Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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5 de março de 2025

Anjo negro é o Sol que faz a Portela cantar




Acabei de assistir, em VT completo, o desfile da Portela na Marquês de Sapucaí homenageando Milton Nascimento no carnaval deste ano. Acertadamente, a meu ver, fugiram da linha biográfica explícita e cronológica. O enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol” aborda de forma inteligente e criativa a relação do artista e de sua obra com o povo e a cultura brasileira, organizada conceitualmente na forma de uma procissão que se desloca por um dia imaginário, partindo do subúrbio carioca em direção ao interior de Minas. 
Antes de qualquer coisa, vale ressaltar a importância da homenagem em si, e o fato dela ter sido feita em vida, com Bituca lúcido e com saúde bastante para desfilar na avenida, e ir, literalmente, até onde o povo está - ainda que possamos debater à exaustão onde e como fica o povo no sambódromo, num contexto em que isso tudo virou um espetáculo multimidiático e um grande negócio. 
Sobre o desfile, não tenho grande propriedade para falar de muitos aspectos estéticos e de execução que chegaram a um patamar assombroso com todos esses anos, esforços das comunidades do samba e também, claro, com a força da grana. 
Preciso primeiro dizer que, sem ser um torcedor dedicado, acompanho os desfiles pela TV desde garoto, e escolhi a Portela como escola de predileção graças à imponência de seu símbolo, a águia, um animal que sempre me fascinou. Este ano a águia veio predominantemente em azul, com detalhes dourados, bonita e barroca. O ouro predominou junto aos tradicionais azul e branco da escola. Os carros alegóricos quase todos muito opulentos, tirando o que trazia um Milton representado jovem em meio à sua discografia e fotos dos membros da comunidade portelense que se sentem tocados por sua música, que foi o que achei mais lírico e expressivo do enredo. Me pareceu que algumas alas tentaram contrapor o excesso de brilho que a ideia de culminar tudo no sol - o próprio Milton, no último carro, raiando no dia seguinte ao da procissão - com algumas alusões à simplicidade da cultura popular. 
Até por isso achei o mirrado trenzinho azul no meio de uma ala de girassóis algo mal realizado. Creio que não captaram a essência da habilidade de Milton e seus parceiros em capturar a grandeza no simples, o extraordinário no cotidiano. Mas também não vou contradizer a sabedoria do saudoso Joãozinho Trinta, quando dizia que intelectual é que gostava de pobreza. O luxo fantasioso do carnaval é também uma provocação, um desafio ante a concentração da riqueza e injusta distribuição dos bens materiais em nossa sociedade.
A esssa afirmação se soma outra do valor da contribuição afrodiaspórica ao caldeirão da cultura brasileira, ainda que essencialmente pelo viés dos terreiros que deram solo à história do samba. Teria sido interessante, a meu ver, uma abordagem mais nítida da afromineiridade de que Milton se tornou um grande exponencial, ainda que houvessem referências salpicadas. A bateria poderia ter inovado por aí. Mas gostei das paradas introduzidas ao longo da execução, botando o povo pra cantar a cappella
No geral o samba me agradou, bem-feito, pelas mãos e mentes de Samir Trindade, Fabrício Sena, Brian Ramos, Paulo Lopita 77, Deiny Leite, Felipe Sena e JP Figueira. Eis a letra:

Manhã, Alvorada das nossas lembranças
Peito aberto, carrego esperança
Do altar de São Sebastião
Estou onde a mãe do ouro me afaga
E fiel abraçado à Águia
Vou partir em procissão

Na fé, que faz do artista entidade
E sagrada as amizades
Ardem vozes, mil tambores
Nas mãos, girassóis na travessia
Minh’alma em cantoria
Vem a tarde, vão-se as dores

Nessa estrada, é sonho, é poeira
Passa o trem azul, sigo em paz
Feito Rio… só me leva
Pra Deus filho de Maria
Tantos mares em um cais

