Tremenda satisfação começar o ano com um lançamento na praça. Ou melhor, com uma canção no ar. E uma inédita de um parceiro com quem já estou compondo há uns anos, mas ainda estávamos mais naquele modo do consumo interno, naquela coisa mais nossa mesmo. Tenho muitas canções nesse
estágio, com vários parceiros, e não me aflijo. Umas virão à tona no
momento certo, outras serão essas pequenas preciosidades que guardamos
só pra nós, ou eventualmente para pessoas muito próximas. Isso para mim é absolutamente necessário, a parceria demanda esse espaço exclusivo para que a criação possa acontecer. Há o entrosamento que os parceiros vão desenvolvendo, descobrindo afinidades e preferências, aprendendo como dar incentivo, trocar ideias e negociar seus entendimentos particulares, como falar sim, não ou talvez um para o outro, crescendo nessa aproximação simbiótica. Compor pode ser penoso ou prazeroso, fatalmente ambos, e é preciso confiança mútua, reconhecimento das qualidades e defeitos de cada um, mas sobretudo muita vontade de ver uma canção pronta ao final. O Rafael Senra é um multiartista, que transita da música aos quadrinhos, se arrisca em canais de You Tube, que também atua na área acadêmica como professor e pesquisador. Aliás ano passado (que maravilha referir-me a 2020 assim) escrevemos juntos um capítulo para um livro sobre distopias, bem a propósito dos dias que vamos vivendo. É sempre um prazer trabalhar com ele, pela criatividade e energia contagiante. Compartilhamos referências musicais importantes, como Clube da Esquina, Beatles e rock progressivo.
Aí chegamos propriamente ao assunto da postagem. Recebi dele a gravação com a melodia e um instrumental básico, exibindo já esse clima etéreo, essa inevitável sugestão do mote espacial, provisoriamente intitulada - por razões por demais óbvias - de "Tema Supertramp". De imediato, como ando fazendo, busquei algo previamente escrito que pudesse servir como estágio inicial do foguete. Encontrei um rascunho com o nome "Estratosférica". Tem sempre um misto de aventura e perigo ao brincarmos com as palavras maiores e ainda por cima proparoxítonas, pra fazer letras, ainda mais com uma proposta assim, em que a canção é o centro de gravidade mas existem longos braços instrumentais estendidos como uma galáxia sonora. Fiz um primeiro rascunho, sugerindo uma estrofe a mais, mas ela entrou em rota de colisão com um cinturão de asteroides além de Marte. Ficaram só seis versos para dar o recado! E teria que ser uma coisa muito icônica, e claro que é inevitável pensar no recorrente apelo ao "meteoro", que alude à extinção dos dinossauros e à nossa possível. Porém o que a música sugeria era algo mais suave, mesmo que a escala fosse grandiosa. Fui burilando com um pouco mais de tempo, e no início de 2020, depois de ler Pedra no céu, primeiro romance do escritor Isaac Asimov, um dos mestres da ficção científica, troquei "calota polar" pelo título do livro na primeira estrofe. Funcionou bem melhor, ainda que a pedra a que Asimov se refira seja o planeta Terra mesmo, e não um meteoro. Há poucos dias, enquanto lia O pêndulo de Foucault de Umberto Eco, li um trecho em que a narrativa fala do Parsifal (o cavaleiro arturiano Percival) e dá a entender que "esse graal guardado pelos templários é definido como uma pedra caída do céu: lapis exillis. Não se sabe se significa pedra do céu (ex coelis) ou que vem do exílio (...) alguém sugeriu que poderia ser um meteorito". A criação também pode ser favorecida por esses acasos... se é que essas coisas são apenas coincidências...
Como a primeira estrofe remetia muito ao campo visual, pensei na segunda como sendo referente ao som. Havia então essa rima curiosa com "América", uma palavra de tantas conotações... os ouvintes sempre podem pensar em várias... mas para mim ecoaram duas citações inesperadamente coincidentes, a famosa transmissão radiofônica (um termo que num dado momento cogitei mas acabou saindo da estrofe) de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, realiza por Orson Welles em 1983 que deixou muita gente em pânico nos Estados Unidos, e a letra de Fernando Brant para Canção da América, originalmente lançada em inglês como Unencounter no disco Jorney to dawn de Milton Nascimento gravado nos EUA. Provocativamente eu coloquei "toda América", para referir ao continente todo, e claro, quis fazer uma homenagem ao Bituca ali, o dono da impávida voz, a majestade do som. A ideia era criar junto uma imagem de beleza e impacto.
