de nos perguntamos: sabe com quem ele está falando?

Enfim, voltando ao início, é na falta das correias de transmissão, da circularidade cultural, que reside o perigo de que esse sofisticado interrogatório sobre o desejo (ou não) do brasileiro de mudar seu presente (e para qual?) corre o risco de ficar perneta, não por culpa do Buarque, que fique claro. Ele é, no fundo, a voz mais bem entoada (se alguém leu isso e ainda não entendeu que ele canta pra caralho, tá na hora) desse impasse da MPB que projetou e construiu pontes enormes entre classes e vocabulários brasileiros, mas que depois assistiu essas pontes ruírem por falta de manutenção e muitas vezes se acomodou num posto avançado de observação, de onde o povo seguiu sendo fonte de matéria-prima mas não protagonista criador. O apego ao samba - que tal? - talvez seja o último baluarte desse esforço, porque como a própria canção demonstra, ele não é ponte, é uma cidade inteira, feita de diferentes localidades e ramificações, onde todo Brasil cabe. Ao propor um samba, ainda, Chico Buarque reitera que ainda é possível a utopia, a construção de um bom lugar em que esse filho brasileiro, de pele escura e formosura, possa crescer. Quem sabe?





QUE TAL UM SAMBA? (música e letra de Chico Buarque) Um samba Que tal um samba? Puxar um samba, que tal? Para espantar o tempo feio Para remediar o estrago Que tal um trago? Um desafogo, um devaneio Um samba pra alegrar o dia Pra zerar o jogo Coração pegando fogo E cabeça fria Um samba com categoria, com calma Cair no mar, lavar a alma Tomar um banho de sal grosso, que tal? Sair do fundo do poço Andar de boa Ver um batuque lá no cais do Valongo Dançar o jongo lá na Pedra do Sal Entrar na roda da Gamboa Fazer um gol de bicicleta Dar de goleada Deitar na cama da amada Despertar poeta Achar a rima que completa o estribilho Fazer um filho, que tal? Pra ver crescer, criar um filho Num bom lugar, numa cidade legal Um filho com a pele escura Com formosura Bem brasileiro, que tal? Não com dinheiro Mas a cultura Que tal uma beleza pura No fim da borrasca? Já depois de criar casca E perder a ternura Depois de muita bola fora da meta De novo com a coluna ereta, que tal? Juntar os cacos, ir à luta Manter o rumo e a cadência Esconjurar a ignorância, que tal? Desmantelar a força bruta Então que tal puxar um samba Puxar um samba legal Puxar um samba porreta Depois de tanta mutreta Depois de tanta cascata Depois de tanta derrota Depois de tanta demência E de uma dor filha da puta, que tal? Puxar um samba Que tal um samba? Um samba

11 de abril de 2020

É o bicho, é o Chico

Acabei de assistir ao show Caravanas, do Chico Buarque, baseado em seu último álbum de estúdio, de mesmo título. Falar dos show do Chico nas últimas décadas corre o risco de chover muito no molhado. Ele encontrou um formato bem sucedido, para plateias elitizadas, economica e culturalmente falando. Tudo de muito bom gosto, acompanhado de músicos tarimbados sob a batuta do inseparável Luiz Cláudio Ramos. O repertório, obviamente, é impecável, dado o manancial de onde jorra. Há uma boa combinação das obras-primas que atravessam décadas com as novidades do disco que dá nome ao show, com boas concatenações na sequência combinada, como quando casa Desaforos (de Caravanas) com Injuriado (uma das minhas preferidas, de As cidades), A volta do malandro e Homenagem ao malandro, Todo sentimento e Tua cantiga, ambas parcerias com Cristóvão Bastos e a que mais repercutiu do trabalho mais recente. O som é isso, é infalível, é candidato à unanimidade, mas às vezes falta uma aresta, uma sujeirinha que seja, algo fora do roteiro. O visual talvez denote mais ainda esse problema, a iluminação exagera em focar só o Chico o show praticamente todo, e às vezes os músicos não são mostrados no vídeo nem quando solam. No final o Chico apresenta a banda, como manda o figurino, mas fica essa sensação de que ficou tudo profissional demais. Confesso que gosto mais do Chico menos gourmet, menos arrumado, mais suburbano dos anos 1970. O público também não surge de frente em momento nenhum, no máximo algumas cantaroladas numa ou outra mais conhecida e uma vaga de braços que acenam, e que o Chico, numa corridinha demonstrativa de seus cuidados providencias com a saúde, cumprimenta como aqueles jogadores de basquete da NBA fazem. Tudo isso me recorda uma passagem do André Midani, então diretor da Phillips, se queixando que o Chico não era profissional como o Gil. A Terra, afinal, é redonda sim, e dá voltas.