E as raízes se juntaram
Na esquina uniram a nação
Venceram as lutas que travavam
Pra ver Zumbi no céu da canção

Noite apaga o arrebol
Num milagre ser farol
E continuar…
Quem acredita na vida
Não deixa de amar

Dorme a maldade após o temporal
Na bandeira a liberdade, vem Bituca triunfal
Cheguei com meu povo, mesmo sentimento
Onde Candeia é chama
Brilha Milton Nascimento

Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar
Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar
Anjo negro é o Sol que faz a Portela cantar
Anjo negro é o Sol na minha Portela





Não farei uma análise pormenorizada, para não sobrecarregar a leitura. Gostei das partes, do refrão intenso com a imagem central do anjo negro sendo "o sol". Se me dá muita preguiça um certo revivalismo militante que exalta monarquias africanas como se existissem num plano mítico, infalíveis e nada humanas, é válido evocar esse imaginário apenas na medida em que traduz apreço e admiração por um artista do calibre de Milton. Além de dar conta da narrativa proposta, a letra encadeia bem o padrão de samba-enredo que exalta a escola, seus símbolos, baluartes e devoções, ao mesmo tempo que faz citações espertas, ao invés de colagens óbvias. O léxico do Clube da Esquina surge com sol, girassol, trem, cais, temporal... Os compositores demonstram bom conhecimento do repertório de Bituca e seus parceiros, o que foi inclusive transposto para os nomes das alas, ainda que algumas alusões pudessem ter sido melhor aproveitadas em fantasias.  
O mesmo eu não posso falar dos apresentadores da Globo. Assistindo o VT a primeira vez achei um extremo despreparo da parte deles. Não só não indicaram boa parte das alusões, não citaram nenhum dos parceiros de Milton Nascimento - absurdo pois praticamente toda sua obra é feita em conjunto com letristas seminais da música popular brasileira - e nem mesmo souberam identificá-los quando alguns deles figuraram (sem maior destaque, e nisso vou criticar a Portela) no imponente carro branco em que eu consegui ver Wagner Tiso, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. Claro que eles reproduzem a esparrela recente de destacar como amigos figuras como Maria Gadu e Djonga, artistas novos que ficam ali rondando agregados na abordagem marqueteira do filho adotivo de Milton.
Mas vou relevar, afinal se trata sobretudo de uma homenagem, digna do que ele representa no cenário da música brasileira e mundial. Como pesquisador que tem a trajetória longamente conectada à sua obra, e ao Clube da Esquina, e também como compositor que a tem como referência, registro minha felicidade de ter assistido mesmo que pela tela, e que se soma às minhas andanças nestes dias de carnaval por Belo Horizonte, onde eu ouvi em vários blocos - para além do que é dedicado à Esquina mais inacreditável do planeta - executando versões dessas canções que embalam nossos corações o ano todo. 

7 de março de 2019

São verde e rosa as multidões

Em algum momento antes deste carnaval, ouvi, numa bela gravação [aqui], o samba-enredo da Mangueira, e pressenti que ele daria o que falar e que teria grandes chances de ser coroado campeão com uma correspondente exibição no Sambódromo. "Histórias pra ninar gente grande", foi escrito a seis por Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Tomaz Miranda, Vitor Arantes Nunes, Sílvio Moreira Filho e Ronie Oliveira. O enredo do carnavalesco Leandro Vieira [aqui o texto geral] destaca o protagonismo do que chamou de "heróis do barracão", os populares, subalternos,negros, índios, mulatos, aqueles que os livros tradicionais da História dita "oficial" não costumam mencionar, e muito menos nominar individualmente. Claro, no atual contexto histórico, a apoteose da Mangueira - daquele tipo de vitória incontestável que está sendo celebrada inclusive pelos torcedores mais fanáticos de agremiações rivais - se recobre de imenso significado, ante as despirocadas, os crimes e perversidades de um governo e seu presidente que agem para destruir os direitos, o patrimônio e até mesmo a imagem do país. Mas, sobretudo numa visada de maior fôlego, representa uma página heroica das lutas pela conquista de um Brasil que não exclua a parcela majoritária de sua população da condição plena de cidadãos.
Mesmo não sendo um estudioso dedicado do carnaval carioca e brasileiro, como historiador da música popular, e como compositor, me sinto compelido a arriscar algumas linhas sobre este samba, certamente a espinha dorsal de qualquer desfile de Escola, e desta feita articulado de uma forma praticamente impecável a todo resto que compõe o espetáculo multimidiático. Não vou ficar esmiuçando detalhes e avaliações de jurados especializados, e prefiro incorporar o VT da transmissão, seguido da letra, para que o leitor faça a devida apreciação, se ainda não teve a oportunidade.




Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas 
pros teus heróis de barracões

Dos Brasis que se faz um país 
de Lecis, jamelões

São verde e rosa as multidões
 

Brasil, 
meu nego deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra
 

Brasil, 
meu dengo a Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento


Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato
 

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar
de Aracati

Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Brasil, chegou a vez


De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

A sofisticação em letra e música é tal que certamente deixarei passar muita coisa. Vou procurar pontuar o que posso, na confluência entre música popular e História, que é onde efetivamente tenho algo a dizer. Em outras oportunidades já comentei sobre tal relação nos sambas-enredo [aqui], e cumpre notar que a Mangueira segue na picada que a Paraíso do Tuiuti abriu ano passado, como escrevi neste mesmo blog [aqui]. Investiguei ali a configuração do samba-enredo crítico, que em alguma medida se aproveita do avanço da historiografia para ir além do marco de exaltação e mistificação de suas contrapartes tradicionais. Neste sentido, ele propõe uma interpretação histórica a contrapena (vou me permitir essa mordida antropofágica na expressão benjaminiana 'a contrapelo') e assume isso explicitamente na sua própria expressão cancional - anunciando que vai contar "(...)A história que a história não conta/ O avesso do mesmo lugar", e que vai falar do esquecido, do silenciado, dos "versos que o livro apagou". Essa (in)versão da perspectiva interpretativa (recurso simbólico cuja associação ao carnaval já rendeu muitas páginas de teoria social) é bem marcada em dois episódios históricos chave, surradamente celebrados em tantos carnavais: o descobrimento e a abolição, relidos o primeiro como invasão e a segunda como resultado de lutas várias e não da benevolência da princesa (metonímia da elite imperial). Num acontecimento musical que certamente entrará para os anais dos desfiles, o arranjo da bateria expressa musicalmente essa operação, que o estudioso Luiz Antonio Simas descreveu [via facebook] com conhecimento de causa tão grande que só me cabe citá-lo:

"Detalhe da bateria da Mangueira. Ela faz uma bossa de marcha militar na preparação do refrão. Só que aí a marcha militar saí e entra uma muzenza tocada nos atabaques! A muzenza é um ritmo tocado nos candomblés de caboclo! A muzenza se impõe sobre a marcha militar! O enredo contado por uma bateria! Putaquepariu. Desculpem as exclamações." . 
 