Resta falar do título. Creio que o Rafael sugeriu esse Supernova, derivando de Supertramp e acentuando o aspecto astronômico da canção. Alguns provavelmente pensarão numa certa canção da banda Oasis, e também para nos certificarmos que não haveria confusão foi surgindo essa ideia de uma coisa pseudo tecnológica, com siglas e números que são ideias muito exploradas na literatura e no cinema de ficção científica - evoco de cara THX 1138, de George Lucas, e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, que Truffaut levou ao cinema. Virou curtição, Rafael adotou o SG dos nossos sobrenomes (por coincidência remete a uma guitarra Gibson) e propôs 532 a partir de uma superstição pessoal "cabalística", ainda que eu me recorde vagamente de termos brincado de fundir números de nossos endereços residenciais, mas a memória prega suas peças. Acho válido pra deixar a coisa assim, bem idiossincrática. É o tal negócio, cada parceria permite que a gente explore um lado da nossa personalidade. Em geral sou muito zeloso do aspecto da brasilidade no que faço, mas aqui me permiti ser particularmente universal.
P.S. 05/01 - texto de meu parceiro Rafael Senra.
Após ler o excelente depoimento
do meu querido parceiro Luiz Henrique (escrito por ele ainda no calor do
lançamento, com impressionante riqueza de detalhes do processo), pensei em
também escrever algo, mas puxando mais para o lado da criação da melodia.
Essa canção foi feita em um
período de férias: eu já morava em Macapá, tinha tido meu primeiro semestre
como professor da Universidade Federal do Amapá, e estava descansando na casa
dos meus pais, em Congonhas (MG). Levei meu notebook e minha placa de áudio
para lá, e, em determinado dia, deu vontade de tentar gravar um tema mais
progressivo, longo, com diferentes passagens instrumentais.
A base da canção foi composta
enquanto eu gravava, e não antes. Eu elaborava uma melodia ou um riff, e as
primeiras execuções desse arranjo já eram feitas enquanto eu dava o “rec”. Fui
compondo mais focado no teclado, deixando alguns espaços na canção para que
depois fossem inseridas guitarras.
Essa base foi criada e gravada
muito rápido. Não sei precisar o tempo, mas lembro que a fiz bem mais rápido do
que a maioria das canções que já compus. É engraçado, porque se trata de uma
faixa longa, com várias passagens instrumentais, e dá a impressão de ter sido
algo elaborado e muito burilado; mas, não, em termos de composição, foi muito
rápido. Foi um anti-Dorival Caymmi, conhecido por demorar anos e anos para
compor frases e melodias aparentemente simples. Mas é que o simples dá
trabalho. Lembro-me também do guitarrista do Dream Theater dizer, em uma
entrevista, que o que eles fazem não é difícil: que difícil mesmo é fazer uma
canção como o U2, que soe relevante com poucos acordes e 4 minutos...
Pois bem. A criação estava
fluindo muito, até que, no dia 25 de janeiro de 2019, li a notícia do estouro
de uma barragem em Brumadinho. Como Congonhas fica bem perto dali, entrei em
pânico. Eu li a notícia em um site pequeno, sem muitos detalhes, escrita cerca
de dez minutos após o ocorrido. Fui o primeiro a divulga-la para vários amigos,
sem saber da proporção que aquilo realmente alcançaria. Lembro bem de mim, com
o teclado musical diante de mim, ainda elaborando alguns dos arranjos, e de
repente me vendo distraído com a inesperada notícia, procurando desesperado por
mais notícias sobre o ocorrido.
Isso foi em uma sexta feira. No
fim do dia, soube que uma grande amiga estava nessa empresa da Vale, e consequentemente
o fim de semana foi de puro pânico. Eu e diversos amigos do nosso círculo
estávamos devastados. Minha tábua de salvação foi dar tudo de mim na elaboração
desse tema musical. Me dedicar à gravação dessa canção foi importante naquele
momento, foi uma maneira de não me afundar nos sentimentos cruéis e pesados que
só cresciam naquele momento.
Após ter gravado as guitarras,
tentei escrever uma letra, tentando expressar a dor sentida pela tragédia de
Brumadinho. Não fazia muito tempo que eu tinha ido ao Inhotim pela primeira
vez, e me pareceu horrível ver uma região tão bonita ser devastada dessa
maneira. Mas a maior dor era pela perda dessa amiga que lá estava, que eu
conhecia há anos e era esposa de um verdadeiro irmão de vida. Meu sentimento
era real, era duro de lidar, e não consegui traduzi-lo em palavras.