Aproveitando o ensejo, recupero um texto que ficou no rascunho, que era baseado em alguns debates levados no facebook, e que de certa forma "morreu" porque a oportunidade de publicá-lo passou. Em véspera de páscoa, acho que vale tentar essa ressurreição.No período de lançamento do disco, reagindo a uma provocação sobre a acomodação do artista, ponderava o seguinte: levemos em conta que o sujeito em questão passou dos 70. Uma certa dose de autocomplacência é aceitável. Claro que ele encontrou uma fórmula que lhe agrada e fica relativamente aferrado a ela, com os mesmos músicos, mesmo arranjador. Nesse ponto da carreira ele pode se permitir esse conforto. Ainda assim, o esmero dele, em especial nas letras, me faz pensar que não há isso, apenas uma decantação mais demorada de se constatar. Se a minha vida inteira eu conseguir uma vez atingir algo próximo a "Tua cantiga", "As caravanas", ou "Jogo de bola", morro feliz. Os arranjos do Luis Cláudio Ramos são muito bem cuidados, só não são propriamente ousados. Escrever isso dá trabalho. Chico é um excelente cantor, pode-se perguntar a qualquer um que entende de música. A voz dele é emblemática, da forma como encampa o que canta. Essa personalidade tem a ver inclusive com o timbre. O disco todo é embebido na temática contemporânea das construções de representação de identidade, especialmente nas redes sociais - daí inclusive a nova versão de Dueto, cantado com sua neta (e como tantos de sua geração ele dá uma forcinha pra descendência, botando letra e gravando uma parceria com o neto, Chico que nem ele). Há um questionamento de certo modus operandi raso do "identitarismo", provocações contra as patrulhas. Quem der uma chance vai acabar achando que é político demais. No calor da fervura do lançamento, duas canções capturaram a atenção e foram alvo de intensa discussão, "Tua cantiga" e "As caravanas", justamente por pisarem nesse campo minado. Da primeira já tratei em outra postagem. Aqui então passo a tratar da segunda, começando por rebater a acusação - montada em cima da apreciação do vídeo oficial da canção. Considero, antes de mais nada, que o Chico não é racista (creio que não preciso enumerar as razões suficientes para esta constatação), mas ao mesmo tempo é um grande "radiologista" do racismo no Brasil. Basta ler algumas páginas do romance Leite derramado, fora tantas das suas canções. Talvez se alguém arregimentasse músicos negros para compor a orquestra,outro poderia dizer que isso foi feito num ato politicamente correto... o próprio Rafael Mike foi surpreendido pelo convite, dá pra ver um pequeno depoimento dele em algum lugar, no vídeo ou numa matéria de jornal. Aí podemos pensar nos diálogos que são propostos na música também, desde a referência a Caravan de Duke Ellington. Estamos também muito condicionados pelo 'oculocentrismo' do nosso tempo, emprestamos ao que vemos mais importância do que ao que ouvimos. Certamente se pode pensar pelo ângulo sociológico, uma vez que a maioria dos músicos que aparecem são de uma orquestra, onde essa ausência é bem visível. Não temos também como saber se alguns, sendo brancos ou mestiços - e em se tratando de Brasil, em boa medida somos mais é mestiços que qualquer outra coisa - nasceram numa favela. Por outro lado, percebo que os elementos do funk que entraram estão domesticados. Isso me pareceu estar em confronto com o que a canção propõe, ou seja, que ninguém para a caravana, gostando ou não dela.

Já escrevi um pouco antes e ainda não consegui amadurecer a reflexão, mas acho reducionismo ficar colocando tudo na sacola do pós-colonial. É lógico que nossa colonização nos marca. Como Brasil, como América do Sul, Latina. E até como Americanos que raramente recordamos que somos. Mas é uma experiência totalmente distinta em vários aspectos daquelas do período do imperialismo em África e Ásia, que depois do processo de descolonização deram origem a esse pensamento pós-colonial. Além de ser necessário lembrar que muito disso passou a ser cozido no coração anglo-saxão do imperialismo, na Grã-Bretanha e nos EUA. Tudo isso tem implicações que não se pode desconsiderar. Agora mesmo eu li uma crítica da exposição da Tarsila no MoMA que supunha haver uma linha muito tênue (!) entre a antropofagia e a apropriação cultural. Nada mais distinto. A academia, longe de ser um reino de cristal em que o conhecimento circula livre leve e solto, é um lugar cheio de embates. Há uma tentativa, ainda que sutil, de transformar várias das conquistas culturais e intelectuais latino-americanas, que inauguraram tradições e transformaram essas sociedades, além de prefigurar soluções de vários de seus dilemas mais profundos, em espécies de ensaios incompletos e versões inacabadas de concepções mais elaboradas e concatenadas que estão patenteadas ao Norte. Em bom português, os bispos estão tentando nos comer. Certamente passarão, e Chico Sabiá Passaredo.
Finalmente, como quase sempre tem sido ultimamente quando se lançam as críticas esquemáticas, sem estofo nem ponderação dos praticantes do "identitarismo", o mexido entre preconcepção e falta de interpretação de texto sempre impede que o reclamante enxergue muito mais que um palmo à frente do nariz, de modo que ele nunca se dá conta que existe um "eu lírico", que o compositor possa estar na pele do "Outro", que isso é uma faculdade da criação artística tanto quanto é um exercício antropológico. Assim, no automático, acusaram Chico de reproduzir preconceitos, quando ele traz mais essa exposição da fala preconceituosa, mas malandramente a critica pelo exagero evidente das expressões que emula saindo das bocas das elites tupiniquins. É justamente pra colocar esse preconceito em pauta mesmo, e talvez isso possa ser mais coerente com o percurso dele, e ser mais crível do que simplesmente uma imitação barata de uma estética da favela atual, por exemplo. Eu vejo que às vezes ele chega pela língua, e acho essa a aproximação mais orgânica, digamos assim, quando ele incorpora coisas como "chapa quente", "quebrada", "é o bicho"... quer dizer, o cancionista brasileiro produz aí, no meio dessa língua tão mutante, incansavelmente criada e recriada. É o bicho, é o Chico, e ele nos devora.