A história oficial, aquela que enaltece, que ergue monumentos, que emoldura os retratos dos vencedores, costumeira fonte de tantos enredos de exaltação, é contestada. Não se trata de uma alternância maniqueísta, simplista. Falar do ponto de vista dos vencidos não é colocá-los como vencedores, e sim revelar melhor o saldo dos embates. Longe de qualquer idílio, é de sangue e ossos que se trata o que é a vitória de uns e derrota de outros. Este é o conceito que as alas e alegorias demonstram visualmente de modo brilhante. Posso destacar a Comissão de Frente e a alegoria do 2º carro, saída diretamente das intervenções que vêm sendo feitas por indígenas e demais ativistas engajados em sua causa sobre o Monumento às Bandeiras. A violência dos apagamentos é enfrentada nas presenças físicas, na pessoa da Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, ou de Hildegard Angel, cuja mãe e irmão - gente que "foi de aço nos anos de chumbo" - foram mortos pela ditadura militar (lamentavelmente a Fátima Bernardes se acovardou no comentário que fez a respeito durante a transmissão), já na parte final do desfile. Numa nota marginal, como que para nos lembrar que o desfile mais lindo, crítico, etc., ainda assim está integrado no grande negócio capitalista que virou o carnaval, as moças que empurravam os carros exibiam os cabelos alisados pela marca que envergavam nas camisetas. Las contradiciones del Capital...

Acho importante destacar que a História narrada não é "alternativa" como alguns comentários apressados sugeriram, é tão História quanto qualquer coisa que é digna desse nome. É preciso que se diga que a imagem de uma História não contada "nos livros" não pode ser tomada tão literalmente. A superação desse modelo de narrativa de heróis louvados e consagração de vencedores foi certamente a tônica da historiografia produzida ao longo do século XX. Diferentes escolas e vertentes elevaram a sujeitos as pessoas comuns, os populares, subalternos, derrotados - os especialistas as conhecem e para os leigos talvez se tornasse excessivo enumerar autores e trabalhos. Claro que estamos bem longe da disseminação do conhecimento histórico que gostaríamos de ver - o que o enredo salienta - mas é certo que o samba da Mangueira não tiraria a poeira dos porões e sairia do barracão sem dissertações, teses e livros escritos por historiadores nas últimas décadas, claro que ladeados pela memória que comunidades diversas, em um enfrentamento incessante, foram preservando e reescrevendo por sua própria conta - tradição que a Escola não deixa de reverenciar em figuras emblemáticas como Leci Brandão e Jamelão. Essa colaboração efetiva, foi explicitada inclusive nos textos escritos por professores/pesquisadores que figuraram no último carro. Para além dos livros didáticos, é preciso ainda dizer que uma visão crítica da História do Brasil é levada às salas de aula por milhares de professores que são formados pra isso, especialmente nas universidades públicas. Não é por acaso que hoje ações como Escola Sem Partidos, que o próprio governo federal intenta encampar, pretendem cercear estes professores. 

Por isso o título do enredo aperta mesmo o parafuso  ao apontar que as versões tradicionais "ninam gente grande", ou seja, fazem parte de um construto hegemônico que amortece a ira dos excluídos e os relega à condição de observadores passivos do protagonismo dos heróis emoldurados, das elites dirigentes. Indígenas, negros, mulatos, caboclos, mulheres, pobres, deixam de ser entidades abstratas para serem encarnados pelos nomes daqueles de quem agora é chegada a hora de ouvir as vozes e saber quem foram. O sentido profundamente político desse desafio à História que adormece (inevitável lembrar de certo verso do Hino Nacional) é reconhecer no recorte das grandes lutas populares um veio fundamental para a construção da nossa democracia - "na luta é que a gente se encontra". No giro altamente consequente que leva desse inventário não linear dos episódios de enfrentamento e dos heróis nomeados do povo ao seu autoreconhecimento - genialmente construído na reiteração de uma interpelação tão típica do samba exaltação "Brasil..." mas aqui transformada pelos índices da nossa hibridação cultural (meu nego, meu dengo) acrescido de um reflexo no espelho que suplanta qualquer tentativa de leitura amolecida da miscigenação e propõe um país no plural -  o próprio samba segue em sua forma como uma sucessão de alas, com transições melódicas para as partes seguintes sem repetição até nos conduzir de volta ao refrão em que a própria escola se mescla ao povo: "são verde e rosa as multidões". A Mangueira nos ensina que precisamos refundar tudo, refazer os termos da nossa  união. Não estamos só enfrentando fascistas. Estamos enfrentando, ainda, as entranhas da sociedade desigual que o escravismo colonial nos legou. Que nenhuma República, nem Nova, nem Velha, superou. Só é possível fazê-lo dando concretude política, social e econômica àquilo que a Cultura já sonhou, já anteviu.
Num episódio lamentável, que deprecia o mandato presidencial e tudo que cerca a condição de chefe de Estado, o atual ocupante do Palácio da Alvorada compartilhou um vídeo com material que pode ser considerado pornográfico, propagando-o como exemplo caluniosamente generalizado do que ocorre nos blocos de Carnaval. A fala do carnavalesco Leandro Vieira respondeu com propriedade a mais este ato repugnante do político com arminha na mão:

