Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

4 de junho de 2024

ALMA MOLHADA

 ALMA MOLHADA

Eu e o Mário Wamser já nos conhecíamos há uns bons anos. E já tinha um tempinho também que acalentávamos a ideia de fazer uma canção em parceria. Nos espaços costumeiros de convivência, como o Vento Leste em BH, a gente se encontrava já brincando com isso, “e a parceria?” “agora vai”, “e aí, futuro parceiro?” e o que mais se possa inventar em torno de uma expectativa que fica sendo adiada, por nenhum motivo em especial, simplesmente pela falta da fagulha inicial. Ano passado, numa noite daquelas teve mesmo uma tentativa curiosa, meio à moda antiga, na mesa de boteco. Com nossa musa inspiradora ali por perto, decidi caçar papel e caneta na hora e sapecar alguma coisa de pronto. Até saiu, mas depois a letra não era assim tão inspirada, e a música não estava ali dormindo à espera de ser despertada. Esse modo de compor costuma ser mais raro, especialmente em parceria. Tem outra situação que é musicar poema, mas aqui não seria propriamente isso, quando eu escrevo antes já penso na forma de canção. Enfim, não foi daquela vez. Mas estava esquentando, como se diz no “chicotinho queimado”. Foi então que em janeiro desse ano ele me manda uma gravação com um tema, cantarolando e tocando aquele violão todo trabalhado dele. Aí bateu a responsa. A música tinha umas quatro partes diferentes, bem definidas e articuladas, de modo a sugerir uma narrativa consequente, lógica. Ela tinha leveza, mas de alguma forma também uma sensação de desafogo. Foi justamente o que ele explanou num pequeno áudio que enviou em seguida, acrescentando que queria poucas variações na letra já que pretendia repetir a forma toda. Acessível, “popularmente falando”, e bem mineira, portanto sem banalidade. Lá fui eu. Embora um esboço não tenha demorado tanto a sair, eu não costumo fazer o famoso “monstro”, ou seja, uma letra guia só pra marcar a melodia, divisões, acentuações, etc. Faço às vezes uns tracinhos, como se contasse as sílabas, e quando a nota se alonga eu faço o traço longo. Cada vez mais eu tento acertar de primeira, me impondo o desafio de chegar o mais perto do desejado e depois ir só cortando as arestas. Neste caso eu fui por partes, como diria Jack... vocês sabem... O “B” (ou ponte) deixei por último, era o mais difícil, porque tinha que funcionar na letra como na música, ou seja, ser um tipo de ponderação ou questionamento dos versos iniciais “A” e ligá-los às partes subsequentes, em que o “C” é o clímax e o D uma espécie de epílogo. Eu fui entendendo isso enquanto fazia, que precisava levar o “eu” do seu alegre e lírico despertar até um estado mais reflexivo, em que ele encontra a paz depois da tormenta - provavelmente isso é um ponto de identificação com a canção para mim, para o Mário e para qualquer ouvinte dela: quem nunca?  Por isso a palavra “chuva trás da curva” (bem mineiro :P) foi uma espécie de centro gravitacional, indicando que a fumaça já se dissipara e lançando no tempo presente a disposição de seguir adiante, viver, tocar violão, “te” encontrar (sempre lembrando os Beatles da primeira fase, mestres da interpelação direta do intérprete para o/a ouvinte). Essa chamada trás no final uma espécie de convite convicto, imperativo, para que o ouvinte compartilhe essa onda, encha os pulmões, dance, e claro, escute a música (se for essa mesmo, melhor ainda, vale a propaganda subliminar rsrs). Tudo portanto terminaria no gesto final de respirar, depois do sufoco, e a princípio “Respira” era também o título da canção, mas meu parceiro veio com a sugestão de “Alma molhada” (foi uma repaginada dos versos do Brant em Nos bailes da vida) e eu gostei, tem personalidade e deu mais cara de música mineira mesmo rsrs. Acho que poucas experiências na vida me ensinam tanto sobre co-laboração quanto a parceria para compor. Não é simples traçar a linha entre até aonde vai a nossa personalidade e onde começa sua dissolução num recipiente diferente em que a criação é compartilhada. Saber receber isso é bonito, e tenho tido sorte. E banhado minha alma muitas e muitas vezes!

Alma molhada (música: Mário Wamser; letra: Luiz H. Garcia) jan-2024

 

A         Tirei

            Os meus pés do chão

Eu valsei no vão

Entre qualquer lugar

e a hora de acordar

 

A’         Sono leve

Despir do lençol

Servir um café

Um brinde ao sol alçar

nessa manhã sem par

 

B         Um dia que a gente respira

Depois que dissipa a fumaça

a alma molhada de sonho

deságua

 

C         Chuva

Trás da curva lá já lavou

nuvem passageira

outra vida inteira

agora quero andá(r)

Pego a trilha

Aprendendo sem decorar

Pra valer viver, tocar um  violão, quem sabe te encontrar?


D         Enche seus pulmões

Põe as mãos na arei_a

Dança em pleno ar

Ouve um som na vei_a

Respira