21 de dezembro de 2019

1a c/ a 7a - Estou me guardando para quando o carnaval chegar

Assisti hoje, dentro da excelente mostra de cinema nacional recente realizada no Cine Humberto Mauro, ao documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", dirigido por Marcelo Gomes [entrevista], certamente mais reconhecido por Cinema, aspirinas e urubus. A narrativa crua - mas não nua, exatamente - de Toritama, cidade de 40 mil habitantes no agreste pernambucano responsável por 20% da produção nacional de jeans, emanando da boca de seus protagonistas, ainda que pontuada por uma narração em off que vai descrevendo um retrato contrastante dessa 'china com um carnaval no meio' com aquela cidade pacata de interior de que o cineasta se lembra de ter visitado com o pai. O título, pinçado da canção de Chico que por sua vez foi trilha original para o filme de Cacá Diegues,Quando o carnaval chegar, de 1972 [aqui para ver o filme e aqui para o trecho com a canção]. O diretor também lança mão de outras citações e procedimento metanarrativos, como por exemplo interromper o fluxo da narrativa e dirigir-se ao espectador para discutir a sua própria construção, demonstrando como a alteração do som (quase todo o tempo um uso brilhante da banda sonora tomada pelo recorrente e ensurdecedor barulho de máquinas de costura e outros aparelhos usados nas facções, fabriquetas de fundo de quintal que dominam a paisagem urbana de Toritama - uma das traduções do tupi poderia ser "terra da felicidade"), ou do ângulo da filmagem. Não tenho um domínio do repertório de documentários brasileiros sobre a questão do trabalho, mas claro que foi inevitável uma lembrança de Ilha das flores, porém me parece que "Estou me guardando" teve o cuidado de ser menos didático, jornalístico ou panfletário, nos deixando cada vez mais atônitos ante a convicção empreendedorista da grande maioria dos moradores que narram diferentes versões do "toritaman way of life", que é sobretudo marcado pelo imediatismo total - daí o lance provocativo com o título e a canção - totalmente afinado com uma perspectiva ultraliberal. Tal realismo, sem tutela da fala dos trabalhadores autônomos que se tornaram escravos de sua própria versão agreste de meritocracia, pontuado aqui e ali com as tiradas e criatividade de um povo que faz do improviso seu modo de viver e expressar, torna "Estou me guardando" um retrato ainda mais acurado do Brasil de hoje que Bacurau. E muito menos palatável.



13 de agosto de 2017

Muito barulho por uma cantiga

De modo impressionante a celeuma em torno de Tua cantiga (música de Cristovão Bastos, letra de Chico Buarque) perdura além dos dois, três dias que costumeiramente se gasta - e se desgasta - com esse tipo de embate. Talvez um dos encantos da escrita possa ser de que um texto ruim possa motivar a escrita de outro bom e vice-versa. Já se escreveu um bocado de coisas sobre a canção, entre os quais a aguda análise de Bráulio Tavares [aqui] em que eu destacaria a decantação da letra que revela toda a ourivesaria para "encaixar na métrica, na cadência, na prosódia, na acentuação, no timbre, no ritmo.", o opinativo texto de Flávia Azevedo [aqui], desencadeador de um bocado da discórdia ao dissertar sobre o 'amor datado de Chico' que escreveu 'largo mulher e filhos', ou o belo mexido [eu como mineiro posso assegurar que quando chamo algo de mexido estou elogiando] que Túlio Villaça fez [aqui] de suas próprias colocações versando especialmente sobre as relações entre estética/ética e a atualidade da canção em combinações com por exemplo a magistral decodificação operada por Mauro Aguiar "(...) é Shakespeare filtrado por uma mente borgiana emulando a sofrência num lundu impossível datado de 2017" (exclamação, eu diria no jargão enxadrístico) ou com a atenta escuta de Luís Felipe de Lima para a melodia ofídica de Bastos, que vai serpenteando e "(...) se equilibra muito bem entre a repetição e a diferença. Parece repetitiva, mas só parece. Tem muito veneno ali. Uma jóia.", entre outras preciosidades recolhidas.Recomendo fortemente a leitura de todos.