"É um recado político para o país todo, que tem que entender que isso aqui é importante. É um recado político também para o presidente mostrar que o carnaval é isso aqui. O carnaval é a festa do povo. O carnaval é cultura popular. O carnaval não é o que ele acha que é. O carnaval é isso. E ele deveria mostrar para o mundo o carnaval da Mangueira. O carnaval da arte, o carnaval da luta, o carnaval do povo, o carnaval da cultura popular." 

Entendo que só existe basicamente uma coisa impedindo firmemente que o projeto teocrático conservador nos costumes ultraliberal na economia tome conta do imaginário do brasileiro. Chama-se ... o carnaval, o carnaval, o carnaval... O Brasil precisa de um novo samba-enredo como Hino.

12 de fevereiro de 2018

Está Extinta a Escravidão? Samba e História na Sapucaí


Eu tinha sacado alguns sambas-enredo e sentido que o desfile das escolas do Rio desse ano seria diferente, de enfrentamento. Se de um lado não cabe a desmedida visão de ver aí uma redenção infalível que vá imediatamente mudar o cenário do nosso dia a dia, também não se pode menosprezar a força simbólica que tais manifestações retém. 

Vi o início do desfile da Paraíso do Tuiuti e senti firmeza. Mas Morfeu foi mais forte. Agora estou assistindo ao VT. Tá dando gosto. Descubro que o colega historiador Léo Morais foi assistente do carnavalesco Jack Vasconcelos e depois destaque como 'Presidente Vampiro'. Para uma síntese, ver a matéria, aqui, e as fotos

Tantas vezes houve sambas com enredos grandiloquentes e pitorescos, que motivaram o irônico apelido se 'samba do criolo doido' [já fiz uma postagem tratando do assunto, aqui], mas com o tempo uma maior acuidade historiográfica começou a se fazer presente. Eis aí um belo exemplo, um samba-enredo competente, um desfile de encher os olhos e ainda dar o recado. Eu não sou estudioso do carnaval e nem crítico de desfile de escola de samba, mas dentro das minhas limitações me pareceu tudo muito coeso, os temas das alas, a tradução visual do enredo, a força musical do samba puxado pelo trio Nino do Milênio, Celsinho Moddy e Grazi Brasil, que como acabei de apurar tem entre seus compositores Moacyr Luz, grande craque [aliás, covardemente assaltado antes do desfile, aqui]. Vale dar uma olhada no depoimento dos compositores [aqui] . Selecionei um trecho do que disse um deles, Aníbal Leonardo:

"A escravidão é a forma de opressão mais vil que existe, que vem desde as formas mais antigas de organização da sociedade. No caso do Brasil, isso se reflete nas enormes desigualdades que vivemos até hoje, e por isso o samba bate tão forte no seio do nosso povo, pois a exploração abusiva do homem pelo homem se dá inclusive fora da escravidão".

Acho importante ainda trazer impressões dos componentes da escola sobre o samba, que nitidamente empolgou a todos [aqui]. Ariolana Conceição, moradora da comunidade do Tuiuti e membro da velha guarda da escola, disse que: 

– O samba é maravilhoso. Só tenho ouvido elogios do nosso samba-enredo. As pessoas dizem que é o melhor, e é mesmo! O melhor é que ele exalta a nossa raça, as nossas origens conta a nossa história, do negro e do Brasil. Retrata a Africa em poesia, tem ritmo, tem balanço, tem melodia e tem emoção acima de tudo. Ficará para história como outros sambas-enredos.  


