Acabei de assistir, em VT completo, o desfile da Portela na Marquês de Sapucaí homenageando Milton Nascimento no carnaval deste ano. Acertadamente, a meu ver, fugiram da linha biográfica explícita e cronológica. O enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol” aborda de forma inteligente e criativa a relação do artista e de sua obra com o povo e a cultura brasileira, organizada conceitualmente na forma de uma procissão que se desloca por um dia imaginário, partindo do subúrbio carioca em direção ao interior de Minas.
Antes de qualquer coisa, vale ressaltar a importância da homenagem em si, e o fato dela ter sido feita em vida, com Bituca lúcido e com saúde bastante para desfilar na avenida, e ir, literalmente, até onde o povo está - ainda que possamos debater à exaustão onde e como fica o povo no sambódromo, num contexto em que isso tudo virou um espetáculo multimidiático e um grande negócio.
Sobre o desfile, não tenho grande propriedade para falar de muitos aspectos estéticos e de execução que chegaram a um patamar assombroso com todos esses anos, esforços das comunidades do samba e também, claro, com a força da grana.
Preciso primeiro dizer que, sem ser um torcedor dedicado, acompanho os desfiles pela TV desde garoto, e escolhi a Portela como escola de predileção graças à imponência de seu símbolo, a águia, um animal que sempre me fascinou. Este ano a águia veio predominantemente em azul, com detalhes dourados, bonita e barroca. O ouro predominou junto aos tradicionais azul e branco da escola. Os carros alegóricos quase todos muito opulentos, tirando o que trazia um Milton representado jovem em meio à sua discografia e fotos dos membros da comunidade portelense que se sentem tocados por sua música, que foi o que achei mais lírico e expressivo do enredo. Me pareceu que algumas alas tentaram contrapor o excesso de brilho que a ideia de culminar tudo no sol - o próprio Milton, no último carro, raiando no dia seguinte ao da procissão - com algumas alusões à simplicidade da cultura popular.
Até por isso achei o mirrado trenzinho azul no meio de uma ala de girassóis algo mal realizado. Creio que não captaram a essência da habilidade de Milton e seus parceiros em capturar a grandeza no simples, o extraordinário no cotidiano. Mas também não vou contradizer a sabedoria do saudoso Joãozinho Trinta, quando dizia que intelectual é que gostava de pobreza. O luxo fantasioso do carnaval é também uma provocação, um desafio ante a concentração da riqueza e injusta distribuição dos bens materiais em nossa sociedade.
A esssa afirmação se soma outra do valor da contribuição afrodiaspórica ao caldeirão da cultura brasileira, ainda que essencialmente pelo viés dos terreiros que deram solo à história do samba. Teria sido interessante, a meu ver, uma abordagem mais nítida da afromineiridade de que Milton se tornou um grande exponencial, ainda que houvessem referências salpicadas. A bateria poderia ter inovado por aí. Mas gostei das paradas introduzidas ao longo da execução, botando o povo pra cantar a cappella.
No geral o samba me agradou, bem-feito, pelas mãos e mentes de Samir Trindade, Fabrício Sena, Brian Ramos, Paulo Lopita 77, Deiny Leite, Felipe Sena e JP Figueira. Eis a letra:
Manhã, Alvorada das nossas lembranças
Peito aberto, carrego esperança
Do altar de São Sebastião
Estou onde a mãe do ouro me afaga
E fiel abraçado à Águia
Vou partir em procissão
E sagrada as amizades
Ardem vozes, mil tambores
Nas mãos, girassóis na travessia
Minh’alma em cantoria
Vem a tarde, vão-se as dores
Nessa estrada, é sonho, é poeira
Passa o trem azul, sigo em paz
Feito Rio… só me leva
Pra Deus filho de Maria
Tantos mares em um cais
E as raízes se juntaram
Na esquina uniram a nação
Venceram as lutas que travavam
Pra ver Zumbi no céu da canção
Noite apaga o arrebol
Num milagre ser farol
E continuar…
Quem acredita na vida
Não deixa de amar
Dorme a maldade após o temporal
Na bandeira a liberdade, vem Bituca triunfal
Cheguei com meu povo, mesmo sentimento
Onde Candeia é chama
Brilha Milton Nascimento
Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar
Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar
Anjo negro é o Sol que faz a Portela cantar
Anjo negro é o Sol na minha Portela
Não farei uma análise pormenorizada, para não sobrecarregar a leitura. Gostei das partes, do refrão intenso com a imagem central do anjo negro sendo "o sol". Se me dá muita preguiça um certo revivalismo militante que exalta monarquias africanas como se existissem num plano mítico, infalíveis e nada humanas, é válido evocar esse imaginário apenas na medida em que traduz apreço e admiração por um artista do calibre de Milton. Além de dar conta da narrativa proposta, a letra encadeia bem o padrão de samba-enredo que exalta a escola, seus símbolos, baluartes e devoções, ao mesmo tempo que faz citações espertas, ao invés de colagens óbvias. O léxico do Clube da Esquina surge com sol, girassol, trem, cais, temporal... Os compositores demonstram bom conhecimento do repertório de Bituca e seus parceiros, o que foi inclusive transposto para os nomes das alas, ainda que algumas alusões pudessem ter sido melhor aproveitadas em fantasias.
O mesmo eu não posso falar dos apresentadores da Globo. Assistindo o VT a primeira vez achei um extremo despreparo da parte deles. Não só não indicaram boa parte das alusões, não citaram nenhum dos parceiros de Milton Nascimento - absurdo pois praticamente toda sua obra é feita em conjunto com letristas seminais da música popular brasileira - e nem mesmo souberam identificá-los quando alguns deles figuraram (sem maior destaque, e nisso vou criticar a Portela) no imponente carro branco em que eu consegui ver Wagner Tiso, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. Claro que eles reproduzem a esparrela recente de destacar como amigos figuras como Maria Gadu e Djonga, artistas novos que ficam ali rondando agregados na abordagem marqueteira do filho adotivo de Milton.
Mas vou relevar, afinal se trata sobretudo de uma homenagem, digna do que ele representa no cenário da música brasileira e mundial. Como pesquisador que tem a trajetória longamente conectada à sua obra, e ao Clube da Esquina, e também como compositor que a tem como referência, registro minha felicidade de ter assistido mesmo que pela tela, e que se soma às minhas andanças nestes dias de carnaval por Belo Horizonte, onde eu ouvi em vários blocos - para além do que é dedicado à Esquina mais inacreditável do planeta - executando versões dessas canções que embalam nossos corações o ano todo.