Garanto uma coisa, em nenhum outro lugar do mundo uma única canção de dois septuagenários poderá ser alvo de tanta disputa.  É cruel essa exigência da "atualidade", especialmente se projetada para sujeitos que, afinal, passaram dos 70. Como não ser datado sem também não ser forçadamente 'jovial', por exemplo? Sim, cabe identificar que o romantismo e o eu lírico da canção remetem a outro tempo e outras condições sociais das relações de gênero. Uma forma de olhar a canção é como inventário desses valores. Trata-se de exercício ficcional e não lição de moral e bons costumes. E nesse sentido a eficácia dela é justamente incorporar perfeitamente esse conteúdo patriarcal do amor romântico, recorrente nas cantigas de outros tempos com as quais ela dialoga. É pertinente problematizar, sim, mas para ser justa com o autor (como a boa crítica deve ser) não cabe essa de acusar Chico de ter 'se traído' (como fez Flávia, por exemplo), ou a cobrança de que submeta a estética a critérios 'atuais' do que deve ou não ser uma relação. E vale insistir na ressalva sobre o eu lírico e a natureza do que é o texto na canção, que obviamente comporta e comportará apropriações indébitas e imprevisíveis aos autores. É neste sentido inclusive que ser homens de seu tempo não os condiciona absolutamente - caso contrário todos os viventes de uma mesma época pertencentes a uma mesma camada social se expressariam de modo homogêneo.

Também o texto de Flávia perde de vista o movimento de Chico - e aqui junto de Cristovão Bastos - de revisitar as formas do passado. Uma canção romântica de época, feita por homens já bastante vividos, conhecedores do nosso patrimônio musical. Aqui ambos de mãos dadas seguem abraçando um projeto estético (e político) de longo arco que está no nascedouro da chamada MPB, aberto no diálogo entre os feitos da geração anterior de João, Jobim e Vinícius, e aqueles que lhes antecedendo plantaram as sementes da moderna brasilidade musical, como Pixinguinha, Noel, Ismael Silva, Cartola, entre outros gigantes. Ali se dizia que reverência e respeito aos inventores do passado não implicava em conservadorismo ou redundância.

Aliás, essas críticas que são sobre música sem falar nada de música tem esse grave defeito. Geralmente os comentários sobre canções que se expandem para além do universo de conhecedores mais zelosos costumam perder de vista a sua natureza mesma, a cópula entre o som e a palavra que gera um novo ser. Nessa celeuma toda de Tua cantiga, me entristece particularmente ver tratados inteiros que sequer mencionam o nome de Cristovão Bastos, autor da música - aliás, a melodia em especial demonstra seus predicados e qualquer um que se der ao trabalho de ouvir umas poucas vezes poderá passar dias na companhia dela, até ter seu 'ouvido interior' docemente 'assaltado' por ela. Claro a letra é o foco, claro, é do Chico. Mas tem gente aí escrevendo sem ter nem ouvido... e muita coisa poderia ser melhor compreendida com um pouco mais de atenção à música. Enfim, Cristovão Bastos merece todo nosso respeito, consideração e palmas. 

Desde a modernidade a atualidade a toda prova parece ser a cartilha, e efetivamente é o ditame do mercado que está na sua medula. Entretanto sabe-se que ela desencadeia contradições, entre elas um apreço por proteger partes do passado de sua própria fúria assassina, como recurso para garantir alguma estabilidade simbólica e, ao mesmo tempo, fornecer o parâmetro para o contraste que assegura a constatação da superação do que é 'datado'. É nessa brecha que se constitui um pilar de sustentação do arco referido acima, pois se a música popular parece ser toda organizada para o fugaz sorvimento dos acertos de temporada, paralelamente permite a constituição de acervos e coleções que transcendem - por razões umas evidentes, outras misteriosas - o império do imediato.  Curiosamente, ou até ironicamente, o ouvinte que rejeita a canção que não satisfaz sua expectativa narcísica é que é conservador e datado, esperando que o artista só lhe ofereça o que estiver assemelhado a si e ao que considera próprio de seu tempo. Aí não há espaço algum para diferença e alteridade - o contato efetivo com o passado não pode ser senão isso. Mais uma vez estamos no mundo do aquém-história, em que não vem muito ao caso considerar a experiência pregressa de outrem e nem tampouco  que qualquer nova expressão se insere em séries, repertórios, tradições. Talvez seja muito barulho por uma cantiga, mas por outro lado em meio a tanto barulho estamos precisando delas.