Lembro da história da ave atirar seus filhotes em queda, para eles aprenderem a voar. Talvez entre as fábulas colhidas por Da Vinci, narrada no primeiro livro que definitivamente amei na vida.Esse pensamento escapa (ou decola?) agora enquanto penso no enredo da Paraíso (olha pra cima, de novo) do Tuiuti (um pássaro!). Será um grande desconhecimento da história dos sambas-enredo se agora alguém se dá conta de seu teor político, seu engajamento nas questões mais urgentes e também nos dilemas mais profundos da nossa existência enquanto brasileiros. Não, não está aí novidade alguma.
Então onde está o voo do Tuiuti?
Me arrisco a considerar que na forma com que articulou o conhecimento do passado com a interpretação do presente, e simultaneamente a tradição de sambas-enredo com alguma inovação. O samba parece que deu nó em pingo d'água, porque consegue unir os macetes formais costumeiros do samba-enredo, como os refrões poderosos, as rimas internas, e o inventário do vocabulário e do imaginário afro-brasileiros com sacadas atípicas que lhe dão ares contemporâneos, como o elaborado jogo poético com as cores, imagens rebuscadas como a da lua atordoada, mas a sofisticação é dosada de maneira a não torná-lo pedante. Ao fazer a leitura crítica do fenômeno da escravidão, incluindo aí a sua abolição no Brasil, consegue dialogar com a tradição dos enredos sobre a História do país mas dá um salto qualitativo porque está afinado a descobertas historiográficas que costumam passar longe da avenida uma vez que dificultam o ato de exaltar. Ao descortinar o engodo da Abolição, tão celebrada em tantos carnavais, o enredo efetiva o laço com o presente enunciado no título em forma de pergunta. Irresistível a analogia que tenho a fazer: eis aí um Samba-Problema, indo ao encontro do brado metodológico da Escola dos Annales. Certamente os historiadores professores levarão esse samba e o desfile para as salas de aula, do fundamental ao superior, e terão aí um rico material para discutir o tema da escravidão, sua historiografia e seus sentidos no tempo presente. É digno de nota que a Escola conseguiu esse feito sem recair em anacronismos equivocados, ao apresentar uma leitura crítica sob a luz de conhecimento apurado sobre o fenômeno da escravidão para pensar sobre as condições de trabalho ao longo da História e a atualidade do "cativeiro social". No documento chamado Livro Abre-Alas (que é uma espécie de catálogo com os projetos dos desfiles das escolas) consta a bibliografia utilizada pelo carnavalesco e seus auxiliares [aqui].
Ao pensar a escravidão em sua historicidade, ainda, o enredo desdobra o que a letra do samba só insinua, dando perspectiva para refletirmos sobre a exploração do trabalho humano em diferentes contextos. Talvez haja inclusive um eco, intuitivo ou não, da dialética hegeliana do senhor e do escravo, na constatação de que a vida lamenta por ambos. E aí, um trunfo quiçá escondido, o ás na manga, um zap no identitarismo, porque a interpelação não se dirige apenas aos negros escravizados historicamente no Brasil, mas aos escravizados de todas as cores, tempos e lugares, o "irmão de olho claro ou da Guiné", todos de "sangue avermelhado". Ao atualizar o sentido da luta contra a escravidão como luta de libertação de todas as formas de exploração do trabalho, o Tuiuti canta fora da gaiola do cativeiro social e alça voo diante do precipício.

O desfile



A letra do samba, de  Cláudio Russo / Anibal / Jurandir / Moacyr Luz / Zezé:

Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
G.R.E.S Paraíso do Tuiuti

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação