Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Tava doido pra contar a história dessa canção que acabou de sair, quentinha, no EP Novelo da jovem cantora Flor Grassi [aqui para ouvir tudo, que tá lindo!]. Certa manhã, final de semana, já estava combinado
de encontrar meu parceiro Dan Oliveira, no estúdio Música aos Montes. Era pra
fazer uma letra pra uma música nova dele, já meio que na leva das que poderiam
figurar em seu primeiro disco solo, que estava começando a ser aventado. Ocorre
que eu acordei animado e do nada me veio (fato raro) uma melodia sincopada, um
esboço de um sambinha simpático e maroto. Essencialmente era o verso de “O
Brasil que cai no samba”. Eu já no ônibus, indo, meio catando as palavras, não
estou certo se apenas mentalmente ou se anotei em algum lugar, pois como eu
estava indo pra fazer uma letra certamente levei papel e caneta. Cheguei lá com
essa primeira parte ainda sem acabamento, e dois motes principais: o primeiro
era uma espécie de antídoto de alegria aos maus bocados dos primeiros anos do
governo Bolsonaro - era meados de 2019; o segundo, meio derivado, era a
afirmação da brasilidade a partir da reação à infâmia e ignorância da turba
reacionária, cuja metonímia seria aquele bordão “o Brasil jamais será
vermelho”, que desconhece a origem da própria palavra que dá nome a nosso país.
Preciso dizer que estava muito eufórico e compartilhei com meu parceiro aquele
germe de canção na esperança de que ele gostasse e topasse levar o rebento
adiante. Pois ainda que eu tenha uma limitada leva de obras só minhas, arranhe
no violão e cante para consumo próprio, os parceiros com quem componho estão em
outro patamar, e no caso do Dan eu nem hesitei porque estava certo de que ele
iria levar o samba à maioridade. Dito e feito, num piscar de olhos ele
consolidou a primeira parte, colocando a solução melódica da estrofe que traz
uma espécie de brequinho, muito característico, e ainda fez uma segunda parte.
Eu ia engordando a letra e me veio a ideia de homenagem a referências musicais,
como Tom Jobim, João Gilberto, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga. Bem manjado
mesmo, sem grilo. Um nome puxa outro, inclusive pela sonoridade. Até cheguei a
pensar em colocar mais, ia virar uma “Paratodos do samba”, mas como sempre eu já
tinha tanta ideia, que era o risco da síndrome de Bye, bye Brasil, ou seja, de
fazer uma letra quilométrica e depois ter que cortar. São nomes que são
pilares, então achei que estava de bom tamanho. Não deixa de ser curiosidade o
fato de que o João era o único vivo da turma, mas agora também está jogando na
seleção da posteridade. Com o resto da música rolando, eu botei o Brasil caindo
no samba e depois ataquei o B, em que me ocorreu dar uma tensionada no excesso
de lauda, então meti “Chega de saudade dessa terra” e taquei uma carga
panfletária mesmo, esse é um traço meu, contra o qual não luto. E foi em frente
com a espetadinha em outro símbolo nacional, o futebol, que tá “mal da perna”
já faz um tempo. Mas não rompi o clima de festa – que o arranjo à la Novos
Baianos e a interpretação graciosa da Flor ressaltaram ainda mais - e ainda deu
pra citar vagamente uma canção do Chico que eu adoro, Feijoada completa, aí pra
mencionar esse equivalente culinário do samba, também tributário da mistura que
nos constitui. Qualquer crítica cultura me questionaria por usar “samba” e
“Brasil” como entidades, reproduzir clichês sobre a identidade nacional, mas
isso aqui não é tese, é letra de canção. Que sim, transporta ideias e por isso
mesmo merece ser pensada e esmerada. Levei pra casa, finalizei, batemos o
martelo, fizemos uma gravação caseira, mas o mundo ainda ia dar muitas voltas
até a canção chegar a este momento de lançamento. O estado de felicidade que me
tomou ao acordar com uma melodia pintando na cuca floresceu durante esse tempo,
com tanta gente legal regando a planta. Que o povo não seja privado desse
fruto, bora espalhar esse som o máximo possível. Caiam no samba!
P.S.: Ah! De
quebra eu ainda comecei a letra da outra, a que eu fui lá fazer, inspirada num
documentário sobre Tarkóvski, mas essa história deixo pra contar em breve.
O Brasil que
cai no samba (Luiz Henrique Garcia e Dan Oliveira)
Vem ver o sol nascer hoje, majestoso, O Brasil, amoroso O Brasil, que dá gozo O Brasil que cai no samba
Na rua a gente se encontra, se abraça O Brasil, sem farsa O Brasil, tá na praça O Brasil que cai no samba
Ao som de Tom e João, Pixinguinha O Brasil, caminha O Brasil da Chiquinha O Brasil que cai no samba
Chega de saudade dessa terra De privar o povo dos seus frutos Saiba que o futuro é feito agora Na hora de colher a própria História
Olha que a Geral já vem à forra Pode preparar a feijoada Se o futebol tá mal da perna O samba vai tocando a madrugada
À noite a lua ilumina o rosto O Brasil que dá gosto O Brasil tá disposto O Brasil que cai no samba
Espreme aquela ferida, que vaza O Brasil, ganha asa O Brasil, feito brasa O Brasil que cai no samba