Lembrei-me agora, a tempo de terminar, que a primeira frase que escrevi sobre essa canção, rebatendo quem vinha dizendo que ouvi-la dava sono, que quem dormir ao seu embalo irá sonhar. 


30 de novembro de 2016

O patrimônio e os panteões: Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular

Como parte das atividades da bolsa de iniciação científica (IC) concedida pelo CNPq para o projeto Patrimônio urbano e música popular: acervos e lugares que coordeno, o bolsista Isac Santana produziu uma pequena resenha que decidimos em conjunto transformar em postagem do blog. O foco é a comparação entre listas de consagração de bens culturais elaborados por políticas de patrimônio e as listas elaboradas por compositores populares para celebrar seus pares. Transcrevi-a abaixo, com algumas pequenas modificações.



Referência: TRAVASSOS, Elizabeth. Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular. Porto Alegre,  03 maio 2006, 11p.  Texto elaborado para o debate A memória da música popular promovido pelo Projeto Unimúsica 2006 – festa e folguedo. [para baixar o texto, aqui]

A autora, em 2008.

Ao falar de música popular em seu texto, Elizabeth Travassos traz os elementos das listas comparando aquelas que foram criadas pelas políticas de patrimônio e as listas feitas em canções populares, apresentando um contraste existente nas análises dessas listas.  Para elucidar seus pensamentos sobre as listas, a autora começa apresentando as proclamações da UNESCO sobre obras-primas do patrimônio cultural oral e imaterial da humanidade, que abrangem praticas, representações, conhecimentos e técnicas, o que nos instiga a olhar as práticas sociais e festas como obras-primas. Dentro dessa lista da UNESCO temos como exemplo arte gráfica e oral dos índios Wayãpi, o canto védico na Índia o teatro de bonecos na Indonésia e a festa dos mortos no México. Ao proclamar esses objetos a UNESCO tenta reconhecer o seu “valor” mas não trabalha esses patrimônios diretamente com os agentes produtores de cultura. A antropóloga Barbara Kirshenblat-Gimblett observa que:  “o patrimônio é um modo de produção cultural que insufla vida nova nos fenômenos culturais em vias de extinção ou que saíram de moda, ao exibi-los como patrimoniais”. Mesmo a lista tendo efeitos importantes  sobre as comunidades geradoras dessas obras é difícil prever os impactos dessas proclamações. Aqui no Brasil, além de participar das proclamações da UNESCO, temos nossa própria política sobre patrimônio imaterial. Os nossos bens culturais são registrados em quatro livros de acordo com a sua categoria: há um livro para os Saberes e Modos de Expressão, outro para as Celebrações, outro para as Formas de Expressão e outro para os Lugares.  Como esclarece Travassos:

Observe-se que os documentos brasileiros não empregam a categoria ‘obra-prima’. Tampouco acentuam o ato de proclamar. Entre nós, a ênfase do discurso está na inscrição em Livros, em registrar por meio da letra o que era falado e vivido sem necessidade da escrita. (TRAVASSOS, 2006, p.3)

A autora destaca propositalmente itens na lista da UNESCO relacionados a música e dança para enfatizar que são sempre grandes potenciais e merecedoras de proteção, e começa então a apresentar as listas que são usadas dentro da música popular. Elizabeth escolhe 3 canções. A primeira canção que usa como exemplo é do Sr. Joaquim Crisóstomo, de São João d’Aliança. A lista utilizada nessa moda traz os nomes dos foliões, parentes e amigos do Sr. Joaquim.


“Nesta hora eu me lembrei

De tudo que já passou

Me alembrei de tanta gente

Que pro céu Deus já levou

Me alembrei de Zé di Telo

E do caixeiro Fulô

Vendo as moda de Domingo

Só a saudade ficou...”







Outro exemplo usado é a canção Paratodos de Chico Buarque: 


“O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano

O meu bisavô, mineiro

Meu tataravô, baiano

Meu maestro soberano

Foi Antonio Brasileiro...



...Viva Erasmo, Ben, Roberto

Gil e Hermeto, palmas para

Todos os instrumentistas

Salve Edu, Bituca, Nara

Gal, Bethânia, Rita, Clara

Evoé, jovens à vista...”






Nessas duas canções, os autores listaram pessoas representativas dentro dos contextos sociais que pertenceram. A primeira traz uma memória local, seus parentes e sujeitos próximos. A canção de Chico também se inicia em um contexto familiar e vai abrindo espaço para pessoas de uma linhagem musical consagrada nacionalmente, composta por membros de várias regiões brasileiras, mostrando assim que a música popular é “paratodos”. Outra lista apresentada bem similar à lista de Chico é Beba dosamba de Paulinho da Viola.

Nessas canções os compositores criam sua própria lista para proclamar seus heróis em forma de registro. A autora as utiliza para mostrar como esses grupos sociais gravam em forma de composição suas memórias, que se assemelha bastante a algumas políticas da UNESCO, como os “tesouros humanos vivos” que atraem novos aprendizes para herdar determinadas sabedorias e estudar com esses mestres. As canções populares aqui descritas ao apresentar figuras celebres também desperta a vontade de aprender os conhecimentos desenvolvidos por esses mentores.  A maior diferença que a autora destaca sobre a UNESCO e as canções populares, é que os agentes da UNESCO que votam e escolhem os patrimônios nunca serão tão próximos e conviventes com os objetos culturais como os compositores das canções. Para ela é importante frisar que "Todas as listas são discutíveis, sob certo ponto de vista, e isso se aplica, naturalmente, à minha própria lista de listas. Seus critérios de seleção sempre podem ser objeto de disputas" (TRAVASSOS, 2006, p.8).

 Concluindo, ela ressalta que ambos buscam salvaguardar memórias, preservar fontes identidade cultural que assegurem a diversidade que é fundamental para as relações humanas.

13 de agosto de 2016

"Morreu na contramão, atrapalhando o sábado" - aula de canção: Construção (Chico Buarque)


O escritor Ítalo Calvino escreveu em "Por que ler os clássicos" que o que faz de um livro um clássico essencialmente é sua atualidade, ou seja, sua capacidade de representar um reservatório constantemente reaproveitável de significado capaz de adquirir sentido em tempo e lugar muito diversos daqueles em que ganhou o mundo. O mesmo há de valer para os discos, mas, talvez ainda mais, para as canções. Até porque no caso delas se apresenta de forma ímpar, evidente, o mecanismo da 'releitura', já que além da possível continuidade de circulação, consumo e reapropriação da primeira gravação que recebeu, uma canção - no contexto histórico da fonografia especialmente - pode ser regravada em versões as mais diversas. Multiplica-se exponencialmente seu potencial de correr de boca em boca, de soar alto pelos palcos e botecos, de ir pelos mares, terras e ares até ouvidos inimaginavelmente distantes daqueles que tiverem sido os primeiros a ouvi-la. Paradoxalmente, claro que essa lógica industrial também destina boa parte de tudo isso à vala da efemeridade e do esquecimento quase instantâneo, e por uma série de razões - que teremos que deixar para explorar em outra postagem - a maior parte das canções, em quaisquer de suas reencarnações, não se tornam 'clássicos'.
Mas esse é certamente o caso de Construção (do LP homônimo de 1971), uma das obras-primas do cancioneiro de Chico Buarque. Recentemente ela marcou presença, em versão instrumental, na cerimônia de abertura dos  Jogos Olímpicos Rio 2016 [completo aqui]. Sua execução acompanha o cenário de industrialização e urbanização do país, narrada com auxílio de uma coreografia que inclui movimentos de parkour e escalada. A princípio eu me surpreendera ao ler que essa canção faria parte do programa de abertura, pois claramente ela ergue num patamar uma das mais emblemáticas representações do Brasil moderno, exposto com crueza e precisão formal em toda sua imensa contradição. Como me interessa enfatizar a reapropriação não pretendo me alongar numa análise que já encontrou tantos bons intérpretes por essas décadas em que existe a canção. Já foi deslindada a precisão da armação dos andaimes musicais, da fundação harmônica que é tensão em ferro ao arranjo denso e sombrio de Duprat, do jogo formal e lúdico de montar a letra como se fosse lógica ao balanço à beira da queda fatal que encerra sua análise social e psicológica. Construção é o Brasil que ergue e cai, épico e trágico. E nas olimpíadas, se num primeiro momento a sociedade do desempenho parece só ter olhos para a glória e o alto do pódio, é bom lembrar que também a desgraça sempre tem seu lugar na história, e agora o sangue, o suor, a lágrima e a queda encontram também o batalhão de câmeras e vozes empostadas à postos para narrar a derrota como se fosse outra versão da vitória, tão ou mais desejável objeto de consumo. 
Espera-se, tradicionalmente, que a abertura seja o desfile alegre de um povo contente, atropelando indiferente qualquer versão dissonante de história nacional que porventura atente aos percalços. As mazelas, as desgraças, a carniça, aos historiadores. O resplendor solar, aos espectadores. Em vários momentos da cerimônia sente-se uma coisa nem lá nem cá, um meio-termo, em que as eventuais arestas eram aparadas ao ponto de quase não se mostrarem. Nada deve ter sido mais grave, nesse sentido, do que a encenação do encontro entre portugueses, indígenas e africanos escravizados apresentados no início, em que o conflito se resumiu a uma ou outra cara feia que só closes brevíssimos vieram revelar, e que a violência do chicote resumiu-se a pontilhados sonoros desprovidos de qualquer emissor concreto. A opção por apresentar Construção em arranjo instrumental me parece ter ido nesse mesmo sentido de apresentar a história apaziguada. É como se o veneno e o remédio da canção, em tudo que ela dói e espreme na gente, fossem habilmente extraídos e higienizados, como quando se faz a vacina com variedades enfraquecidas dos agentes infecciosos. O final, sintomaticamente anacrônico, em que os tijolos da construção derrubados revelam o 14bis de Santos Dummond - afirmação positiva e válida de nosso engenho, mas perniciosa se for lida como demonstração de uma nação construída que deu certo.  
Mas penso, para concluir, que canções como Construção são indomáveis e não podem ser transformadas em injeções de ânimo desavisado ou dose de óleo de rícino. Estão aí pra nos tirar do prumo, pra atrapalhar o tráfego, e até pra me botar pra escrever no sábado. Aliás, parar para qualquer coisa e interromper esse trânsito da insensibilidade torna-se necessidade e modo de sobrevivência, quando lemos que um senhor de 91 anos, abalroado por um motociclista, "morreu na contramão, atrapalhando o sábado".