Enviei a melodia para meu
parceiro Luiz Henrique Garcia, e comentei muito brevemente sobre a intenção de
orientar a letra nessa direção de ser uma espécie de “ritual de cura” do
ocorrido. Mas a sugestão não era nada estimulante, ou pelo menos notei que Luiz
também não encontrou nesse mote nenhum tipo de inspiração*. Letras de música são
algo difícil: muitas vezes, você tem uma ideia interessante, mas a música não
aceita a sua ideia. Me parece que toda letra de música que busque a relevância
precisa nascer de um “acordo” com a melodia. É preciso que a canção aceite as
palavras. De certa maneira, creio que um letrista é em parte criador e em parte
tradutor. Ele precisa, em algum nível, traduzir o que a própria melodia já está
dizendo (ou gostaria de dizer).
Luiz então se arriscou em uma
direção diferente da que eu tinha previamente sugerido. Ao longo dos meses,
lentamente, algumas mudanças foram sendo feitas. As vezes, eu perguntava a ele
se uma palavra poderia ou não ser substituída, e ele ia pensando em
possibilidades diferentes, e aí batíamos o martelo juntos. Trabalhar com o Luiz
tem muito desse tipo de diálogo, em alguns momentos. Eu tento não interferir no
que ele escreve, mas aprecio a delicadeza com a qual ele submete a letra a meu
escrutínio, e se abre para uma eventual necessidade de reescrever ou não alguma
coisa.
Continuei mexendo na gravação
dessa música ao longo de vários meses. Tentei tocar a melodia geral com som de
piano, em vez do som de wurlitzer original. Eu tinha usado originalmente um
timbre bem a la “Supertramp”, daí o nome da guia, como Luiz mencionou. Mas não
ficou legal com som de piano, daí retomei o timbre original.
Quando decidi gravar um disco em
Macapá, no Estúdio Zarolho, mostrei para o produtor Alan Flexa a versão caseira
que fiz. Ele achou que soava bastante como 14 Bis, o que me deixou bastante
feliz. Quando mostrei para Alan, já estávamos no processo de gravação de outras
músicas, e eu diariamente ia em seu estúdio para gravarmos tudo lá: guitarra,
baixo, bateria, vocais (apenas os teclados que gravei em casa eram mantidos).
Mas, no caso dessa, Alan sugeriu
que eu mantivesse a guitarra gravada em casa. Ele achou que, mesmo sendo uma
guitarra feita para uma guia, ela soava ótima, e o solo de guitarra não
precisaria ser regravado. Ele achava que eu tinha conseguido algo que soava
tipo 14 Bis mesmo, como no solo de músicas tipo “Espelho das Águas”. No início
do texto, disse que a base da canção foi feita rapidamente, mas esse solo de
guitarra deu trabalho para compor. Eu queria que fosse algo memorável, e me
dediquei muito para cria-lo. A gravação dele foi mesmo feita em casa, e há algo
na performance que fiz que me parece bem apaixonada. Fazia sentido mantê-la.
A bateria da original era uma
base em MIDI bem quadradona. Chamamos Forlan Gomes para gravar uma bateria de
verdade. Como de costume, ele ouviu a versão demo poucas vezes antes de gravar.
A única coisa que deu trabalho foi, já no fim do solo, em um momento que eu
pedi a ele para bater no prato de ataque junto com uma nota específica do solo
que achei importante ressaltar também na bateria. Isso demandou vários takes
para dar certo. Mas, no geral, Forlan gravou algo com a suavidade e a fluidez
que eu queria, o resultado ficou fantástico. Depois só precisei voltar ao
estúdio para gravar os baixos e as vozes.
Nota do editor:
* De fato acho tremendamente difícil para o letrista capturar o sentimento do parceiro quando envolve uma coisa de teor muito pessoal do qual aquele não tomou parte. Já consegui em raras ocasiões, mas por mais entrosamento, conversa e empatia, há distâncias que podem ser intransponíveis. Quando é assim eu prefiro me afastar dessa linha e propor outra leitura. É claro que o parceiro precisa se identificar com ela, também.
Supernova SG532 (Música de Rafael Senra e letra de Luiz Henrique Garcia)
Estratosférica luz
Estandarte do sol
Uma
pedra no céu explodiu
Por
toda América ouvi
Majestade
do som
A impávida voz que espalhou