Construção (C. Buarque)


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

13 de fevereiro de 2016

Grandes Encontros da música popular - a parceria Edu Lobo e Chico Buarque

A possibilidade de elaborar listas de audição em sítios, portais e afins, representa uma nova forma de colecionismo e circulação da música gravada (ainda que lembre a possibilidade já oferecida pela fita k7  e depois pelo CD gravável de elaborar coletâneas próprias), sobre a qual ainda pretendo escrever com mais aprofundamento. Enquanto isso, é uma prática que permite criar uma noção de conjunto e auxiliar na exposição de um determinado tema. Como fez meu parceiro Pablo Castro ao criar uma playlist para "ilustrar" aspectos específicos da parceria Edu e Chico. Achei oportuno aproveitar tanto o  texto quanto a lista no escopo da série "Grandes Encontros da música popular".

Por Pablo Castro:
É provável que nunca, em lugar algum, houve uma parceria entre compositores que tinham sido revelados anos antes num esquema competitivo, quando eram em alguma medida adversários, disputando palmo a palmo os primeiros e mais influentes festivais da década de 1960, tendo ambos depois seguido as suas respectivas carreiras, ambos capazes de letrar e musicar (embora as letras de Edu se contem nos dedos de duas mãos, elas são ótimas), bons cantores, influentes e consagrados, com vários discos gravados, até se unirem para compor uma das mais importantes obras cancionais de uma música popular, como a parceria entre Chico Buarque e Edu Lobo. 

Normalmente duplas com esse nível de qualidade e quantidade de produção são estruturantes na carreira dos parceiros, e a tendência é a parceria em algum momento romper-se ou perder o ímpeto. Se o grosso da leva da parceria Tom/Vinícius se deu ainda na década de 1950, ela foi arrefecendo até virar apenas amizade. Tom e Vinícius pararam de compor juntos ainda no início dos anos 60. João Bosco e Aldir Blanc se encontraram como um choque de deuses antípodas e complementares, um acontecimento da natureza que gerou meia dúzia de discos espetaculares e dezenas de clássicos, até se desfazer e se bifurcar em meados da década de 1980. Aldir depois achou um parceiro tão significativo para suas letras como João fora: um dentista chamado Guinga, com quem construiu uma outra obra absolutamente expressiva.
Na música anglo-americana, temos o incontornável exemplo de Lennon/McCartney, cujo funcionamento era diferente: ambos compositores de letra e música, colaboravam entre si das mais variadas formas, mas nunca com a fronteira delimitada de letra e música para cada parceiro. Além disso, a dinâmica interna da duplas estava submetida a uma banda com outros dois músicos, um dos quais um compositor tão criativo quanto.
Os irmãos Gershwin , Burt Bacharah e Hal Davis, Rodgers e Hart, Andrew Lloyd Weber e Tim Rice, todas mais ou menos no padrão letrista / compositor. Edu Lobo e Chico também funcionaram assim. Mas a trajetória pregressa deles e o caráter e a importância de cada um na moderna música popular braseira fazem dessa junção algo realmente especial. Como uma lista de suas canções pode provar .
Fiz uma playlist que inclui praticamente toda a obra conjunta deles. Pra quem quiser conhecer, trata-se de 5 projetos de teatro ou dança que foram de encomenda, o que originou algumas das mais finas canções da história da música popular. O que demonstra o quanto poderia ser positivo para o Brasil uma articulação maior entre a música, o teatro, a dança e o cinema no país, que , hoje, praticamente não se comunicam.
Divirtam-se ! 


6 de dezembro de 2015

Música Popular e Memória III: Como nascem as memórias inventadas

Retomando aqui uma série que andava adormecida, em que convido alguém invariavelmente especial para brindar os leitores do blog com algumas reminiscências que associem sua trajetória pessoal, profissional, etceteral, à música popular, alegremente recebo esse singelo recordo* da querida colega, igualmente pesquisadora de música popular e igualmente historiadora, Miriam Hermeto [gracias!], profa. do Depto. de História da UFMG, e minha vizinha de prédio no campus. 



Como nascem as memórias inventadas
por Miriam Hermeto

Em 2010, já na reta final do meu doutorado e com lacunas de pesquisa efetivas, eu resolvi tentar uma entrevista com Chico Buarque. Temia muito que o contato fosse considerado apenas o desejo de uma fã - o que sou, inconteste, apesar do esforço crítico que a persona de pesquisadora sempre implicou - de conhecer seu ídolo. Mas realmente a entrevista, que eu sabia muito difícil, tinha potencial para resolver questões importantes e dar outras cores à interpretação do fenômeno da "Gota D'Água"...
Encorajei-me, então, e tentei. Surpresa, consegui. Como eu consegui?, isso é história pra outra hora - que, aliás, está contada, de alguma forma, na tese. Fato é que consegui, a partir de uma troca de mensagens por email, primeiro com o assessor de imprensa, a doçura do Mario, depois com o próprio Chico.
E fui, em maio de 2010, entrevistar o Chico, em seu apartamento no Leblon. O episódio da entrevista também é assunto pra outra hora. Falo disso tudo, porque hoje lembrei-me muito do encontro, assistindo ao "Chico, artista brasileiro" - filme lindo, desses que fazem bem à alma. Mas, especialmente, lembrei-me de um eco do encontro, que sempre uso como exemplo pra discutir como as memórias são inventadas.
Poucos meses depois de eu ter entrevistado Chico Buarque, ele deu declarações à imprensa, falando de seu novo disco, em processo de produção. Havia poucas canções finalizadas e a primeira delas era "Nina". Sim, Nina, o nome da minha filhota, então com dois anos, a quem sempre cantei em alto e bom som por aí.
Amigos próximos me chamavam para perguntar se eu havia visto o nome da nova canção. "Claro", respondia. E completava: "sei de nada, só sei que não posso crer que é acaso ser esse o nome depois de ele ter-me conhecido". (Vejam a manobra: não era eu a tê-lo conhecido, mas o contrário!)
Farra pura, é óbvio. Mas, cá entre nós e para consumo interno, "Nina" é canção do Vô Ico (como seus netos o chamam) em homenagem à Ninoca. E ela, quando ouve alguém tocar no assunto, já do alto dos seus seis anos, crê mesmo que é pra ela aquela lindeza.
Não fosse essa heresia suficiente, eu, de minha parte, prefiro crer que a canção é pra mim: eu, disfarçada em minha filha, a inspiração de uma valsa sobre uma mulher russa que o eu-lírico conhece por email, que "anseia conhecê-lo em breve" e que ele também idealiza a distância (obviamente, nesse delírio, Chico nada tem do Vô Ico da Nina). Porque, afinal, sonhar nunca foi proibido. E as memórias, como o próprio Chico disse no depoimento de base do filme, nem sempre são produto de experiência da gente. Podem ser derivadas de experiências de nossos pais, avós, de ancestrais sociais. Ou, emendo eu, dos sonhos...
Taí, pra vocês. Como nascem as memórias inventadas.




*N.E.: sob forte influência da exibição do filme Chico - artista brasileiro.

22 de setembro de 2014

Dançando com os ouvidos


Chico Buarque e Edu Lobo cantam "Ciranda da bailarina" no programa "Te lo do io il Brasile" de 1984 (RAI TV - Itália)




Ciranda da bailarina (Edu Lobo/Chico Buarque) do musical O Grande Circo Místico [conheça, aqui]. Espetáculo marcante, conjugando dança, música, circo, teatro e poesia. O tempo hoje tá curto mas qualquer hora pinta um texto aqui sobre ele. Mas acabei encontrando esses vídeos, intimistas, motivado pelo comentário feito por uma querida colega pesquisadora, com quem já tive muita satisfação em trabalhar, a Carla Corradi, relatando que estava transcrevendo uma entrevista concedida por uma bailarina. Me senti imediatamente dançando com os ouvidos...


Procurando bem todo mundo tem pereba,
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira, verruga, nem frieira
Nem falta de maneira ela não tem

Futucando bem, todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho,
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida, nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem

Não livra ninguém,
Todo mundo tem remela quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem

Medo de subir, gente
Medo de cair,gente, medo de vertigem quem não tem?

Confessando bem,
Todo mundo faz pecado, logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem

Sujo atrás da orelha, bigode de groselha
Calcinha um pouco velha ela não tem
O padre também pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina

Reparando bem todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília, goteira na vasilha
Problema na família, quem não tem?

Procurando bem...
Todo mundo tem...
Procurando bem...


(Outro vídeo, também de 1984, salvo engano extraído daquela série de dvds do Chico)